Acordou com o ranger da porta. Ainda meio a dormir entreabriu as pálpebras, tentando estabelecer contacto com o mundo exterior. O quarto estava deserto, e nem podia estar de outro modo uma vez que se fechava todas as noites à chave. No entanto tinha a certeza de ter ouvido a porta abrir-se: as dobradiças faziam um ruído característico, um misto de gemido e rilhar de dentes, que o incomodava tanto ao fim de vinte anos como no primeiro dia em que se mudara para aquela casa. Já tentara tudo, incluindo várias mudanças de ferragens, mas nada parecia ser capaz de eliminar aquele som verdadeiramente infernal.
Talvez tivesse sido um sonho. Acontecia-lhe com frequência ter sonhos de tal modo reais e intensos que mesmo muito depois de estar acordado, e bem acordado, continuava a não ser capaz de dizer onde acabava o imaginário e começava a realidade. Ainda devia ser muito cedo, a avaliar pela luz mortiça que entrava pelas janelas mal tapadas pelas téues cortinas brancas. Mas familiarizado como estava com o quarto onde passava a maior parte do seu tempo, sabia que estava tão só como sempre o estivera desde há longos anos.
Virou a cabeça de modo a poder ler os números vermelhos
do mostrador do relógio colocado na mesa de cabeceira. Eram apenas seis da manhã,
muito antes da hora a que habitualmente acordava. Este facto era, só por si,
bastante estranho. Pertencia ao tipo de pessoas com um relógio interno de
grande precisão e acordava sempre à hora pretendida, a menos que algo de
exterior o despertasse antes do tempo. O que parecia ser o caso, embora não
conseguisse identificar a causa da perturbação ou ruído que o acordara.
Enfiou-se um pouco mais para dentro dos lençóis, acomodou
melhor a cabeça na almofada e cerrou os olhos, numa tentativa de voltar a adormecer.
No entanto havia algo que continuava a preocupá-lo, algo de muito ténue e vago
que identificara quase inconscientemente no instante de acordar mas que depois
lhe escapara por completo. Mentalmente passou revista ao quarto, tal como o
vira no momento em que abrira os olhos. Mas não conseguia lembrar-se de ter
notado nada de anormal ou estranho. Muito arrumado e maníaco da ordem como era,
teria reparado logo se alguma coisa não estivesse no seu lugar habitual.
Tentou fazer o vácuo no seu espírito, pois bem sabia que
enquanto tivesse qualquer preocupação em mente não seria capaz de voltar a
adormecer. Ao fim de alguns instantes começou a sentir que deslizava suavemente
para dentro do mundo cinzento do sono e dos sonhos. Estava mesmo, mesmo, a
adormecer quando uma ideia súbita lhe iluminou a mente, despertando-o por
completo e fazendo-o sentar-se bruscamente na cama. Tinha conseguido
identificar o elemento estranho e anormal que procurava: instantes antes de
abrir os olhos pela primeira vez, sentira no quarto, muito claramente, um forte
cheiro a tabaco de cachimbo que desaparecera totalmente, de um modo súbito e
inexplicável, mal olhara na direção da porta.
Ora isto era verdadeiramente impossível, pois desde que
ali vivia nunca vira nenhum dos moradores fumar naquela casa, quer fosse
cachimbo, charuto ou cigarros. Havia, até, uma forte postura antitabaco, que os
levava a um certo distanciamento hostil em relação aos fumadores seus
conhecidos. Era pouco credível que de um momento para o outro um deles se lembrasse
de começar a fumar cachimbo, e logo às seis da manhã. Ou que tivesse convidados
que o fizessem. Além de que o cheiro a tabaco tem tendência a permanecer no ar
durante longo tempo, não desaparecendo daquela maneira tão brusca e repentina.
