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segunda-feira, 25 de outubro de 2021

O melro e a poupa



A figura vistosa de uma poupa desce sobre um canteiro meio seco, na parte alta do Parque Eduardo VII, e começa a vasculhar todos os recantos à cata de insetos ou outros acepipes disponíveis. O seu aspeto colorido e meio exótico é soberbo. O bico curvo e alongado debica e revira as folhas secas com agilidade.

Um melro, que pousa a seguir, parece não gostar nada da concorrência. Depois de uma mirada atenta, arremete, de asas meio abertas, contra a intrusa, que só lhe presta a atenção suficiente para evitar a prometida bicada. Com um saltinho em leveza, afasta-se meio metro e recomeça a labuta.

Esse escaravelho é meu! — brada o melro, muito agastado, ao ver a poupa, que, com um hábil movimento do bico, faz escorregar pela goela um inseto com aspeto apetitoso.

A poupa finge não o ouvir e continua a atividade recoletora. O melro faz nova investida e novamente a poupa evita o ataque. Agora, numa área relvada, a poupa rapidamente desencanta uma minhoca e começa a puxá-la para fora do solo. Uma minhoca é demais para o melro. Corre para a poupa e aproveitando a sua limitação momentânea de movimentos, bica a adversária no flanco. Apesar da proteção plumosa, o bico firme do melro incomoda. A poupa larga a minhoca, que recolhe ao buraco, e enfrenta o agressor:

Não me toques! Estás parvo ou quê? Queres que te vaze um olho? — ameaça, enquanto exibe o afiado bico recurvo.

Desaparece daqui! Esta é a minha zona. Todos os besouros, abelhões, larvas, vermes é tudo meu — riposta o melro.

Grande proprietário! E é aqui que vens à procura de minhocas? É a tua especialidade, não é? — provoca a poupa.

Tu é que vens aqui por elas, não tenho dúvidas — devolve o pássaro negro. — Quantas já engoliste hoje?

Não sejas reles! Eu sou uma senhora.

Assim vestida? Pareces-me mais uma galdéria.

E tu? Assim todo de negro, austero, aprumadinho... Ninguém duvida que és um nojento papa-minhocas. Das juvenis.

Fica a saber que eu não sou padre, nem juiz, nem praxista. Soy un cantante. Cantante de flamenco.

Ah, ah, ah! — ri a jovem. — Já te estou a conhecer. Tu és o Paco do Tablao do Jardim da Estrela. Uma vez estivemos juntos num espetáculo beneficente pelo controlo de pragas no Jardim Gulbenkian. Eu danço sevilhanas no jardim do Campo de Santana. Sou a Carmen. Não te lembras de mim?

O melro fica um tanto surpreendido. Não responde logo. Finalmente sorri, amigável.

Olá, Carmen; já me lembro. Isto é um bocadinho embaraçoso. Então e se fôssemos tomar um trago, para descrispar o ambiente? O bebedouro ao pé do Pavilhão Carlos Lopes está a vazar.

Está bem. Mas, não tem dress code? — ironiza ela.

Paco encaixa o gracejo, ambos riem e, já em boa camaradagem, voam dali para o bebedouro; o melro à frente, a poupa logo a seguir. Ele deixa-a beber primeiro e só depois enfia o bico amarelo na poça de água que se formara junto à base do bebedouro.

Ah, sabe bem, assim fresquinha — expande-se o melro, o peito negro para fora.

Vou aproveitar para uma banhoca — anuncia a poupa, avançando pela água adentro e começando a espanejar, espalhando borrifos em todas as direções.

Ei, cuidado!; olha que eu já tomei banho hoje — reclama o melro, saltando para trás para evitar os salpicos. — E nem sequer tiras a roupa?

Querias! Mas não preciso. Este vestido tem um tratamento hidrofóbico. Lava-se e está pronto a vestir.

Se o tirasses, abreviávamos as coisas — lança Paco, com um sorriso intencionalmente maroto, confiante no ditado “Quem não arrisca não petisca”.

Um bocadinho de respeito pela colega… — finge amuar Carmen. — De qualquer modo, somos de espécies diferentes. De que valia?

Há muitas outras valias em passar um bom bocado, para além de constituir família...

A poupa ri, nervosa. Gosta deles atrevidos, mas percebe que tem de ligar o radar anti-abuso.

Sai da água, esplêndida, no seu vestido de sevilhana de cores vivas. O banho deixou-a bem-disposta, mas ainda tem o papo a dar horas.

Sabes o que me apetecia agora? Uns caracóis. Ou então umas joaninhas.

Hum, deixa-me pensar. Talvez… Ah, já sei. Vamos às hortas urbanas de Telheiras. Aquele pessoal é todo ecologista; não usa pesticidas.

Depois de uns poucos minutos de voo, pousam no destino. Felizmente, ainda é cedo e só dois hortelãos por ali andam, mas concentrados na lida agrícola. A maioria só vem ao fim da tarde. O melro não se enganara. Os vários regos de tomateiros que encontram fornecem-lhes um bom papo de escaravelhos. A crista da poupa reflete o bem estar pós-refeição; parece um leque.

Ah!; adoro escaravelhos do tomateiro. Têm estas notas de agre, a fazer lembrar ketchup. Espero que não me façam mal. Comi tantos! — rejubila Carmen, enquanto distende as asas redondas, exibindo o esplendoroso padrão branco, negro e laranja. — Ai, que preguiça!

Os olhos de Paco brilham, fascinados.

E se fôssemos sentar-nos num ramo confortável de uma árvore bem frondosa, a desfrutar o momento? Gostava que ouvisses a minha nova cantiga. E tu podias mostrar-me uns dos teus insinuantes passos de sevilhana. Não vejo melhor maneira de celebrar esta amizade reencontrada.

Hum; devia ser interessante, mas deixamos isso para a próxima. Não falaste também nuns caracóis?

Tu é que falaste, mas está bem! Por acaso, acho que sei onde encontrá-los. Pode ser amanhã?

Hum; amanhã não posso. Depois de amanhã.

Ok. Mas traze esse vestido! Afinal, acho-o… sensual.

Que remédio; não tenho outro. A não ser que queiras oferecer-me um. Por coincidência, faço anos depois de amanhã... — remata Carmen, antes de levantar voo.

O melro estaca, embatucado. Sente-se empalidecer. Gostava de ser gentil, mas, ver-se depenado é uma possibilidade assustadora. Só tem dois dias para encontrar uma solução airosa.

«Talvez ela se contente com uma bandelete» — pensa.

Joaquim Bispo

*

Imagem: Rafael Arroyo Fernández, Na Feira, 1886.

Coleção Carmen Thyssen-Bornemisza, Museo Carmen Thyssen, Málaga.

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