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quinta-feira, 15 de novembro de 2012

roseiras bravas


Este banco está aqui desde que eu era pequena, murmura ela a passar os dedos na madeira despintada, duas tábuas corridas onde Otília tem um braço descaido. Ela na gare a desocupar-se da realidade que é o combóio a dissolver-se no horizonte.
Otília distraindo sentires.
Veio despedir-se deles que ainda lhe acenavam há uns escassos segundos.
E Otília nem olha, que o combóio é já apenas uma ideia.
Ela que há muito tinha percebido.
E sendo assim, serão desnecessárias as palavras, terá pensado Francisco.
Depois que decidira ir, e demorar por lá, Francisco tinha os comprimidos sempre na mala de viagem não fosse esquecer-se. Dois azuis, dois amarelos e um verde, todos os dias ao pequeno-almoço. E antes de dormir, um branco, redondo.
Um ritual de muitos anos, tantos quantos tinham de se terem casado pela igreja porque o pai dele pedira e eles acharam piada que fosse desse modo.
Eram muito novos.
E houve um tempo em que ele ouvia chamamentos, escutava risos, via mesmo gente que Otília lhe assegurava não serem realidade. Tinham consultado médicos, e Francisco serenara pelo efeito das doses, mas dormindo continuava naquele desassossego. Sonhava sonhos enredados.
Na primeira vez, Francisco disse-lhe, simplesmente, que ia com o Joaquim Maria. Coisas de gostarem ambos de plantas, explicou ele enquanto tratava das roseiras. E prometeu-lhe que sim, que tomava cuidado. Joaquim Maria, que já andava sempre por perto, fez coro: descansa que eu tomo conta dele.
Otília nem sabe se foi nessa ida, se foi na vez seguinte, mas sabe que os levou à estação diversas vezes. Dez quilómetros, e ela olhando-o de lado, e conduzindo. Ela que receava as suas idas. Temia sobretudo que se fizessem realidade os sonhos dele. E Joaquim Maria sentado no banco detrás espantava-se dos seus receios: porquê esse pavor, Otília?! interrogava debruçando-se sobre os bancos da frente, os braços sobre a napa dos assentos, as pontas dos dedos a tocarem de leve o pescoço de Otília e, num sobe e desce, o dedo polegar da mão direita afagando a nuca de Francisco.
Já na gare, já quase no minuto antes de partir o comboio, Otília desejava gritar: hás-de chorar, Joaquim Maria. Um dia, havemos de chorar os dois. E ela diria: eu escutei-lhe os pesadelos muito antes de aparecer por aqui um Joaquim Maria a falar de flores.
Mas Otília calava. Otília ficava sempre na gare a distrair sentires.
E eles iam, e regressavam sem aviso.
Ali dependurada na madeira do banco, a gare vazia, o banco a despencar-se em passados, Otília ainda não sabe que aquele será o derradeiro regresso.
Nunca os olhos de Francisco lhe diziam regressei porque tinha saudades.
Regressava e era tudo.
Desta vez os olhos de Francisco hão-de dizer-lhe: estou tão triste, Otília. Tão triste!
E Francisco há-de repetir-lhe.
E ele dirá que vá buscar os jornais da semana, e que passe pelo Joaquim Maria a ver as podas de roseiras que trouxeram da viagem.
Há-de pedir-lhe.
E no entretanto de Otília ir, será o vermelho do pingo a confundir-se com o vermelho do chão. Uma única gota sobre a tijoleira da varanda, e Francisco a passar a ponta da bota, a espalhar o líquido. Ele a fazer isso, e a voz de Otília a ecoar-lhe de muito antes: podíamos ter colocado chão branco que era mais higiénico. Ela tinha dito assim, estavam a lanchar e chovia, e Otília tinha trazido cerveja e pão, e queijo.
Francisco que terá pressionado, a encontrar o jeito que em outros dias soubera a degolar um bicho, a podar uma roseira
