Chegaram quietos.
Traziam nas vestes surradas a poeira da estrada vencida na carroceria do velho
caminhão. Foram despejados ali, no começo da vila. As matulas dos pertences,
jogadas à beira da rua, no chão de pedregulhos. Grandes trouxas, onde os nós amarravam
o conseguido da vida.
Eram três homens, uma
velha e duas crianças. Marrons. Além da tez, a poeira os tornara assim, cor da
terra. Olhavam em todas as direções, olhos semicerrados diante da luminosidade
impiedosa do sol. E eram olhados. Da porta do armazém, olhos curiosos e bocas
incontroladas tentavam desvendar a trajetória daqueles inesperados forasteiros.
Material farto para as conversas de muitos dias.
De todos, um dos homens
se destacava pela altura. Mesmo sujo, dava para ver que, além de mais alto, era
mais claro. Tinha braços longos, ombros largos, farta cabeleira, barba por
fazer. E foi ele que, num meneio de cabeça, indicou a direção a ser seguida.
Instalaram-se no vão de um terreno bem perto de onde estavam, sob a copa de
duas mangueiras imensas, entrelaçadas. Cada homem arrastava duas matulas. A
velha, sem medir força, arrastou a maior delas. E, para as crianças, sobraram
as pequenas.
Na mesma rapidez dos
movimentos, os três homens deixaram os fardos no pé da mangueira, sob os
cuidados da velha, e seguiram em direção da baixada da vila. Não demoraram a
voltar trazendo pedaços de tijolos, gravetos. O mais novo, depois de trocar uma
prosa com a velha, rumou para o armazém. Foi em busca de arroz e linguiça.
A velha não demorou em pedir
licença na casa mais próxima e usar da água do poço. Em instantes, o fogão de
chão estava montado, os gravetos crepitavam e as velhas panelas dançavam nas
mãos calejadas da velha senhora.
Avezados a
acampamentos, os homens, numa debandada harmoniosa, ausentaram-se por um bom
tempo. A tarde já havia entrado quando o chiado dos feixes de folhas de bacuri,
amarrados às cinturas dos homens e varrendo os pedregulhos, fez com que as
cabeças dos curiosos se voltassem para os forasteiros. Também traziam, nos ombros,
alguns galhos grossos de árvore, muitos deles terminados em forquilhas
generosas. Tudo foi ajeitado no chão e, famintos, rodearam o fogão onde o
banquete os aguardava.
Saciados, conversando
em voz baixa, começaram a medir e a delimitar, com passos, os lugares onde
seriam fincados os troncos. E o serviço, com pouca prosa e muito assobio, ia
dando forma ao esqueleto da cabana. Já ia escuro quando todas as forquilhas
estavam fixadas. Retiradas as redes das trouxas, cinco delas foram dispostas em
ziguezague nas fendas das forquilhas. As crianças dormiam juntas. A menina, de
mais ou menos sete anos, e o moleque, que não passava dos cinco, eram mirradinhos,
caladinhos, ligeiros, de olhos grandes e assustados.
Foi só o tempo de silenciar
a fome e logo se ajeitaram nas redes, exaustos. E, mesmo ao relento, o sono
veio feito dádiva.
Antes do raiar do dia,
a velha preparou o café, os homens se ajeitaram e saíram, e as crianças dormiam
como minhocas entrelaçadas. Acordaram com o barulho dos bambus sendo pregados e
trançados na volta da cabana. Como num passe de mágica, as folhas de bacuri forraram
o teto e as paredes, e a cabana estava terminada. Sem janelas, com apenas uma
entrada. E todos sorriram. A próxima noite não seria mais ao relento.
Na nova morada, naquele
resto de dia, foram esticados varais, montado um batedor de roupas e um
cercadinho onde os adultos se lavariam. Um velho tambor foi cortado ao meio. Metade
foi colocada ao lado do batedor, seria a tina para lavar as roupas, e a outra
metade serviria para reservar água e banhar as crianças.
