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terça-feira, 19 de outubro de 2021

Louvação

 


 

Dona Maria Valda me pergunta, sempre, se não está bom de parar. Ela se refere ao meu trabalho incansável, do qual não consigo tirar férias; que não me permite, como nos velhos tempos, passar vários dias cheirando o seu cangote de alfazema. Mãinha diz que se arrepende “mucho” de ter me deixado ir a São Paulo; que eu não tinha nada que ver aí, na casa de Mariinha, sua irmã. “Isso foi a maior arrumação que você aprontou, Lucivalda!”. A expressão é magoada, como se minha tia e a cidade grande tivessem me tirado da vida prometida. Aquela era a vida de meus antepassados. Eu não estava disposta a retroalimentar o ciclo. No começo, nos idos de noventa, eu estava areada, sem rumo; mas enfrentei a barra de largar o colo de mãe para buscar um futuro melhor. E, aí, não falo de estudar, me formar; falo de arranjar trabalho e dinheiro para mandar à mãinha, que vivia na penúria e na tribulação, por ter de sustentar, praticamente sozinha, uma ruma de filhos: dez. O meu genitor se amasiou, depois do meu nascimento, a caçula, com outra mulher, nova, e daí surgiram mais uns tantos irmãos, que não conseguiria mensurar. Então, desde muito nova, pensava em mudar o fado de mãinha, para que ela pudesse descansar o couro, quente e esgotado da lida na roça. Quando parti, num dia em que o sol me expulsava, severo, reparei bem os sulcos do seu rosto, que se prolongavam para o pescoço, descendo pelo busto; e intuí, chorosa, que todo o corpo da franzina mulher era talhado da mesma forma da terra castigada pela seca. Apressei nos cumprimentos para não me arrepender, para não olhar para trás, e, como um potro domado e desgarrado, simplesmente segui viagem. Já não era a primeira perda de mãinha. Contei sobre o meu genitor bandoleiro. Porém, o que minou as forças da imensa senhorinha foi a partida de Luíza, a minha irmã encostada no mais velho, o Demétrio. Esta, sim, era a dor irremediável. A morte prematura, na flor da idade, da filha que ajudou a criar os demais, fez mãe definhar gradualmente. E, por isso, ficávamos como pintinhos debaixo de suas asas, para que mãe não se sentisse só, largada. A minha ideia de ir embora, com destino e possibilidade de voltar, não veio de supetão; foi algo pensado, por anos, em razão, sobretudo, da carência desmedida. Houve dias em que comíamos caça, noutros farinha, e, no auge do aperreio, lagartos, para que as tripas não “pregassem”, como mãe descrevia, com gestos vagos, teatrais; o processo da autofagia. Esperei completar a idade adulta para anunciar a minha decisão. Não que com dezoito anos pudesse me considerar adulta; pelo menos, era passível de arrumar um trabalho em qualquer estabelecimento, pois força e vontade não me faltavam. Nessa altura, também considerei que mãe estava melhor; havia voltado às atividades e comprara até umas cabeças de bode, pois que, para ela, “o leite da boda tem a sua sustância!”. A viagem foi longa, três dias e três noites, num ônibus caindo aos pedaços; sentada atravessada, dormindo pelas tabelas, onde e como dava. Chegando a São Paulo, me assustei de cara. Ajuizei que seria engolida pelo concreto. Uma cidade linda, colossal e ameaçadora, ao mesmo tempo. Tive medo de desbravá-la. Passei três horas perambulando pelas imediações da rodoviária, perdida, arrebentada, sem nenhum dinheiro para o luxo da comida; teria de guardar os trocados para continuar o itinerário. A minha intenção era de alcançar a bendita casa de tia Mariinha, a melhor irmã e amiga de mãe, “os querer”; a caçulinha, como eu, que se debandou para o sul, com iguais propósitos. Brasilândia não era aquilo tudo que imaginei. Casas amontoadas faziam o contraste com a liberdade que eu tinha nos descampados de Umirim. Tia Mariinha abriu a porta e, com todo amor, me abraçou infinito e foi me mostrar a sua pequena casa, na qual morava com duas crianças, meus primos, e o marido – que, felizmente, vivia na rua. Eu dormia com os meninos, com o meu colchão dividindo as suas camas, o que impedia a circulação e provocava certa chateação à noite, na hora de dormir, porque, principalmente o Natanael, ficava pulando de uma cama a outra e demorava a pegar no sono, por conta da novidade: eu; como dizemos no Ceará, para “se amostrar”. A precisão não oferece escolhas. De início, por sorte ou por desígnio de Deus, trabalhei como faxineira terceirizada na USP. Com um mês de serviço, por boas recomendações da chefia, dos professores e dos alunos, fui contratada. Lá, via aquele povo chique, e a beleza era portar um monte de livro debaixo do braço. Eu achava bonito demais quem lia qualquer tipo de livro. Frequentava, mais do que o normal, a biblioteca, para apreciar os livros e lamber o piso. Zaíra, a bibliotecária, vendo o meu gosto, me recomendou um programa da universidade que oferecia cursos para jovens e adultos que desejassem completar o ensino médio. Eu estudava com um ânimo incrível, como se os livros fossem os meus amigos e o meu refúgio. Na formatura, ganhei uma medalha de honra ao mérito, por minha dedicação e por minhas notas. A professora Ana Bernardes me incentivou a prestar o vestibular e a não parar de estudar; “Você tem futuro, menina!”