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sexta-feira, 22 de outubro de 2021

O Maníaco Possível

 

Embora as distâncias não fossem mais as mesmas, e não representassem o mesmo obstáculo de eras e épocas anteriores, ou a incerteza das partidas, elos e destinos, ainda exigia-se, para sua transposição, um ato de vontade, e isso tanto Genuíno quanto Isadora sabiam. Conheceram-se eles pelas redes sociais, de distâncias medidas e calculadas em palavras e lapsos, e ignorando a fragilidade dos horizontes modernos, incentivados por noções paradoxais de proximidade e proteção, entregaram-se a sinceridades despudoradas, vindo os dois a se relacionar como não se relacionaram homens e mulheres em tempos de melhor contato.

A iniciativa fora dele, uma saudação casual, e ela, entediada, e por não ser de intimidades para com estranhos, indagou: Nos conhecemos? A pergunta, intimidadora em seu contexto, dir-se-ia um escudo contra terceiros, não o amedrontou. Perseverou nas afirmações e afirmou-se na perseverança, e enfrentando o ardiloso descaso de Isadora, perpassando os obstáculos iniciais do desinteresse com seu charme de homem seguro e confiante, atraiu-a. Ela, não acreditando-o real e sim um ardil de inimigas, esmiuçou os pormenores manifestos em sua vida online, contatos, fotografias, notícias e menções, e conforme as evidências ajustavam-se às suas aspirações, à eleita visão de seu futuro, e nela provocavam os mais distintos sentimentos, Isadora encontrou-se apaixonada.

Era médico cardiologista, descobrira ela, divorciado, com uma filha adolescente, favorável às armas, praticante de ciclismo. Cristão. Não afeita às aventuras da carne, destinada às da alma, rendeu-se ao perfil de Genuíno. Queria, desejava, mil laços além dos físicos, e o mesmo desejava ele. Foram dois meses de conversas e confissões até combinarem, apaixonados, de se conhecer. Genuíno compraria a passagem de avião e iria até Isadora. Passariam, nessa ocasião, um fim de semana no apartamento dela com o propósito de entrosarem-se, desvendarem-se.

Reunida com as amigas, Isadora revelou o seu caso virtual. Estou apaixonada, disse. E já nem sei se quero estar. Minha esperança é conhecê-lo, me decepcionar, falou, e guarneceu de sentimentos a aventura. Mostrou imagens de Genuíno, imagens de sua filha, de suas viagens, trechos de diálogos, e, entre os costumeiros elogios, ouviu de Adriana, amiga de infância, a primeira crítica.

Isadora, e se esse homem for um psicopata?

Impossível, respondeu ela. Olha o nome dele: Genuíno. Genuíno! Vê lá se é nome de assassino!

As meninas riram.

E outra, disse ela, já tentei de tudo para irritá-lo, e não consegui. É o cavalheiro dos meus sonhos.

Mais para o psicopata dos pesadelos, completou Adriana.

Ao final da reunião Isadora recebeu o aval, e a benção, das amigas, inclusive de Adriana. Restava a ela esperar. Era domingo, e o encontro estava marcado para dali a cinco dias. A semana, esta, ela passou enfeitando-se, entre o cabeleireiro e a manicure e a pedicure e a academia. Era uma mulher comum, com nenhum privilégio além da pele, lisa e cor de mel, entretanto, quando determinada, quando ébria de amor, transformava-se, e a violência de sua beleza atordoava tanto os incautos como os precavidos – e assim atordoou-se Genuíno ao, na tarde do encontro, apresentar-se a Isadora.

Meus bom Deus, disse ele, adentrando o apartamento. Se não fosse meu joelho ruim, me ajoelhava.

Ela sorriu. Beijaram-se assim de Genuíno largar a malinha no tapete. Às amigas, Isadora narraria depois, foi uma noite perfeita. Ele insistiu e preparou o jantar, e terminada a refeição entregaram-se um ao outro. Entre o par sucedeu-se um amor desesperado, atrapalhado, todavia gratificante. Nele descobriu um amante desinibido e carinhoso. Dormiram juntos, e é de se especular se ainda estariam juntos caso ela não despertasse com o peso da madrugada. A sós na cama, sentou, refez-se dos sonhos, e dentro do closet tremulava a sombra de Genuíno. Admirando-a, admirando o momento e o passado, entreviu nas ribanceiras da memória o alerta de Adriana – e, desperta, assaltaram-lhe as dúvidas. O que faria, ele, ali? Seria um ladrão profissional? Levantou-se. Como os felinos gravados em sua camisola, arrastou-se até tê-lo à mercê dos olhos. Era Isadora, então, outra escuridão na escuridão, a maior das escuridões.

Inerte, flagrou-o.

Genuíno não só vestira a lingerie preta de Isadora, o sutiã e a cinta-liga, e não só colorira os lábios de vermelhos e colocara saltos-altos, como, de lado, empinava o bumbum para o espelho e rebolava.

Surtada, em transe, Isadora invadiu o closet e só cessou as mordidas ao engasgar-se com sangue.


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Erik K. Weber
Gaúcho.






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