Chegou
o momento de dizer a verdade. Estou prestes a me tornar um espantalho mutilado,
com o calor carcomendo as fibras todas. Era manhã de uma segunda azul, em 2009,
no mês de março. Antes que me fujam as ideias, vomito logo o essencial: matei
Tolentino. Pronto, falei. Matei e mataria de novo. Sem conversinha de
arrependimento. Eu tinha e tenho os meus motivos. Tolentino, por vontade
própria, arrumou de ser o vigia da rua. Dona Clarisse, uma velhinha xexelenta,
encrenqueira, fazia as vezes de gestora e apurava uma cota, toda semana, para
comprar o alimento do pobre coitado. Eu me recusei; não pedi para ninguém ficar
de guarda na minha porta. Andira, sem disfarçar, tirava dinheiro do nosso
mísero sustento para alimentar o desgraçado. “Olha, o pobrezinho precisa da
gente, ele não tem onde ficar. E é tão bonzinho…”. Foda-se, caralho. Parece que
quanto mais o odiava, mais ele se mostrava sereno e afável. Um bosta de um
fingido. Tinha as manhas de se fazer de coitado. Ainda mais, aquela velha
apurava uma dinheirama para fazer sabe-se lá Deus o quê. Por que não o levava
pra casa? Quando percebi, já havia cama, café da manhã, almoço, jantar e outras
regalias, muito bem alojado na calçada, perto de nossa casa. Era um desplante,
uma agressão à minha inteligência. Dar comidinha de mão beijada é coisa de
comunista safado. Tem de ensinar a pescar e não dar o peixe, como diz o sábio
ditado. Nesse belíssimo dia, estando de folga do serviço, com atestado frio,
mais saudável que burro no campo, levantei às cinco, fiz o café e fui dar uma
volta no bairro para averiguação. Não havia ninguém, só uns dois ou três gatos
pingados, que passavam lá embaixo, na Avenida Central, para pegar o busão. O
boteco do Jonas estava aberto, mas o cabra é meu camarada e não ia dar com a
língua nos dentes. Ah, no dia anterior tinha preparado uma comidinha com
capricho, um monte de carne moída com chumbinho. Levei o preparo no bolso.
Sentindo uma tranquilidade mórbida e um êxtase sobrenatural, chamei-o para o
canto, do lado do terreno baldio, e entreguei o petisco matinal. Caiu como um
patinho, ou como um bobo Tolentino. Nunca me livrei de algo tão facilmente.
Quando o bicho começou a se estrebuchar, fui para o boteco do Jonas e pedi uma
cerveja gelada. Jonas perguntou a razão de minha felicidade. Respondi que havia
ganhado o dia e que precisava comemorar. Jonas, dessa vez, quis me acompanhar,
mas ficou meio aturdido com a vista do camarote. “Jonas, larga de besteira! O
cachorrinho está velho demais, uma hora ou outra ia morrer. Viveu bem, comeu do
bom e do melhor. Chega mais, aqui. Vamos brindar a santa passagem do infeliz!”.
Ele me olhou com olhos de suprema condenação.
0 comentários:
Postar um comentário