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terça-feira, 10 de junho de 2014

Eimear McBride, a herdeira de Joyce e Beckett


Henry Alfred Bugalho

Há livros que vêm para reconfortar.
Mas há livros que surgem para inquietar, para angustiar, para abalar todos os fundamentos.

A obra de estreia de Eimear McBride, esta filha de irlandeses, é desta segunda espécie. "A Girl is a Half-formed Thing" (que numa tradução livre poderia ser "Uma Garota é uma Coisa Mal-Formada") incomoda, causa desconforto e desassossego.
Recusado durante nove anos até que uma pequena editora resolveu arriscar publicá-lo, este livro já recebeu algumas importantes premiações e tem chovido elogios para McBride, considerada genial e escrevendo "como nunca se viu antes".
O estilo é inventivo, sem sombra de dúvida. Promovido como um "fluxo de consciência", a obra descontroi de uma maneira bastante singular a linguagem. Aliás, fluxo é uma palavra generosa para o estilo da autora, eu diria que é mais um "fragmento de consciência", quando frases e raciocínios completos são raros, pelo menos na primeira parte, quando é narrada a infância da personagem identificada somente por ""eu".
A trama revolve em torno de "eu", de "você", isto é, o irmão dela, e da mãe deles. É uma relação conturbada, de amor e de ódio, mas principalmente de incompreensão.
Enquanto o enredo se desenvolve, o estilo se torna mais inteligível, porém, "A Girl is a Half-formed Thing" jamais se torna um livro convencional. Tanto a crueza das experiências relatadas, como a perda da virgindade da protagonista aos trezes anos, por exemplo, quanto a linguagem utilizada o distinguem. São atos de ousadias tremendos num mundo dominado por best-sellers pasteurizados; são um grito de liberdade para aqueles que ousam fugir do "papai-e-mamãe" literário.

As primeiras comparações inevitáveis são com James Joyce e Samuel Beckett, outros irlandeses que transformaram a literatura para sempre.
Percebo aí uma progressão.
Joyce era a plenitude, um autor que quis abarcar toda a essência humana, da nossa psicologia à nossa linguagem, em sua ficção. Joyce é um desfile por toda a literatura possível.
Beckett era a negação, o esvaziamento completo. Nele temos um percurso de nadificação, de aniquilamento de identidade, de rarefação do sentido.
McBride é uma negação positiva, se é que estes opostos podem conviver em harmonia. Ela está destruindo uma concepção de literatura, de um modo duro e violento, mas, ao mesmo tempo, parece haver uma faísca de esperança e redenção pairando sobre toda a narrativa. É difícil saber se ela deseja acreditar na salvação, ou se somente não criou coragem ainda para mergulhar no nada beckettiano.
O certo é que, por mais inventiva que seja a escrita da autora, inclui-la no panteão dos gênios é um pouco precipitado. Se "A Girl is a Half-formed Thing" houvesse sido escrito entre os anos de 1920 e 1945, sem dúvida que seria um dos livros mais revolucionários daquele tempo, mas hoje, no século XXI, quando muita água já passou sob a ponte do Modernismo e do Pós-Modernismo, esta leitura soa um pouco anacrônica, como se fosse uma tentativa de ressuscitar um movimento literário que foi bastante inovador, mas que se exauriu pela extensão de seu próprio experimentalismo radical.

A missão futura de Eimear McBride será provar ao mundo se este seu primeiro romance foi apenas um fortuito vislumbre de revolução, ou se terá algum poder transformativo no futuro.
De qualquer modo, a Literatura agradece este sopro de ousadia.

Excerto de "A Girl is a Half-formed Thing" (tradução livre minha)

"Onde está aquele pai? O meu? Que pertencia fazia parte de mim? Eu penso sobre. Onde ele está? Imaginação de pais sentando perto de mim na cama. Acariciando meu cabelo você é minha garota, pertence a mim querida. Havia ouvido visto estas coisas na tevê. E eu digo você me dirá um dia o que ele disse sobre filhas antes de eu nascer?
Ela diz eu tenho algo para lhe contar no final das contas. Seu pai humm. Seu pai, sente-se. O que? Xiii. Morto. Algum tempo atrás recebi uma carta da mãe dele, quando já estava terminado e acabado. Ela disse que ele teve um derrame. Rápido. O inventário não vai demorar. Mas você nunca nos contou? Por que nunca nos contou? Não havia muito que eu poderia dizer, não que ele nos amasse, a mim quero dizer, e agora ele está morto. Vocês estão resguardados. É hora de tratarmos do nosso assunto. O que é? Mudar casa. Por quê? Porque ele comprou esta e eu não quero mais. Mas eu não quero me mudar mamãe. Não comece. Mas nós sempre vivemos aqui. Nós estamos. Nos mudando. Casa. Porque. Isto. É. O que. Eu. Quero. Fazer. E. Se. Você. Não. Quiser. Que. Triste. Porque. Eu. Sou. A. Mãe. E. Você. Vai. Fazer. O que. Eu. Disser. Enquanto. Você. Viver. Sob. Meu. Teto. Você. Vai. Sempre. Fazer. O que. Eu. Disser. Entendeu."

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