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sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Absolvição

 



Chegou o momento de dizer a verdade. Estou prestes a me tornar um espantalho mutilado, com o calor carcomendo as fibras todas. Era manhã de uma segunda azul, em 2009, no mês de março. Antes que me fujam as ideias, vomito logo o essencial: matei Tolentino. Pronto, falei. Matei e mataria de novo. Sem conversinha de arrependimento. Eu tinha e tenho os meus motivos. Tolentino, por vontade própria, arrumou de ser o vigia da rua. Dona Clarisse, uma velhinha xexelenta, encrenqueira, fazia as vezes de gestora e apurava uma cota, toda semana, para comprar o alimento do pobre coitado. Eu me recusei; não pedi para ninguém ficar de guarda na minha porta. Andira, sem disfarçar, tirava dinheiro do nosso mísero sustento para alimentar o desgraçado. “Olha, o pobrezinho precisa da gente, ele não tem onde ficar. E é tão bonzinho…”. Foda-se, caralho. Parece que quanto mais o odiava, mais ele se mostrava sereno e afável. Um bosta de um fingido. Tinha as manhas de se fazer de coitado. Ainda mais, aquela velha apurava uma dinheirama para fazer sabe-se lá Deus o quê. Por que não o levava pra casa? Quando percebi, já havia cama, café da manhã, almoço, jantar e outras regalias, muito bem alojado na calçada, perto de nossa casa. Era um desplante, uma agressão à minha inteligência. Dar comidinha de mão beijada é coisa de comunista safado. Tem de ensinar a pescar e não dar o peixe, como diz o sábio ditado. Nesse belíssimo dia, estando de folga do serviço, com atestado frio, mais saudável que burro no campo, levantei às cinco, fiz o café e fui dar uma volta no bairro para averiguação. Não havia ninguém, só uns dois ou três gatos pingados, que passavam lá embaixo, na Avenida Central, para pegar o busão. O boteco do Jonas estava aberto, mas o cabra é meu camarada e não ia dar com a língua nos dentes. Ah, no dia anterior tinha preparado uma comidinha com capricho, um monte de carne moída com chumbinho. Levei o preparo no bolso. Sentindo uma tranquilidade mórbida e um êxtase sobrenatural, chamei-o para o canto, do lado do terreno baldio, e entreguei o petisco matinal. Caiu como um patinho, ou como um bobo Tolentino. Nunca me livrei de algo tão facilmente. Quando o bicho começou a se estrebuchar, fui para o boteco do Jonas e pedi uma cerveja gelada. Jonas perguntou a razão de minha felicidade. Respondi que havia ganhado o dia e que precisava comemorar. Jonas, dessa vez, quis me acompanhar, mas ficou meio aturdido com a vista do camarote. “Jonas, larga de besteira! O cachorrinho está velho demais, uma hora ou outra ia morrer. Viveu bem, comeu do bom e do melhor. Chega mais, aqui. Vamos brindar a santa passagem do infeliz!”. Ele me olhou com olhos de suprema condenação.


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