A vida tomou rumo. Os
homens foram conseguindo trabalho nas roças, nas plantações, nas colheitas, e aos
poucos, os forasteiros iam sendo conhecidos. Dos homens, o mais alto era genro
da velha, pai das crianças. Os outros dois homens eram irmãos, filhos da velha
senhora, e a mãe das crianças, sua única filha, morrera no parto do menino. Tirante
o pai das crianças, eram índios, e vieram de muito longe. Talvez por isso,
ninguém se assustava com o costume da velha que, no dia a dia, ficava sem
qualquer pano a lhe cobrir os seios. Usava sempre saia rodada que chegava aos
tornozelos, e na parte de cima, nada, absolutamente nada. Não saía às ruas,
ficava o tempo todo na lida da casa e das roupas. Miúda, pele extremamente
enrugada, cabelos compridos, ralos, pouco grisalhos, amarrados na altura da
nuca. Cigarro de palha no canto da boca, quase sempre apagado. Tetas caídas,
pelanca pura. Triste figura. Mas tinha olhar manso, amoroso.
Levei um tempo a me
aproximar. Durante dias, acho que meses, fiquei de longe, mas meus olhos não
perdiam um movimento. Só atravessei a rua e finquei os pés no terreno quando a
menina sorriu. Eu era miúda, mas ela era ainda mais. De perto, magricela e de
uma palidez esverdeada, era a fragilidade viva. Era um azougue, habilidade simiesca,
subia nas mangueiras como se tivesse garras. Eu era uma criança que só não
deixava a família na corda bamba quando dormia, mas ela era, anos luz, mais endiabrada
que eu. Juntas, nem preciso falar.
Foi, então, que fiquei
sabendo do nome de Honorinha. Ficamos parceiras. De brincadeiras, de risadas
sem medida, de silêncios. Ela era calada, serelepe calada. Eu falava pelos
cotovelos, nem sei se ela ouvia. A jornada começava cedo, e só era interrompida
no almoço, na merenda e na hora de dormir. Nunca comi lá, e ela nunca foi comer
em minha casa. E não havia despedida, saía de fininho e chegava de mansinho.
E o novo ano começou.
Entrei na escola, mas Honorinha, não. Não estudava e nem tinha tino para isso.
Brincadeira de desenhar ou escrever na terra com pauzinho, nem pensar! Era
avessa!
Então, a nossa parceria
resumia-se às tardes. Menos tempo, mais intensidade. Ainda bem que a avó nunca
permitiu que ela se afastasse do espaço do terreno. A velha nunca ergueu a voz,
o entendimento era velado, os olhos falavam. A maior parte do tempo, passávamos
na copa das mangueiras.
Uma tarde, Honorinha
entrou na tina do banho. Eu estava no canto do terreno e empurrava com os pés,
as pedras, os cacos de louça, os caroços secos de manga, os gravetinhos, enfim,
nossas bugigangas das brincadeiras. E ouvi um grito. Olhei para Honorinha e ela
estava escorada pela avó, toda cheia de sangue. Havia escorregado no barro ao
sair da tina, e fizera um corte profundo na altura da coxa, quase na virilha.
Fiquei apavorada, sai correndo em direção de casa. A noite foi sofrida, e na
manhã, nem tinha vontade de ir à escola. Mas fui...
Quando cheguei ao
terreno, tudo estava quieto, Honorinha não me esperava. Estava dentro da
cabana, deitada na rede, com a perna toda enfaixada. Seu João da Botica havia
feito o atendimento, e ela precisava ficar em repouso. Eu fiquei ali, sentada
na entrada da cabana. Ela dormia. E no outro dia foi assim, e no outro, também.
Ela não estava bem, febril, seria levada para outra cidade, para um hospital.
E foi assim. Uma tarde,
quando cheguei, só os homens com o menino estavam lá. Honorinha e a avó foram levadas
e voltariam assim que ela melhorasse. Eu continuei na espera. Bastava chegar da
escola, mal engolia a comida, corria lá para conferir.
Depois de muitos dias,
numa tarde percebi que não havia mais roupas no varal, não havia varal, nenhuma
panela no fogão. Fui até à porta da cabana, estava vazia. Sem redes, sem
roupas.
Partiram. Simples
assim. E eu nunca soube o que aconteceu. Para onde seguiram, como Honorinha
ficou... Nenhuma notícia, nunca mais.
Até hoje procuro por ela.
Deve estar em algum lugar. Será que estudou? Casou? Teve filhos? Será que
morreu?!
O que mais me intriga é
que ninguém tem qualquer lembrança dela. Nem minha mãe, nem meus irmãos, nem os
moradores da vila. Ninguém, absolutamente ninguém diz que conheceu a menina.
Interessante como o
menino nunca participou das brincadeiras! Não tenho lembrança de conversar com
ele, de ter ouvido a voz dele, o choro! Tenho lembrança apenas do rostinho
miúdo.
Honorinha...
Será que você realmente
existiu?!
Regina
Ruth Rincon Caires
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