Limpou as lágrimas à pressa quando ouviu parar
o carro, grata por a gripe que a atacara nos últimos dias servir de desculpa,
mesmo esfarrapada, para os seus olhos avermelhados. Não que receasse uma sua
reação adversa ou que a criticasse, mas por saber que se sentiria certamente magoado
ao vê-la assim triste e suspeitar da causa da sua mágoa.
Era um bom filho, sempre o fora desde
criança, atencioso, prestável, sem ele estaria provavelmente morta de carência,
de solidão e abandono há muitos anos. Amava-o, claro, mas era mais por dever de
mãe do que por gostar verdadeiramente dele. Sim, pode-se amar uma pessoa e não
gostar dela, chegara há muito a essa conclusão.
Era uma boa pessoa, todos o diziam, muito
trabalhador, honestíssimo, sempre afável e pronto a ajudar, sem sequer esperar
que lho pedissem, mas brando, apagado, pouco ou nada emotivo. Totalmente
diferente do outro...
Ah, o outro! Custava a crer que fossem
irmãos, tão diferentes eram as suas personalidades. Onde um era retraído,
calado, o outro era extrovertido, com as emoções à flor da pele, sempre a
explodir por tudo e por nada.
Com este, nunca se sabia verdadeiramente o
que pensava ou sentia, sempre muito controlado, sem cenas ou fitas. Nunca lhe
conhecera uma birra, nem mesmo em pequeno, nunca o vira chorar de desgosto ou berrar
de alegria. Ou rir desbragadamente. O máximo que lhe vira fora um pequeno
sorriso, tão pequeno que se não estivéssemos atentos nem sequer o veríamos.
O outro, não, todo o mundo e arredores ficava
imediatamente ciente do que sentia, fosse bom ou mau. Nunca passava
despercebido, estivesse onde estivesse, mesmo em situações que exigiriam um
certo decoro. Envergonhara-a repetidas vezes em público com as suas birras ou
bom humor exagerado, mas mesmo nessas alturas sentira uma pontinha de orgulho
por aquele filho tão diferente do resto da família.
Não, ele nunca suportaria a vida deste
irmão, tão regrada, tão cheia de deveres zelosamente cumpridos, em que até as
raras distrações eram programadas com muita antecedência e quase sempre mais para
agradarem a outros do que a si.
Até nos amores eram totalmente opostos. Este
casara discretamente com a primeira e única namorada que tivera, boa moça, sim,
nada a dizer contra ela, mas não muito interessante nem particularmente bonita.
E que nunca vira como filha, mesmo ao fim de tantos anos, não se dando até lá
muito bem com ela, apesar de lhe ter dado os seus únicos netos (que soubesse).
Nem sabia se era um casamento feliz, sempre suspeitara que nesse lar era ela
quem mandava e tudo decidia, mas nunca pudera ter a certeza de que assim era.
E os dois netos eram certamente crianças
bem-educadas, demonstravam-no, pelo menos, sempre que os via, e sabia que eram
bons alunos. E, felizmente, davam sinais de terem alguma personalidade,
cuidadosamente controlada na sua presença, “para não incomodarem a avó”, embora
não chegassem aos calcanhares do tio, mas quem o conseguiria?
Não, este vivia ao sabor dos seus
caprichos, sempre metido em esquemas de enriquecimento rápido e confiante em
conseguir sair-se bem graças ao encanto que tão bem sabia usar quando lhe
convinha. Nunca tivera um emprego, apenas “ocupações” e “negócios em
perspetiva”. E escapava-se sempre na altura certa, deixando atrás de si caos e
problemas, muitas vezes para o irmão resolver a fim de lhe evitar dissabores,
ou, como em tempos ouvira dizer, até uma possível pena de prisão.
No amor, era a mesma coisa. Nunca lhe
apresentara uma namorada, mas vira-o num desfile permanente com todas as
beldades da vila e conhecia algumas histórias, apesar de suspeitar que lhe
escondiam as menos abonatórias. Também aí nunca assentara, apesar de muitas o
terem tentado, fascinadas pelo seu encanto e reputação de inacessível. Mas não,
era sempre livre e totalmente senhor de si.
Pelo menos supunha que tudo continuava
assim, há uns seis anos que nada sabia dele, desde que desaparecera depois de a
convencer a investir as poupanças de anos num “esquema seguro” que deixaria
ambos ricos — e que dera em nada, claro, exceto deixá-la sem nada para os
últimos anos de vida.
Anos, Natal, nem um telefonema, nem uma
mensagem ou um simples cartão. Silêncio total. Nem sabia se estava vivo ou
morto, apesar de querer acreditar que se tivesse morrido alguém teria
notificado a família.
Mas isso não a impedia de passar as
vésperas desses dias festivos num alvoroço, esperançada de que dessa vez seria
diferente, que haveria um contacto, por muito breve e impessoal que fosse.
Fora por isso que passara o dia a chorar.
Fizera 65 anos na véspera, um marco importante na vida de uma pessoa, e acordara
com a convicção absoluta de que desta vez é que era. Mas o dia passara-se e...
nada! Fora um tremendo esforço mostrar-se alegre e satisfeita na festinha que este
filho organizara com as poucas amigas que ainda lhe restavam. Ou com os
presentes que ele e os netos lhe tinham dado, bem ao encontro das suas
necessidades, mas sem aquele toque de loucura, de extravagância, porque ansiava
secretamente, mesmo sem o saber.
Com o outro, bom, com o outro teria sido
tudo bem diferente, nada de chazinho e amigas de longa data, teriam ido os dois
a um lugar bem caro e muitíssimo chique —
esquecendo-se muito provavelmente da carteira em casa e deixando-lhe o ónus da
conta com a usual promessa de “eu depois pago-te”. E ter-lhe-ia oferecido algo
totalmente inútil, mas lindo, deslumbrante, até.
Estranho, em miúda, na Catequese, nunca
entendera a parábola do filho pródigo, achara horrível o modo como aquele pai
tratara o filho cumpridor, o bom filho, o que sempre se mantivera no seu posto
e o ajudara, guardando festim e acolhimento caloroso para o outro, o mau filho,
o que partira à aventura e desbaratara os seus bens sem pensar no velho pai ou
no futuro.
E aqui estava ela, tantos anos depois, a
fazer exatamente o mesmo, ou antes, a ansiar poder fazer o mesmo. Se ao menos
pudesse ver o seu!
Luísa Lopes
Imagem de Christian Dorn por Pixabay
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