Sabia bem que já não seria capaz de voltar a adormecer,
pelo que decidiu levantar-se. O seu primeiro gesto foi ir até à porta e
experimentá-la com cautela. Estava fechada à chave, tal como a deixara na noite
anterior quando se retirara depois do jantar. Tinha a certeza de que assim
seria, pois a mania de se fechar estava de tal modo arreigada nele que até
mesmo o fazia sempre que utilizava o quarto de banho que fazia parte dos seus
aposentos privativos. Mas gostou de o confirmar pois havia sempre a
possibilidade de desta vez se ter esquecido de o fazer, o que teria permitido a
entrada no seu quarto a qualquer um dos outros moradores da casa, por engano ou
voluntariamente.
Sentindo-se cada vez mais confuso com a situação vestiu o
seu grosso roupão, para se proteger do frio da madrugada, e foi sentar-se no
fundo cadeirão colocado frente à única janela do quarto. Era o seu local
favorito, pois tinha à mão tudo de que precisava para o ajudar a passar os dias sempre vazios: uma estante recheada de
livros e numa mesa baixa, o pequeno rádio portátil, revistas, a prancha de
madeira e os instrumentos de desenho. Através das finas cortinas quase
transparentes podia ver que o dia mal começava a nascer. Raras vezes estava a
pé para observar este acontecimento, que não lhe agradava particularmente e
hoje ainda se sentia com menos paciência do que habitualmente para os espetáculos
da Natureza. Pegou em vários livros ao acaso, que folheou e logo abandonou por
não conseguir concentrar-se em nenhum. Finalmente descobriu numa revista um
artigo divertido, conseguindo assim distrair-se até à hora a que habitualmente
se levantava.
O resto do dia decorreu na mais completa normalidade. Não
havia hóspedes novos ou convidados a assinalar, as refeições servidas foram as
habituais para aquele dia da semana e época do ano, as conversas à mesa tiveram
a banalidade do costume e as suas atividades seguiram a mesma rotina dos
milhares de dias que passara como residente naquela casa de hóspedes. De tal
modo que quando se retirou já mal se lembrava dos acontecimentos que tinham
precedido e provocado o prematuro despertar dessa manhã. E o mesmo aconteceu
nos três dias seguintes. Convenceu-se, então, de que nada de real se passara
naquela estranha ocasião. Fora, apenas, vítima de mais um dos seus sonhos mais
reais que a própria realidade.
Ao quarto dia, porém, algo sucedeu que abalou
profundamente esta sua convicção. Foi logo a seguir ao almoço, quando se
preparava para passar a tarde muito bem instalado no seu confortável cadeirão,
a reler um dos seus livros preferidos. Ao abrir a porta do quarto sentiu de
novo no ar aquele mesmo cheiro a tabaco de cachimbo, forte e um tanto ou quanto
adocicado, que apesar de tudo continuava a associar no seu espírito ao acordar
intempestivo daquela manhã ainda tão recente. Espantado, parou no umbral, sem
saber se havia de entrar ou de sair. Mas como o cheiro em breve desapareceu,
tão completamente que era quase como se nunca tivesse existido, decidiu-se a
penetrar no que até então considerara o seu refúgio, fechando a porta atrás de
si.
A primeira coisa que viu foi um livro aberto em cima da
mesa. Ora isso era uma coisa que ele nunca fazia. Quando interrompia a leitura
por qualquer motivo, nem que fosse por breves instantes, fechava sempre o
volume em questão, depois de marcar cuidadosamente o ponto em que ia com a
ajuda de um marcador em fino couro lavrado, de que possuía uma vasta quantidade
de todas as cores e feitios. Pousar um livro assim aberto daquela maneira só
servia para lhe partir a lombada e permitir que a poeira existente no ar se
acumulasse nas suas páginas.
Por instantes acalentou a ideia de que talvez uma das
empregadas fosse a autora de tão irresponsável ato. Mas isso não era possível,
pois estivera a desenhar no quarto muito depois de completada a sua limpeza e
tudo estava então no seu lugar. Além disso, em tantos anos de estadia nunca
nenhum dos seus pertences fora mexido ou perturbado para além do que era
estritamente necessário para assegurar um serviço perfeito e bem executado. E
nenhum dos outros hóspedes poderia ter entrado no quarto durante a sua
ausência, a menos que possuísse um duplicado da chave.
