Joaquim Bispo
Estão
a passar os 100 anos da primeira publicação de “Platero e eu”, do espanhol Juan Ramón Jiménez (1881–1958), que foi Nobel da
Literatura em 1956. «Desenvolveu a ideia de “poesia pura”, uma poesia de inspiração
platónica, habitada por um ideal superior de beleza e separada de todo o conteúdo
ideológico, político ou social. Jiménez pretende-se um poeta do refinamento e
da nuance, ansioso por desenvolver
novas pesquisas estéticas e rítmicas, na expressão de uma doce melancolia.» Teve
funções diplomáticas em Washington durante a Guerra Civil Espanhola e viveu exilado
o resto da vida, sobretudo em Porto Rico.
“Platero
e eu”, escrito em prosa lírica, é a obra pela qual Jiménez é mais conhecido. É
um conjunto de 136 pequenos textos de 20–30 linhas, narrados na primeira
pessoa, como num diário, cuja personagem
central é o burrico Platero [prateado]. O contexto é o ambiente campestre,
rústico e romântico, ingénuo e sadio, da Espanha rural do princípio do século
XX, a sua Moguer natal, na Andaluzia. Os textos parece não procurarem contar
histórias com enredo minimamente surpreendente, mas serem simples apontamentos impressionistas
das vivências simples do espaço rural, com muitas observações da mágica vida de
plantas e animais, em que o Homem é um afortunado convidado. Desprendem-se
deles essas imagens aliciantes dos espaços encantados, essa força singela dos
tempos primordiais, essa harmonia dos paraísos perdidos. Saboreie-se este
extrato do primeiro texto:
«Platero
é pequeno, peludo, suave; tão brando por fora que se diria todo de algodão, que
não tem ossos. Só os espelhos de azeviche dos seus olhos são duros como dois
escaravelhos de cristal negro.
Deixo-o
solto, e vai para o prado, e acaricia debilmente com o seu focinhito,
roçando-as apenas, as florzinhas cor-de-rosa, azuis e amarelas… Chamo-o
docemente: “Platero!”, e vem ter comigo num trotezinho alegre que parece
rir-se, com não sei que som de guizos ideal…»
Ou
estes, do texto CXXXI:
«Olha
para ela, Platero. Deu, como o cavalinho do circo pela pista, três voltas ao
jardim, branca como a única leve onda de um doce mar de luz, e voltou a
atravessar o muro. Imagino-a no roseiral silvestre que há do outro lado e quase
a vejo através da cal. Olha, já está aqui outra vez. Na realidade são duas
borboletas: uma branca, ela; outra preta, a sombra dela.» (…)
«Olha
que bem voa, Platero! Que regozijo deve ser para ela voar assim! Deve ser, como
é para mim, poeta verdadeiro, o deleite do verso.»
Ou
ainda estes trechos do texto LVII:
«O
céu azul, azul, azul, asseteado pelos meus olhos em êxtase, ergue-se, sobre as
amendoeiras carregadas, até às suas últimas glórias. Todo o campo, silencioso e
ardente, brilha. No rio, uma velazinha branca eterniza-se, sem vento.» (…)
«Quando,
entre um cheiro a laranjas, se ouve o ferro alegre e fresco da nora, Platero
zurra e retouça alegremente. Que simples prazer diário! Já no tanque, encho o
meu copo e bebo aquela neve líquida. Platero some na água sombria a sua boca e
beberrica, aqui e ali, no mais límpido, avaramente…»
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Há
60 anos, mesmo há 50, os burros faziam parte da paisagem habitual dos espaços
rurais portugueses. A perda de importância do setor primário nas economias
ocidentais fê-los quase desaparecer. Enquanto continuam a estar muito presentes
na paisagem dos países islâmicos, em Portugal sobrevivem quase exclusivamente
em pequenos santuários mantidos por entidades conservacionistas, algumas vezes
tornando-se rentáveis pela demanda citadina do exótico que estes animais já
suscitam.
Os
burros, no entanto, já estiveram no centro da História: por volta de 2350 a.C.
Sargão I, de Acad, conquistou as cidades sumérias da Mesopotâmia à frente de um
exército montado em onagros, ou burros selvagens, instituindo naquela região a
governação e a cultura de um povo semita. Habituados que estamos à imagem guerreira
dos cavalos, que a Arte nos transmite, temos dificuldade em imaginar a
verosimilhança de tal força bélica. Na verdade, os cavalos só surgem na
História pela mão belicamente eficaz dos Hititas, uns sete séculos depois, na
mesma região.
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A égua e eu
[A
ideia era fazer um pastiche de “Platero e eu”, mas rapidamente dei por
frustrada a tentativa. Prosa poética não é bem o estilo em que me sinto à
vontade. Mantive, no entanto, o tema dos paraísos campestres perdidos.]
