Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Machado de Assis - instruções de uso

Alguém com pelo menos quarenta anos se lembra das coleções da Ediouro? Eram pelo menos duas, com classificações estapafúrdias como "até 12 anos" e "até 17 anos". O destaque era para textos clássicos traduzidos e recontados para leitores destas idades. Entre os tradutores, gente como Orígenes Lessa e Carlos Cony.

Lembro-me de alguns clássicos com os quais tive o primeiro contato. Uma edição com algumas histórias das Mil e Uma Noites, evidentemente que "para menores" - jamais poderia imaginar a sensualidade - não, erotismo mesmo - das narrativas de Sherazade para o sultão, o que somente descobri mais de trinta anos depois com a edição brasileira, traduzida pelo Mamede Mustafá Jarouche. Também lá li meus primeiros Julio Verne - A ilha misteriosa, que mais tarde reli numa outra edição brasileira, e 20.000 léguas submarinas.

Isso tudo me veio à mente com a recente polêmica envolvendo uma versão facilitada dos romances do Machado de Assis. A maioria desancou a iniciativa, principalmente pelo fato de envolver dinheiro público.

Há algum tempo tenho a impressão de que o português vem se tornando língua morta no Brasil, tal como o latim. A cada dia menos gente se dispõe a encará-lo... Por outro lado, há os famigerados resumos de clássicos. Quadros sinópticos, esquemas e lembretes que permitem ao aluno fazer uma prova sobre um clássico sem ter se dado ao trabalho de lê-lo. Conseguimos deixar Pierre Bayard (Como falar dos livros que não lemos) ruborizado. E há ainda aqueles que sabem tudo sobre um autor ou compositor: onde nasceu, como foi sua infância, os locais que frequentava, o que fazia... só nunca pararam para ler ou ouvir o que o tal artista efetivamente criou. É uma especialidade escolar. Saber que Mozart é hoje marca de chocolate mas nunca ter ouvido a Sinfonia nº 41.

Na França, depois de muita polêmica, Proust terminou em quadrinhos. Stéphane Heuet afirma que sua versão é procurada tanto por proustianos convictos quanto por leitores que sempre fugiram da obra original. E, particularmente, parece-me pouco provável que os quadrinhos roubem leitores do texto original. Meu lado ranzinza me leva a ignorar um resumo de um livro brasileiro - no caso, um clássico, divertidíssimo. Nenhum resumo, nenhuma versão light, trará toda a ironia e humor de Brás Cubas e Machado de Assis.

Sem qualquer interesse em ler a edição "simplificada", o que parece mais importante na questão do resumão do Machado é se a versão é boa - e é sintomático que, depois de todas as paixões despertadas pela novidade, não tenhamos lido nada sobre o trabalho em si: é bom? Vale a pena? Para quem?

Share


Fabio Bensoussan
Nasceu no Rio de Janeiro (1973) e hoje mora em Belo Horizonte, com sua esposa e os dois filhos. É procurador da Fazenda Nacional e recentemente começou a escrever contos e a traduzir textos literários.
todo dia 04


0 comentários:

Postar um comentário