Sentindo-se mais curioso do que verdadeiramente
preocupado, aproximou-se da mesa e pegou no livro que tão descuidadamente ali
fora deixado por mão desconhecida. Eram os poemas completos de William Blake,
um pesado volume ricamente encadernado que herdara do pai e que raras vezes
lera na totalidade. Mesmo sem querer leu algumas linhas de um dos poemas e
antes de se dar conta do que acontecia tinha-se instalado no seu já velho
cadeirão de modo a continuar a leitura numa situação de maior conforto.
Passou uma tarde bastante agradável, redescobrindo poemas
de que mal se lembrava e que, por qualquer razão, lhe pareciam agora ser muito
belos e profundos. Não conseguia sequer perceber porque nunca apreciara
devidamente Blake, que sempre achara pedante e muito rebuscado. Só parou para
acender a luz e para jantar, tendo prosseguido a leitura mal regressou ao
quarto. Deitou-se já muito tarde, quase de madrugada, com a sensação de ter
vivido nesse dia algo de novo, o que de há muito lhe não acontecia. Nem achou
estranho não ter dedicado mais tempo à análise e tentativa de resolução do
mistério da identidade do invasor da sua privacidade.
No manhã seguinte deu-se nova ocorrência estranha. Era o
dia em que habitualmente ia ao banco levantar o dinheiro que se destinava às
suas pequenas despesas mensais. Ao regressar encontrou a prancha de madeira
caída no tapete aos pés da cama e presa a ela um desenho inacabado. Representava
uma árvore totalmente despida de folhagem, meia encostada a uma rocha de forma
estranha e ameaçadora, tendo ao fundo umas montanhas apenas esboçadas. O estilo
era muito diferente do dele, pois limitava-se a desenhar arranjos de flores e
pequenas paisagens idílicas. Tudo muito suave e levemente colorido. No ar
pairava ainda o já inevitável cheiro a tabaco.
Desta vez sentiu-se bastante assustado. Um livro deixado
aberto em cima de uma mesa podia muito bem ser obra de uma das empregadas,
embora esta hipótese não fosse de facto credível. Ou até mesmo resultar de um
descuido seu, de que se esquecera por qualquer motivo. Mas este desenho nunca
poderia ter saído da sua mão e, que soubesse, não havia na casa mais ninguém
que se dedicasse a qualquer tipo de atividade artística. Mesmo supondo que
alguém desenhava, mantendo até então a sua atividade em segredo, como é que
tivera acesso ao seu quarto, sempre bem fechado quer ele ali estivesse quer
não?
A ideia de um duplicado clandestino da sua chave voltou a
aflorar-lhe a mente, embora não conseguisse imaginar quem o poderia ter obtido
e com que fins. Com o seu exemplar, único segundo fora informado, ninguém
entrara de certeza, uma vez que nunca o largava fosse para o que fosse. Se por
qualquer razão tinha de sair durante as horas em que era efetuada a limpeza,
então esta era muito simplesmente adiada para mais tarde ou até mesmo para o
dia seguinte. Fora esta uma das condições que exigira ao alugar os melhores
aposentos disponíveis na modesta casa de hóspedes que descobrira por acaso ao
mudar-se para esta pequena cidade de província.
Embora não acreditasse muito na existência desta segunda
chave estava suficientemente alarmado para agir sem perda de tempo. Voltou, por
isso, a sair a fim de adquirir uma nova fechadura para a porta do quarto.
Esperou que todos se deitassem e só passado algumas horas, quando lhe pareceu
que mais ninguém estaria acordado, procedeu à mudança. Foi um trabalho bastante
difícil por causa da necessidade de evitar barulhos que pudessem despertar e
alarmar os restantes hóspedes, levando-os a fazer perguntas a que só com grande
dificuldade seria capaz de responder. Acabada esta tarefa sentiu-se logo muito
melhor e foi com o espírito sereno e em paz que adormeceu mal pousou a cabeça
na almofada.