. E, nalgum momento em que eu estava abatida ou cansada, era a sua voz que ouvia ecoar na minha cabeça, e logo me aprumava e acompanhava o fluxo do destino seguro. Acreditei. Para amparar o desejo, me afeiçoei aos alunos de vestimenta branca; conversava com um e com outro, para saber como era fazer medicina. Alguns, pouco caso; no entanto, a maioria me incentivava. Teresa foi uma delas. Deu-me todas as suas apostilhas fresquinhas do último vestibular. “Estude, Lúcia! Você é muito inteligente; não pode desperdiçar um dom de Deus”. Oxe, com essas palavras revigorei; estudava mais e projetava aos céus a minha louvação. Tia Mariinha ficava inculcada com a minha teima. “Menina, você não pode passar a noite aí enfurnada nos livros; isso vai dar uma canseira nas vistas”. E eu, contumaz, permanecia na sala, com a luz do abajur, estudando; e tantas vezes vi entrar o Tonny – vulgo Antônio –, morto de bêbado, querendo me bolinar. Depois que dei um murro bem no meio das ventas do cabra, ele aprendeu o fim de sujeito safado. Estava me preparando para o terceiro vestibular em medicina, determinada, quando tia Mariinha se separou do encosto e pediu que eu saísse do trabalho para cuidar dos meninos; que me daria um dinheiro para eu comprar as minhas “besteirinhas”. Tia não ganhava muito, trabalhando de merendeira, mas tínhamos um pouco mais que o trivial para a mantença. Cuidar das crianças foi uma tarefa árdua: Natanael, o mais novo, ficava agarrado aos meus pés; e Jonathan, ao contrário, queria se ver livre de mim, para ganhar o mundo e se perder na vida. Então, eu ficava nessa historieta de gato e rato, sem sossego para estudar; conseguia somente quando tia chegava do trabalho, ou quando estivessem dormindo. E o grande dia chegou: parece que por caridade ou compensação, Deus ouviu as minhas preces; passei para o curso de medicina na USP. Compartilhei com as minhas amigas Ana Bernardes e Teresa, que, admiradas, choraram litros de alegria, as duas; pensei que houvessem combinado. Tia Mariinha deu uns pulos em casa, de encostar a mão no teto. Ela gritava e assustou as crianças, que se mandaram para a rua. Naquela hora, tia não queria saber de arenga de menino; me deu um abraço arrochado, me beijou, sem exagero, umas trinta vezes, e disse que eu seria a primeira doutora da família. Enchia a boca para dizer: “A primeira doutora da família!”. Eu percebia que estava apenas começando a minha bela e intensa caminhada. Já na faculdade, na primeira aula, um professor esquisito, da disciplina de anatomia humana, pediu para que os alunos se apresentassem. Acho que, na sala, só havia eu e a Flávia de pele escurinha. Quando chegou a minha vez de falar, quase no fim, percebi um burburinho, uma aparente perturbação. Depois, Flávia me confirmou: “Amiga, as pessoas não estavam acreditando quando você disse que tinha estudado sozinha; que vinha do interior do Ceará. Realmente, é fantástica a sua história!”. Notei, com o tempo, olhares de perseguição; nem eu, nem Flávia podíamos sair da linha; éramos cotistas, e isso também era uma afronta para os demais. Segui meu caminho, aos atropelos, mas segui. Com pouco dinheiro para comprar os materiais, pedia a um e a outro, fazia bico de diarista, o que aparecesse; não perderia por nada a bênção divina. Os algozes soltavam montanhas de pedras, sem entender, pobres de espírito, que eu era calejada na lida, e que os supostos obstáculos serviriam de fundamento para que eu pisasse firme, obstinada. Concluí a faculdade e nesse tempo todo não revi mãinha. Nossas conversas se estendiam, por telefone, horas a fio – um irmão meu, o Cipriano, possuía um projeto de telefone, que mais parecia uma arma, de tão antigo; esse era o meu canal direto com o paraíso. Prometi que voltaria o mais rápido possível. Tive ainda de passar três anos, além dos seis da graduação, na residência em infectologia. Portanto, calculava um pouco mais de uma década em SP; na cidade que, contrariando o poeta, encontrei o abrigo e o amor. Poxa, me assustei; não vi o tempo correr. Sobre a infectologia, nunca pensei em trabalhar com esse tema; mas as coisas acontecem como têm de ser. Foi primordial a lembrança de uma infestação generalizada de cólera, que dizimou trinta e duas pessoas de uma população miúda, no fim da década de oitenta. As autoridades não deram confiança. E eu vi, com esses olhos que a terra há de comer, o padecimento de mãe, que suportou as perdas de uma irmã e da mãe, ambas pela “maldição”. O fato marcou muito a minha família; e um tiquinho de cada família esquecida do sertão do Ceará. Por uma boa preparação dos céus, hoje escrevo do meu polo de apoio, em São Paulo; da minha alma mater, no meio de uma pandemia que destroça o país e o mundo. As autoridades, de novo, não estão nem aí. Agora, são negacionistas; são contra a ciência. Mas não me abalo; só um touro para me derrubar. Estou disposta a trabalhar vinte e quatro horas, de domingo a domingo, para salvar vidas. Colegas perguntam qual a estratégia para me manter em pé, com longos turnos no laboratório – e aí não há brincadeira, ou insinuações, como se eu estivesse sob o efeito de alguma droga; mas algo genuíno, puro, porque sabem do meu proceder. Digo que na vida passei por muitas pandemias, de tantas dimensões, que, talvez por sina, venho sendo fortalecida para suplantar e a atuar nesse instante de grande luto. E luto! Lutarei para não sermos estatísticas, números. Meu nome na história da ciência brasileira é um detalhe. Fico honrada com os prêmios que recebi; contudo, o presente e a bênção correspondem a doar a vida para debelar os vírus que infestam essa nação.

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