Há
cinquenta e poucos anos, num entardecer quente de meados de junho, eu
calcorreava os quatro ou cinco quilómetros de caminho rural que separavam a
estrada que me trouxera da cidade, em camioneta ou boleia automóvel, do monte
agrícola de meus pais. Duas pequenas ribeiras e um couto de caça repleto de
moitas de carvalhiços eram metas intermédias e de fácil mas excitante atravessamento.
A zona mais silvestre deste, com cheiros de húmus e rosas albardeiras e onde retouçavam coelhos em magotes, anunciava as
proximidades dos meus bem-amados espaços.
Após
ultrapassar um pequeno outeiro que o caminho cruzava junto a um zambujeiro, a paisagem da encosta a
terminar na ribeira, com o vulto amigo da serra em fundo, atingiu-me em pleno
na carência de afetos, pela ausência prolongada. De todas as vezes que ali
chegara, a mesma ternura pelo espaço familiar e querido fazia mover o meu
espírito. Lá ao fundo, à esquerda, a estreita faixa de pinhal, silencioso e escuro, que delimitava o monte a oeste e provia a exploração com alguma madeira; à frente, os dois pequenos grupos de edificações, sendo um deles apenas a queijeira e o forno; sobre a direita, o declive de olival que terminava na faixa ainda viçosa da beirada, generosa provedora de todas as culturas, limitada pelo verde-escuro dos amieiros da ribeira. A envolver-me, a espessura heterogénea dos cheiros, em que sobressaíam os dos fenos.
E os sons. Há
muito que a azáfama musical das cigarras me acompanhava, mas a partir dali era
suplantada pela estridência mais aguda dos grilos, em apelos de acasalamento no
meio da seara. A regularidade da cadência só era quebrada pelo restolhar
assustado de alguma lagartixa ou pelo estalar propagador das vagens ressequidas
das giestas que bordejavam o caminho. E pelo chilreio múltiplo e disperso da passarada. Flutuante e preguiçosa, a melodia distante dos chocalhos do rebanho.
Já
perto da casa da família, com o palheiro anexo onde também se guardavam a junta
de vacas e a égua, cheguei ao lameiro onde esta pastava, peada ou presa a uma
estaca por uma corda longa. Cumprimentou-me com um vigoroso levantamento de
cabeça e um leve relincho. Sem dúvida, eu chegara a casa, o local onde era
feliz nas longas férias de verão, onde estava a minha família, onde até os
animais me reconheciam. Quando o mundo exterior fosse muito hostil, ali teria
sempre abrigo, ali seria sempre aceite.
Como
o dia estava no fim, meti mãos à tarefa de recolher a égua. Soltei-a das
prisões, enrolei bem ao meu pulso a corda que lhe atava o pescoço, a fazer de
rédea, firmei-me e saltei-lhe para o dorso. Talvez por ela começar logo a andar, talvez
pelos meses de ausência, o salto foi curto e ineficaz. Estatelei-me no chão
numa situação de grande perigo, devido à estupidez de me ter prendido à rédea.
Se a égua se tivesse assustado, ou por urgência de voltar ao estábulo desatasse
em galope, eu seria arrastado e ficaria muito maltratado. Mas ela estacou de
imediato, voltou a cabeça para trás, olhou-me com um olhar meigo de compreensão,
como se dissesse “Então, miúdo!”, e esperou que me levantasse e acertasse a
tentativa seguinte.
Pouco
depois chegava à casa de telha vã onde recebi os mimos paternos, que se
toldaram um pouco quando tive de lhes anunciar que chumbara o 4º ano do liceu.
3 comentários:
mas tens que ser dar cabo dum texto que ia tão bem na senda do Platero que te deu o mote lírico'
é que essa última frase nem era preciso (!) que a gente tivesse conhecimento tão prosaico...dispensava-se... :)
Comecei a ler e pensei : “finalmente, Joaquim se permite a prosa poética, o lírico!”.
Adoro os seus registros históricos, os resgates da História da arte, as picardias políticas e outras coisas do seu variado repertório, mas, sinceramente, um texto como este, tão doce, tão saudoso, tão lindo, me emociona muito mais. Aos outros textos seus saúdo pela inteligência e pela cultura que demonstram. Mas o relato de hoje me enterneceu, tocou as minhas próprias lembranças. Foi como esta frase, na qual fiz pausa especial : “...atingiu-me em pleno na carência de afetos, pela ausência prolongada”.
Muito bom!
Fátima, o lírico não exclui contratempos. E acho que aquela informação ajuda a explicar outras partes do texto. Mas compreendo a tua posição.
Cinthia, Lírico não sou, corro o risco de ser lamechas. Obrigado por tantos géneros elogiados. Adoraria atingir sempre o leitor, não necessariamente pela via do enternecimento. Quem não adoraria?
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