Não tardou, porém, a verificar que a sua atividade noturna
não passara de despesa e trabalho em vão. Nas semanas que se seguiram o intruso
continuou a invadir-lhe o quarto a qualquer hora e com toda a impunidade, sem
que lhe fosse possível descobrir o mínimo indício quanto à sua identidade ou
modo de atuação. O resultado das suas visitas era sempre bem visível: livros
deixados abertos em cima da mesa ou da cama, desenhos inacabados ou apenas
esboçados, revistas com páginas assinaladas a vermelho ou arrancadas,
fotografias retiradas do precioso álbum que guardava na terceira gaveta da
cómoda e espalhadas pelo chão ou pela cama, roupas que há muito não usava
dispostas com todo o cuidado por sobre as costas do cadeirão, quase como se
tivesse acabado de as despir, e, de uma única vez, o rádio que começou a tocar
uma música dos seus tempos de liceu mal ele tocou na maçaneta da porta. E
ficava sempre a pairar no ar, por breves momentos, o forte cheiro a tabaco de
cachimbo que detetara da primeira vez.
Aos poucos e poucos começou a detetar uma certa lógica,
quase um plano, por detrás das ações do seu visitante. Os livros pertenciam
sempre ao conjunto herdado da família e que tinham sido parte integrante da sua
juventude, influenciando de modo decisivo o seu modo de ser e de pensar. As
páginas assinaladas ou arrancadas das revistas eram as que traziam referências
a locais que em tempos frequentara, conhecera ou sempre desejara visitar ou a
assuntos por que se interessara num passado que há muito considerava morto e
esquecido. As fotografias eram sempre retratos de pessoas em que não pensava há
anos e de que já só possuía uma muito vaga recordação. As roupas, essas, eram
peças que guardara durante anos a um canto de um armário, nem ele sabia muito
bem porquê, talvez por representarem épocas ou acontecimentos que em tempos
considerara importantes ou particularmente felizes.
Sem mesmo se aperceber disso habituou-se a estas
estranhas e sempre inesperadas intervenções, deixando de se surpreender ou
espantar com estes factos que não podia explicar e nem percebia porque se
assustara tanto a princípio. Começou, também, a recordar com uma nitidez penosa
todo um passado que jurara enterrar para sempre após o acidente que o destruíra
e desfigurara, fazendo-o perder o gosto pela vida e pelo convívio com os outros
seres humanos. A rotina dos seus dias, até então sempre iguais, mudou por
completo, sendo agora comandada pelas ações do invisível visitante.
Se calhava deixar um livro aberto em qualquer página,
logo ele se apressava a lê-lo, saboreando passagens meio esquecidas ou que não
se lembrava de alguma vez ter apreciado devidamente. Reencontrou, assim, o
gosto pela leitura em profundidade, pela análise de ideias que muitas vezes lhe
tinham escapado nas suas leituras rotineiras e feitas apenas para preencher as
muitas horas vazias de cada dia. Dava a impressão de que esses livros eram
muitas vezes escolhidos por se relacionarem entre si, quer por mérito próprio
quer por associação de recordações e ideias relacionadas com a época em que os
lera pela primeira vez.
Por vezes acontecia que o sítio em que o livro ficava
aberto trazia referências a outras obras do mesmo ou de outros autores. De
início não prestou muita atenção a este pequeno pormenor, que lhe parecera
fruto do acaso, mas quando isto acontecia o livro voltava a aparecer, dia após
dia, e sempre aberto na mesma página. Finalmente rendeu-se à evidência e
apressou-se a procurar esses livros, quer em lojas, quer na Biblioteca Pública.
Deste modo, e pela primeira vez desde há muitos anos, fugiu ao universo
restrito de obras, todas elas originárias da sua vida de antes, que lia e relia
sem cessar, num círculo sem início e sem fim que em nada contribuía para
melhorar as suas ideias ou conhecimentos gerais.
