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segunda-feira, 8 de novembro de 2021

O Filho Pródigo


 

Limpou as lágrimas à pressa quando ouviu parar o carro, grata por a gripe que a atacara nos últimos dias servir de desculpa, mesmo esfarrapada, para os seus olhos avermelhados. Não que receasse uma sua reação adversa ou que a criticasse, mas por saber que se sentiria certamente magoado ao vê-la assim triste e suspeitar da causa da sua mágoa.

Era um bom filho, sempre o fora desde criança, atencioso, prestável, sem ele estaria provavelmente morta de carência, de solidão e abandono há muitos anos. Amava-o, claro, mas era mais por dever de mãe do que por gostar verdadeiramente dele. Sim, pode-se amar uma pessoa e não gostar dela, chegara há muito a essa conclusão.

Era uma boa pessoa, todos o diziam, muito trabalhador, honestíssimo, sempre afável e pronto a ajudar, sem sequer esperar que lho pedissem, mas brando, apagado, pouco ou nada emotivo. Totalmente diferente do outro...

Ah, o outro! Custava a crer que fossem irmãos, tão diferentes eram as suas personalidades. Onde um era retraído, calado, o outro era extrovertido, com as emoções à flor da pele, sempre a explodir por tudo e por nada.

Com este, nunca se sabia verdadeiramente o que pensava ou sentia, sempre muito controlado, sem cenas ou fitas. Nunca lhe conhecera uma birra, nem mesmo em pequeno, nunca o vira chorar de desgosto ou berrar de alegria. Ou rir desbragadamente. O máximo que lhe vira fora um pequeno sorriso, tão pequeno que se não estivéssemos atentos nem sequer o veríamos.

O outro, não, todo o mundo e arredores ficava imediatamente ciente do que sentia, fosse bom ou mau. Nunca passava despercebido, estivesse onde estivesse, mesmo em situações que exigiriam um certo decoro. Envergonhara-a repetidas vezes em público com as suas birras ou bom humor exagerado, mas mesmo nessas alturas sentira uma pontinha de orgulho por aquele filho tão diferente do resto da família.

Não, ele nunca suportaria a vida deste irmão, tão regrada, tão cheia de deveres zelosamente cumpridos, em que até as raras distrações eram programadas com muita antecedência e quase sempre mais para agradarem a outros do que a si.

Até nos amores eram totalmente opostos. Este casara discretamente com a primeira e única namorada que tivera, boa moça, sim, nada a dizer contra ela, mas não muito interessante nem particularmente bonita. E que nunca vira como filha, mesmo ao fim de tantos anos, não se dando até lá muito bem com ela, apesar de lhe ter dado os seus únicos netos (que soubesse). Nem sabia se era um casamento feliz, sempre suspeitara que nesse lar era ela quem mandava e tudo decidia, mas nunca pudera ter a certeza de que assim era.

E os dois netos eram certamente crianças bem-educadas, demonstravam-no, pelo menos, sempre que os via, e sabia que eram bons alunos. E, felizmente, davam sinais de terem alguma personalidade, cuidadosamente controlada na sua presença, “para não incomodarem a avó”, embora não chegassem aos calcanhares do tio, mas quem o conseguiria?

Não, este vivia ao sabor dos seus caprichos, sempre metido em esquemas de enriquecimento rápido e confiante em conseguir sair-se bem graças ao encanto que tão bem sabia usar quando lhe convinha. Nunca tivera um emprego, apenas “ocupações” e “negócios em perspetiva”. E escapava-se sempre na altura certa, deixando atrás de si caos e problemas, muitas vezes para o irmão resolver a fim de lhe evitar dissabores, ou, como em tempos ouvira dizer, até uma possível pena de prisão.

No amor, era a mesma coisa. Nunca lhe apresentara uma namorada, mas vira-o num desfile permanente com todas as beldades da vila e conhecia algumas histórias, apesar de suspeitar que lhe escondiam as menos abonatórias. Também aí nunca assentara, apesar de muitas o terem tentado, fascinadas pelo seu encanto e reputação de inacessível. Mas não, era sempre livre e totalmente senhor de si.

Pelo menos supunha que tudo continuava assim, há uns seis anos que nada sabia dele, desde que desaparecera depois de a convencer a investir as poupanças de anos num “esquema seguro” que deixaria ambos ricos — e que dera em nada, claro, exceto deixá-la sem nada para os últimos anos de vida.

Anos, Natal, nem um telefonema, nem uma mensagem ou um simples cartão. Silêncio total. Nem sabia se estava vivo ou morto, apesar de querer acreditar que se tivesse morrido alguém teria notificado a família.

Mas isso não a impedia de passar as vésperas desses dias festivos num alvoroço, esperançada de que dessa vez seria diferente, que haveria um contacto, por muito breve e impessoal que fosse.

Fora por isso que passara o dia a chorar. Fizera 65 anos na véspera, um marco importante na vida de uma pessoa, e acordara com a convicção absoluta de que desta vez é que era. Mas o dia passara-se e... nada! Fora um tremendo esforço mostrar-se alegre e satisfeita na festinha que este filho organizara com as poucas amigas que ainda lhe restavam. Ou com os presentes que ele e os netos lhe tinham dado, bem ao encontro das suas necessidades, mas sem aquele toque de loucura, de extravagância, porque ansiava secretamente, mesmo sem o saber.

Com o outro, bom, com o outro teria sido tudo bem diferente, nada de chazinho e amigas de longa data, teriam ido os dois a um lugar  bem caro e muitíssimo chique — esquecendo-se muito provavelmente da carteira em casa e deixando-lhe o ónus da conta com a usual promessa de “eu depois pago-te”. E ter-lhe-ia oferecido algo totalmente inútil, mas lindo, deslumbrante, até.

Estranho, em miúda, na Catequese, nunca entendera a parábola do filho pródigo, achara horrível o modo como aquele pai tratara o filho cumpridor, o bom filho, o que sempre se mantivera no seu posto e o ajudara, guardando festim e acolhimento caloroso para o outro, o mau filho, o que partira à aventura e desbaratara os seus bens sem pensar no velho pai ou no futuro.

E aqui estava ela, tantos anos depois, a fazer exatamente o mesmo, ou antes, a ansiar poder fazer o mesmo. Se ao menos pudesse ver o seu!

Luísa Lopes

Imagem de Christian Dorn por Pixabay 

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