Embora
as distâncias não fossem mais as mesmas, e não representassem o mesmo obstáculo
de eras e épocas anteriores, ou a incerteza das partidas, elos e destinos,
ainda exigia-se, para sua transposição, um ato de vontade, e isso tanto Genuíno
quanto Isadora sabiam. Conheceram-se eles pelas redes sociais, de distâncias
medidas e calculadas em palavras e lapsos, e ignorando a fragilidade dos
horizontes modernos, incentivados por noções paradoxais de proximidade e
proteção, entregaram-se a sinceridades despudoradas, vindo os dois a se
relacionar como não se relacionaram homens e mulheres em tempos de melhor
contato.
A
iniciativa fora dele, uma saudação casual, e ela, entediada, e por não ser de
intimidades para com estranhos, indagou: Nos conhecemos? A pergunta,
intimidadora em seu contexto, dir-se-ia um escudo contra terceiros, não o
amedrontou. Perseverou nas afirmações e afirmou-se na perseverança, e
enfrentando o ardiloso descaso de Isadora, perpassando os obstáculos iniciais
do desinteresse com seu charme de homem seguro e confiante, atraiu-a. Ela, não
acreditando-o real e sim um ardil de inimigas, esmiuçou os pormenores
manifestos em sua vida online, contatos, fotografias, notícias e menções, e
conforme as evidências ajustavam-se às suas aspirações, à eleita visão de seu
futuro, e nela provocavam os mais distintos sentimentos, Isadora encontrou-se
apaixonada.
Era
médico cardiologista, descobrira ela, divorciado, com uma filha adolescente,
favorável às armas, praticante de ciclismo. Cristão. Não afeita às aventuras da
carne, destinada às da alma, rendeu-se ao perfil de Genuíno. Queria, desejava,
mil laços além dos físicos, e o mesmo desejava ele. Foram dois meses de
conversas e confissões até combinarem, apaixonados, de se conhecer. Genuíno
compraria a passagem de avião e iria até Isadora. Passariam, nessa ocasião, um
fim de semana no apartamento dela com o propósito de entrosarem-se,
desvendarem-se.
Reunida
com as amigas, Isadora revelou o seu caso virtual. Estou apaixonada, disse. E
já nem sei se quero estar. Minha esperança é conhecê-lo, me decepcionar, falou,
e guarneceu de sentimentos a aventura. Mostrou imagens de Genuíno, imagens de
sua filha, de suas viagens, trechos de diálogos, e, entre os costumeiros
elogios, ouviu de Adriana, amiga de infância, a primeira crítica.
Isadora,
e se esse homem for um psicopata?
Impossível,
respondeu ela. Olha o nome dele: Genuíno. Genuíno! Vê lá se é nome de
assassino!
As
meninas riram.
E
outra, disse ela, já tentei de tudo para irritá-lo, e não consegui. É o
cavalheiro dos meus sonhos.
Mais
para o psicopata dos pesadelos, completou Adriana.
Ao
final da reunião Isadora recebeu o aval, e a benção, das amigas, inclusive de
Adriana. Restava a ela esperar. Era domingo, e o encontro estava marcado para
dali a cinco dias. A semana, esta, ela passou enfeitando-se, entre o
cabeleireiro e a manicure e a pedicure e a academia. Era uma mulher comum, com
nenhum privilégio além da pele, lisa e cor de mel, entretanto, quando
determinada, quando ébria de amor, transformava-se, e a violência de sua beleza
atordoava tanto os incautos como os precavidos – e assim atordoou-se Genuíno
ao, na tarde do encontro, apresentar-se a Isadora.
Meus
bom Deus, disse ele, adentrando o apartamento. Se não fosse meu joelho ruim, me
ajoelhava.
Ela
sorriu. Beijaram-se assim de Genuíno largar a malinha no tapete. Às amigas,
Isadora narraria depois, foi uma noite perfeita. Ele insistiu e preparou o
jantar, e terminada a refeição entregaram-se um ao outro. Entre o par
sucedeu-se um amor desesperado, atrapalhado, todavia gratificante. Nele
descobriu um amante desinibido e carinhoso. Dormiram juntos, e é de se
especular se ainda estariam juntos caso ela não despertasse com o peso da
madrugada. A sós na cama, sentou, refez-se dos sonhos, e dentro do closet
tremulava a sombra de Genuíno. Admirando-a, admirando o momento e o passado,
entreviu nas ribanceiras da memória o alerta de Adriana – e, desperta,
assaltaram-lhe as dúvidas. O que faria, ele, ali? Seria um ladrão profissional?
Levantou-se. Como os felinos gravados em sua camisola, arrastou-se até tê-lo à
mercê dos olhos. Era Isadora, então, outra escuridão na escuridão, a maior das
escuridões.
Inerte,
flagrou-o.
Genuíno
não só vestira a lingerie preta de Isadora, o sutiã e a cinta-liga, e não só
colorira os lábios de vermelhos e colocara saltos-altos, como, de lado,
empinava o bumbum para o espelho e rebolava.
Surtada,
em transe, Isadora invadiu o closet e só cessou as mordidas ao engasgar-se com
sangue.
Blog do Autor: https://palpebrascomoondas.wordpress.com/
Twitter: https://twitter.com/asd3copas
0 comentários:
Postar um comentário