Foi também, obrigado a sair mais de casa e a prolongar
mais essas saídas, pois nem sempre lhe era fácil encontrar as obras indicadas
pelo seu exigente mentor. Como alguns dos livros eram bastante caros e o
dinheiro que recebia mensalmente do seguro não lhe dava para grandes luxos
via-se frequentemente forçado a recorrer à sala de leitura da Biblioteca. A
princípio sentira grande relutância em entrar num local frequentado por tanta
gente desconhecida, e onde a sua cara cheia de cicatrizes atraía a curiosidade
e os olhares gerais. Mas irritava-o tanto encontrar dia após dia o mesmo livro
sempre aberto no mesmo sítio, que acabou por se decidir e agora até já nem
reparava se as pessoas olhavam para ele ou não. Tornara-se conhecido dos
frequentadores habituais e sentia-se um pouco como na casa de hóspedes: uma
parte integrante do cenário.
As revistas causaram-lhe um tipo muito diferente de
problemas, pois não gostava de recordar os projetos que outrora fizera e que o
seu acidente reduzira a nada. Deixara de adquirir revistas especializadas em
viagens ou assuntos científicos precisamente para evitar recordações dolorosas.
Infelizmente, até mesmo as revistas aparentemente mais inócuas traziam de
quando em quando um artigo ou referência a um dos assuntos que em tempos tinha
sido a sua grande paixão. Resistiu o mais que pôde, mas acabou por fazer
algumas concessões, raras e pequenas a princípio e depois cada vez maiores e
mais frequentes. Chegou mesmo ao ponto de assistir a um ciclo de conferências
sobre a reprodução das chitas, ignorando com firmeza o ar espantado com que os
restantes participantes acolheram a sua aparição um pouco tardia.
Mas foram as fotografias e as roupas velhas que lhe
infligiram os maiores sofrimentos e, simultaneamente, as principais mudanças no
seu modo de pensar e de viver. Arrependeu-se mais de uma vez de não ter tido
nunca a coragem de deitar tudo isso no caixote de lixo mais próximo, cortando
de vez com o passado. Chegou mesmo a empacotar o álbum e a maior parte do seu
guarda-roupa em sacos plásticos que pensava retirar do quarto um a um, de modo
a não provocar estranheza ou suspeitas nos seus companheiros de habitação. Mas
nunca conseguiu levar por diante o seu intento, nem mesmo quando a última
fotografia que tirara a Cristina e a João apareceu sobre a mesa de cabeceira,
apoiada ao candeeiro numa posição tal que foi a primeira coisa que viu mal
abriu a porta. Nesse dia o seu sofrimento atingiu uma intensidade tal que só
desejava ver na sua frente o impiedoso vasculhador da vida alheia para o poder
torturar, esfaquear ou estrangular. Bem contra a sua vontade deu por si a
recordar o seu próprio passado em todo o seu esplendor e miséria.
Nascera e fora criado numa grande cidade, no seio de uma
família numerosa, nem melhor nem pior do que muitas outras. Aluno mediano mas
interessado, sentira sempre uma certa atração por tudo o que dissesse respeito
a animais exóticos ou a locais pouco conhecidos e quase desertos. O seu sonho
de infância era vir a ser explorador ou domador de feras num circo. Formara-se
em Biologia, sem grande distinção, arranjando depois emprego como assistente
num grande laboratório de pesquisa médica. O trabalho não lhe agradava
totalmente pois, devido à falta de brilhantismo do seu intelecto destinavam-lhe
sempre os trabalhos mais repetitivos e monótonos. Mas compensava largamente a
sua frustração através da leitura de revistas sobre os seus assuntos favoritos,
ao mesmo tempo que planeava uma viagem de um a dois anos através do continente
africano, visitando muito particularmente as suas zonas menos frequentadas.
Conhecera Cristina numa festa dada por um colega de
trabalho e passado pouco tempo tornaram-se inseparáveis. Já anteriormente
tivera algumas ligações amorosas, mas nada de especial se comparadas com o
bem-estar e prazer que sentia quando estavam juntos. Casaram passados oito
meses, o que levou ao adiamento da viagem a África por tempo indefinido. João
nasceu ao fim de um ano e daí em diante a vida do casal entrou na rotina
satisfeita em que se conservou até ao fim. Eram felizes, de uma felicidade
calma e sem grandes sobressaltos, ganhando o suficiente para terem uma vida
desafogada, podendo mesmo oferecer-se um ou outro pequeno luxo de vez em
quando. Chegaram, até, a fazer algumas viagens, nada de especial quando
comparadas com a travessia de um continente, mas suficientemente interessantes
para acalmarem a sua sede de exótico e de aventura.
