A
consulta estava marcada para as 15 horas de uma tarde de inverno. Chegou
acompanhado da esposa e levava um envelope contendo os resultados dos exames e
toda a sua sorte estava selada ali, naquele envelope branco com escritas em
verde que acabara de pegar no laboratório de análises clínicas.
Não tivera coragem de abrir o
envelope e as mãos trêmulas mal podiam suster o peso do seu diagnóstico. A
esposa tentava encorajá-lo dizendo que toda vida ele tinha sido muito forte e
determinado e não seria agora que uma meia dúzia de sintomas iria impedir os
seus sonhos.
No consultório aguardava sua vez,
juntamente com os outros que foleavam revistas velhas com medo de se olharam
nos olhos e ver a sua angústia refletida nos olhos dos demais, como se num
corredor da morte. Pensou na espera dos condenados à morte nos minutos fatais
que antecedem a execução.
Contudo, ele não estava ali para ser
fuzilado e aquilo era só uma consulta com o oncologista. Poderia, de repente,
não ser nada daquilo que ele imaginava desde que começou a sentir fortes dores,
perda de peso e um sem-número de pequenas evidências que ele colecionava sem
saber montar o derradeiro quebra-cabeça da existência saudável.
Vinte e sete anos de casamento, seis
filhos e a aposentadoria próxima o levava a fazer muitos planos de desfrute de
alguns dias de paz, depois de tantos e tantos anos de labuta constante e poucos
resultados práticos. Pelo menos conseguira educar os filhos no básico e a
partir daí as escolhas não seriam mais dele. No entanto preocupava-se.
A secretária chegou à saleta e
chamou-o pelo nome: “Seu Manoel?!”
O Doutor, entre sério e sorridente
disse: “sente-se”!
Reparou, por alguns instantes no
consultório do médico, de relance, pois logo em seguida o Doutor disse: “Bem,
vejamos o que temos aqui!” abriu o envelope e seus olhos percorriam o laudo do
laboratório e a sua fisionomia não revelava nada, enquanto lia e anotava os
dados numa ficha.
A esposa o aguardava do lado de fora
e os filhos todos espalhados pelo mundo, tentando se encaixar no mundo.
Sentiu-se só, vulnerável como no dia em que nascera, 58 anos atrás na zona da
mata mineira. Ansioso, aguardava a sentença do médico que, se favorável o
levaria de volta pra casa e, com algum repouso, dieta e medicamentos poderia
continuar a cuidar dos seus passarinhos.
O médico interrompeu seus
pensamentos, pigarreou, dobrou o papel do exame, colocou-o de volta no envelope
branco com letras verdes e disse, num tom normal de quem lida com a coisa
diariamente por anos-a-fio, num desafio constante de enfrentar e tratar a
doença dos outros.
-- Sô Manoel, não adianta eu mentir
para o senhor, os exames são claros. Terá que
ter muita coragem e enfrentar a coisa!
-- Doutor, quanto tempo me resta?
-- Difícil dizer, vai depender da
sua resposta ao tratamento, da quimioterapia, da radioterapia, da sua
tolerância e resistência à medicação... só posso dizer que faremos o melhor
para amenizar e aliviar seu sofrimento, em busca daquilo que seja melhor para o
senhor e sua família, dentro das nossas possibilidades.
Ainda uma vez olhou em panorâmica
para o consultório e deteve-se diante de um porta-retratos do médico e de sua
família, provavelmente era no México, Cancun talvez, enfim, cenários totalmente
improváveis para ele, agora e sempre.
Saiu do consultório já com uma
resolução tomada, de si para si, mas não diria nada à esposa Marlene, além do
terrível diagnóstico. Tinha uns contatos com a turma do bairro e contava com
eles para proporcionar-lhe os meios de que precisava para encerrar.
Era essa a sua primeira ideia, de
momento.
Já na rua, sua esposa, impaciente,
queria saber: “Marlene, querida, nada a fazer, é sério, já em estágio terminal
e poucos meses, pelo que entendi do médico”.
-- Não, não pode, não pode ser,
ainda não, não, pelo amor de Deus, não, nunca desanime, faremos o que for
possível, há de haver um jeito. Vamos buscar uma segunda opinião, ouvir nossos
filhos, tratamentos alternativos, milagres existem, pode crer, eu mesma sei de
muitos casos em quê...
Silêncio.
No dia seguinte acordou cedo, ou
melhor, nem dormira. Foi direto para a Vila Bragantina, aonde tinha aqueles
conhecidos e queria um três oitão. Uma varredeira de rua fazia o seu trabalho rotineiro
e o impediu, pela sua simples presença e testemunho, de consumar o seu intento,
num momento de choque e de desespero. No fundo ele não queria que ninguém
soubesse de sua desistência.
Manoel não sabia o que dizer em
casa, quando voltasse. Tomara um porre, pra finalizar. No entorno de onde
estava havia um galpão de reciclagem e ele ficou ali, absorto, observando e
absorvendo o movimento. Alguns traziam papel, caixas de papelão, plástico,
metais e latinhas amassadas num rodízio frenético e desimportante como a vida.
Uma garota japonesa e um velho
chamaram-lhe a atenção para um mesmo objetivo: a sobrevivência e a continuidade
da vida. Conversou com eles por algum tempo enquanto olhava para as árvores e
os pássaros cantando. Um corvo pousara sobre o seu destino e não havia asas
para surpreender a moita de mato que irrompera em seu caminho, como um
obstáculo.
No caminho de volta, circunscrevendo
até melhorar e retomar a fiada da vida inevitável verificou uma placa que
dizia: “Consultório de Psicologia”. Olhou para os lados, desconfiado e entrou.
Mesmo não havendo chances de salvar sua vida poderia, ao menos, compreendê-la
melhor, lidar com os desafios e as dificuldades que havia e seguir em frente
com qualidade de vida até o final inevitável que o médico havia dito e que ele
não poderia fugir. Era um diagnóstico terrível que ele teria que aceitar.
Todos os seus ancestrais haviam
passado por isso, por esse desafio antes de morrer e não podiam contar, naquela
época, com essa ajuda inestimável para proceder a travessia.
Estava resoluto a tentar e entrou
com uma ideia de recuperação em sua cabeça e a moça, simpática, ao recebê-lo
disse-lhe: ‘acho que posso te ajudar”! e assim foi..
As luzes na casa de Manoel, desde
então, tiveram uma nova perspectiva e luminosidade de compreensão, e quando ele
morreu a dor era menor, apesar da escuridão e de ter que conviver com ela.
Antes
que se diga, o corvo incorporou-se à família e o acompanhamento psicológico se
estendeu à viúva, dando um novo significado para a sua vida. Roupa limpa na
cama em que Sô Manoel se banhara em sua partida. Luz!
2 comentários:
Um delicioso soco.
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