Mágoas e tormentos, choros,
desespero, é assim a vida de cada um da gente. E no entanto, andamos como se a vida fosse um caminho de flores.
E a chuva é apenas água que nos mata a sede e faz crescer o trigo e o centeio com que se faz o pão.
Nem avalanches desmoronando
terras inseguras, fendas em leitos de prometidos rios.
Chuvas e sóis de Agosto ou
neves que se ergam em gelos, são sempre vistos quase em poesia, tal e qual o
fogo que aquece a sala ou nos grelha o peixe.
E a dor de panturrilha, se
calha, há-de ser passageira, e o fogo que se dá na serra é sempre lá tão longe
de onde a gente mora.
E, se é gripe, nunca é de
febre demasiada. Nada que não se debele em finos dias de ficar na cama, um
remédio ou outro a conselho médico.
O mal nunca dá na gente. O
mal dá apenas neles. Aqueles cujas casas são rebentadas
pelas metralhadoras de uma dessas imensas guerras, ou por um terramoto, um
avião que saiu da rota, um carro rolando em contra-mão. Ou uma fuga de gaz e
elas explodiram, ou passou por lá um furacão. Ou arderam, junto com a floresta que
lhes fica em volta, à mão criminosa de um pirómano.
Os nossos choros e tormentos, o nosso desespero, são comedidos e sempre passageiros. Horrores e tragédias são apenas
longe.
Também tu pensarias assim se
não tivesse acontecido.
Nem havia asfalto. Estrada só
a que levava à cidade. Ali, onde vivias, era tudo chão vermelho, terra que a
água arrastou a tingir-se toda como se levasse sangue.
Foi entre as duas e as
dezoito. Litros e mais litros de exagero em cima dos terrenos, em cima dos
telhados, e a água a entrar pelas casas que o chão nem tinha já como sugar
tanta enormidade.
O céu trazendo, lá de muito longe, um qualquer
oceano e ali o derramando sem dó nem piedade sobre gentes, terras, casas e
animais.
O jacarandá arrancado pela
força da água como peça leve de um brinquedo. E o pé do teu pai e ele a chamar por ti. O pé do teu pai enleado na raiz da árvore e a corrente arrastando-o.
– Zé Carlos, não te deixes
dormir – é o teu pai gritando.
Tinha-te dito que subisses
ao ponto mais alto do telhado.
Terias cinco anos.
E quando já não era senão um
pontinho, ouviste-o ainda gritar:
– Não saias daí, Zé Carlos.
E nem sabes se o ouviste ou
se apenas desejaste.
A gente nunca pensa que o odor que temos é cheiro de desgraça que se vai
acumulando e, um dia, dá-se.
Quando chegou o bote, tinhas
muito frio e muito medo. E tinhas fome. Mas, mais do que tudo, tinhas a voz dele dizendo: não desças daí, Zé Carlos.
Depois, aprendeste a imitar os outros.
Mas hoje, ela escarranchou-se,
ali, na porta do teu quarto de homem desacompanhado não fosse a boa da
Gertrudes.
A porta do teu quarto
entreaberta para que ente o fresco que este ano tem sido um Estio escaldante, e
tu a ferver ainda mais que o ar circundante. Tanto, que te espanta que o sangue que te corre no corpo não esteja esguichando por todos os teus poros. Tu, José
Carlos Nunes de Miranda a arder em febre desde o dia oito, completas hoje, dia
dez de Fevereiro, trinta e sete anos.
Que tomes esses remédios e que
é gripe, dz o Dr. Matoso que a Gertrudes pediu: venha depressa que ele delira.
Gertrudes que te cuida desde o mar de chuva que se deu naquela tarde. Gertrudes que insistiu naquela lenga-lenga de Deus e do céu
e dos anjinhos que tomam conta do seu paizinho, menino Zé Carlos . A mulher a querer que ficasses sereno, e tu que nunca esqueceste a água encarnada a levá-lo: podia lá haver um céu que o acolhesse, pensaste sempre, ainda que orando pela sua alma, ainda que olhando a estrelinha que Gertrudes te apontava.
Solteiro é o que tens
escrito no cartão de identidade, e desde há muitos dias que te dói do lado esquerdo.
Uma dor que começou intensa
e não amaina.
Começou antes de Gertrudes
te ver suar em bica e insistir em chamar o médico: que se é gripe, as gripes tratam-se, argumentara ela, e tu disseste ao físico que te doía a garganta e
a cabeça, e a dizer assim mentiste, descarado, escondeste dele a dor como uma faca
raspando contra tudo o que tens debaixo da pele, e mentiste de novo quando o homem te
enterrou os dedos na barriga e tu viste estrelas a caírem no quarto.
Dói, perguntou ele, e tu rilhando os dentes: não, não dói!
Tu a fingir que apenas te doía a garganta e a cabeça, inspiraste profundo e sopraste devagarinho pela boca .
Que só tu sabias que ela já tinha vindo, que tinha estado esse tempo todo
ali especada. Que se tinha desviado um nadinha para deixar entrar o Dr. Matoso e a sua
gorda pasta, mas logo se colocara entre portas, a mão esquerda lá em cima do
batente e a direita a segurar a outra metade da porta como se a fosse empurrar
para dar passagem ao teu corpo magro.
E não se moveu um milímetro
enquanto durou a consulta.
Ela ali pespegada entre os
dois batentes, e tu olha-la: incrédulo, de início, depois convencido,
mas nunca assustado.
Esguia. Feminina.
E tu embasbacado mas tolerante com a chegada dela.
É de linho leve a túnica que
a cobre e esvoaça na corrente que se faz à passagem de Gertrudes,ou porque terá ficado mal
fechada, a porta que abre do corredor sobre o pátio.
Leve e casta como nunca te tinham dito que seria.
Que é coisa de uns dias,
diz-te o médico.
Que tomes os remédios e te
abrigues, que logo a febre baixa e ficas como novo.
Que ainda vais no domingo à festa, diz-te ele, sorrindo.
E sai do quarto a deixar a receita na mesinha e a Gertrudes salamalequeia-se a acompanhá-lo
só tu sabes que desta vez não haverá telhado
que nunca mais haverá quem seja
a dizer-te: não saias daí, Zé Carlos.
3 comentários:
Muito bem! A imagem do arrastamento pluvial é muito forte. E do ficar só, no telhado. Podia parar aí a narrativa.
A colagem subsequente também é boa e os finais trágicos ficam sempre bem. Só a estrada tem de ser vermelha.
Está é a sua escrita que sempre me captura. Forte, densa, doída e cheia de beleza. Adoro os fins maravilhosos dessas suas histórias. Mas este texto já teria valido a leitura só por está frase: "A gente nunca pensa que o odor que temos é cheiro de desgraça que se vai acumulando e, um dia, dá-se.". Sensível e lindo.
oibrigada que ser lida e comentada por vocês é um desvelo
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