João tinha feito há pouco os oito anos quando tudo isto
se desmoronou. Tinham ido passar a semana de férias da Páscoa com os pais de
Cristina, que possuíam uma bela quinta cheia de cavalos, cães e aves de todo o
tipo. Como não dispunham de muitos dias, o tempo estava mau e a distância era
grande decidiram não utilizar o carro. Ao regressarem a casa, o avião em que
viajavam tivera sérios problemas de motores no momento da aterragem e acabara
por se desfazer ao fundo da pista, num
inferno de chapas retorcidas e de violentas chamas. Houve muito poucos
sobreviventes, e destes a maioria com graves ferimentos. Cristina e João contavam-se
entre os mortos.
Quando finalmente saiu do hospital, com o corpo e a face
cobertos de cicatrizes, não chorou, não se lastimou, não bramou contra o
destino injusto que destruíra o seu mundo familiar. Decidiu, muito
simplesmente, abandonar tudo o que até então fizera parte da sua existência: o
emprego, os amigos, a restante família e, até, a cidade onde nascera e sempre
vivera. Com o dinheiro da indemnização oferecida pela companhia aérea mudara-se
para uma pequena povoação bem longe da sua terra natal, instalara-se naquela
discreta casa de hóspedes e ali passara vinte anos de uma vida recolhida e
rotineira. As únicas pessoas com quem contactava eram os outros hóspedes e
empregados, todos antigos na casa e a quem já se habituara, e os empregados do
banco e de uma ou outra loja da vizinhança, que satisfaziam as suas poucas
necessidades. Até que um leve cheiro a tabaco de cachimbo viera perturbar o
delicado equilíbrio que conseguira muito a custo estabelecer entre a sua dor e
a necessidade de esquecimento, quebrando o forte muro por detrás do qual
encerrara toda a sua angústia e revolta.
Nos dias imediatamente a seguir ao aparecimento da fotografia fatídica abandonou totalmente a leitura e as saídas a que se começara a habituar. Fechou-se ainda mais no quarto do que costumava fazer antes da intervenção do visitante, passando os dias e grande parte das noites sem nada fazer, muito simplesmente sentado no cadeirão a contemplar a janela com um olhar fixo que parecia nada ver. Esquecia-se das horas e eram obrigados a chamá-lo para as refeições, a que assistia de muito má vontade e com um ar distante e ofendido. Só não faltava por achar ainda mais incómoda a necessidade de responder às inevitáveis perguntas sobre o seu estado de saúde que a sua ausência acarretaria.
O desconhecido responsável por toda esta angustiosa situação respeitou a sua necessidade de isolamento e solidão durante exatamente três semanas. Durante este período nada no seu quarto foi perturbado ou mexido, parecendo até que tudo estava como sempre fora. Mas ao fim deste tempo voltou de novo a atuar. Todos os dias uma nova fotografia surgia nos locais mais inesperados, tão ardilosamente colocada que antes de ter tempo de se aperceber do que se passava já os seus olhos e a sua mente a tinham absorvido. Por vezes eram retratos de amigos, em festas ou reuniões, de outras vezes representavam familiares mais ou menos distantes, mas sempre intercaladas com elas havia cenas de Cristina e de João, obtidas em tempos mais felizes.
Com o passar do tempo foi-se apercebendo de que a visão
dessas faces tão queridas já não lhe causava o mesmo sofrimento atroz dos
primeiros momentos. Sentia saudades, isso sim, desgosto e tristeza também, mas
suportáveis. Tinha, até, um certo prazer melancólico em recordar pequenas
conversas ou brincadeiras que partilhara com o filho ou com a mulher. Voltou a
arrumar as suas coisas nos respetivos lugares, pondo totalmente de parte a
ideia de se desfazer dos poucos testemunhos visíveis que restavam da sua vida
passada.
Simultaneamente, e pela primeira vez desde que para ali fora, começou a interessar-se um pouco pelas pessoas que viviam debaixo do mesmo teto e que acotovelava diariamente sem mesmo demonstrar que as via. Verificou que pertenciam a todos os géneros humanos, medianas, razoáveis ou más, aborrecidas ou bem vivas, inteligentes ou pouco espertas, cultas ou ignorantes. Descobriu que até tinha alguns interesses em comum com umas poucas delas, o que contribuiu para aumentar o seu crescente amor e interesse pela vida.
Chegou mesmo a ir passar um fim de semana a observar pássaros na companhia de um vizinho de patamar que pertencia a uma organização local que se dedicava a esse tipo de atividades. Divertiu-se bastante, embora descobrisse que já pouco sabia do muito que aprendera durante os seus anos de faculdade. Mas isso só serviu para lhe estimular o gosto da leitura e a vontade de voltar a estudar assuntos por que em tempos se interessara de um modo bastante apaixonado.
Foi após esta pequena excursão que pararam
definitivamente todas as atividades inexplicáveis que tinham tido por cenário
os seus aposentos. Nada aparecia agora fora do seu lugar próprio e se queria
rever uma fotografia, então tinha de ser ele a procurá-la no álbum. Com grande
espanto seu sentiu bastantes saudades das visitas daquele alguém ou daquela
coisa de que tivera tanto medo e que tanto sofrimento e dor lhe tinham causado
ao revolver o passado de forma tão dura e impiedosa. Até teve pena de deixar de
sentir o aroma forte e um tanto ou quanto adocicado a tabaco de cachimbo que
assinalava cada uma das suas intervenções.
Cerca de dois anos depois de tudo ter terminado entrou
por acaso num café da vizinhança, que não costumava frequentar. O dia estava
frio e chuvoso e sentiu necessidade de beber alguma coisa quente que o
reconfortasse e aquecesse. Estava sentado frente a uma grande chávena de
chocolate quente quando sentiu algo de elusivo que lhe despertou uma sensação
de sofrimento e, simultaneamente, de grande alívio. A princípio não fazia a
menor ideia da origem de tão estranha reação. Olhou à sua volta, mas nada viu
que lhe pudesse despertar tão fortes emoções. Fechou os olhos para melhor se
concentrar, abstraindo-se o mais possível do som das vozes e do tilintar de
louças e talheres. Foi então que identificou a fugaz sensação que tantas vezes
sentira no refúgio do seu quarto. Era o mesmo cheiro a tabaco de cachimbo, só
que desta vez permanecia no ar, não se desvanecendo do modo abrupto a que se
habituara durante as estranhas visitações. Virou a cabeça em todas as direções,
embora de modo discreto, sem poder dizer se esperava e desejava encontrar um
verdadeiro fumador, algo deliberadamente fora do seu lugar ou uma mensagem que
lhe fosse especialmente dirigida.
Os seus olhos depararam-se finalmente com uma figura
estranha, o único fumador de cachimbo em todo o café. Era da mesa dele que se
evolava o tão conhecido e adocicado aroma. O seu aspeto não lhe era totalmente
desconhecido, pois tinha uma vaga recordação de já ter avistado em qualquer
lado aquele ser alto, magro, de cara afilada e barba pontiaguda, envolvido numa
longa capa negra com forro de seda verde escuro. As costas eram ligeiramente
arqueadas e a sua postura, dobrada sobre a mesa, era a de quem tenta proteger
alguma coisa de precioso e raro. A mão direita agarrava um belíssimo cachimbo maravilhosamente
esculpido numa substância clara, que levava à boca de tempos a tempos e donde
subia uma longa espiral de fumo cinzento claro.
Os seus olhares cruzaram-se por breves instantes e teve a
sensação de ler na expressão do outro um sinal de reconhecimento e satisfação.
Mas foi apenas questão de um momento. Apagando o cachimbo, o estranho
personagem guardou-o no bolso do seu longo casaco, colocou na cabeça um
antiquado chapéu escuro, levantou-se e saiu sem olhar para trás. Nunca mais o
viu.
Luísa Lopes
Photo by Adri Claassens from FreeImages
1 comentários:
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