Ele a pretender que se confundam derme e epiderme no rasto do gume. E será uma dor fina. Uma dor saborosa, ou ele nem designará a dor que sente. Um gesto rápido, e o traço seguindo a marca que ficou por não se ter atido ao conselho de Otília: não uses relógio, Francisco – era Verão e ele teimava em andar com aquilo no pulso e ficava a marca do que era a sua cor de Inverno, um branco leitoso.
No lavatório da cozinha, a água muito fresca escorrerá sobre o golpe. Cada gota a desfazer-se num rosado. Um fio contínuo de arabescos a escoar-se ao ritmo do fluir da água e do pingar do sangue.
Francisco distraído com o líquido, nem perceberá que não tem retorno, nem dará conta que é ele mesmo que se esvai pelo ralo bordejado em doirado.
Otília tinha teimado que os metais fossem naquele tom.
E nesse entretanto, será Joaquim Maria a trazer as podas de roseira. Desencontros.
Joaquim Maria a entrar na cozinha há-de dobrar-se para apanhar a faca. Uma faca sempre pronta a esventrar a barriga de um peixe ou fazer os golpes certos num naco de vitela.
Francisco usa-a com perícia para degolar um frango, há-de pensar Joaquim Maria e há-de sorrir-se. Será antes de notar os pingos vermelhos no chão da cozinha.
E só depois verá a água rosada escoando-se pelo ralo, e o corpo de Francisco descaido sobre o lavatório. E o golpe. Um traço fundo sobre o pulso esquerdo.
Ou Joaquim Maria verá de imediato o corpo de Francisco exangue, e há-de pensar que ainda vive, e só depois notará os pingos a caminharem da varanda para a cozinha.
De um ou outro modo, exclamará, zangado: porra, Francisco! como se o outro tivesse apenas feito uma porcaria ao esfregar a bota sobre o sangue caído na tijoleira da varanda.
E Joaquim Maria há-de dobrar-se a apalpar-lhe uma veia no pescoço.
E há-de tomar-lhe o pulso por uns segundos.
Tudo isso antes do desespero. Tudo antes de buscar-lhe a boca já esfriada a beijá-lo. Antes que chegue Otília e nem um choro, os olhos dela a dizerem: eu tinha avisado.
Tudo antes que chegue o médico e diga sinto muito, estendendo a mão numa formalidade. Que será necessário que o médico diga: está morto. Será preciso que ele oficialize, que encerre uma esperança que, sem isso, bailará como pétala em acrobacia num vento muito forte. E nem um pulsar na veia do pescoço, e nem nos olhos um viço.
Que o médico venha e faça o veredito.
Depois, Joaquim Maria irá subir ao andar de cima. Ficará a olhar-se no espelho apenas para dizer aquele ali é um outro. E virá um choro convulsivo estremecê-lo. Um choro irrepetível, que ele há-de receber os amigos e os familiares atrás de uns óculos escuros que comprou quando passaram juntos o último Verão.
Não será chamado padre para as exéquias. Otília assim há-de querê-lo, ela que estará cerrada num preto elegante, mantilha na cabeça e sapatos com salto muito alto, e a cobrirem-lhe os olhos cor de mar, uns óculos igualmente negros.
Tens uns olhos cor dos mares de sul, dizia-lhe Francisco.
Ele está muito doente, não percebes?!
Eram palavras dela antes de cada uma das viagens, os três sentados debaixo da buganvília, e as roseiras florindo.
O batom de Otília nem estará esborratado e nem se lhe verão choros.
Joaquim Maria só agora lhe entenderá as palavras e os medos.
Com a mão enluvada de negro, hão-de cumprimentar-se, e nenhum dos dois retirará os óculos muito escuros quando disser, a urna a descer vagarosa, e eles como se tivessem ensaiado, muito baixo, muito soluçado:
– Descansa em paz, Francisco.

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1 comentários:

São essas suas descrições da gota vermelha no chão igualmente vermelho que me encantam. O conto, em si, é um crescendo vigoroso, mas os detalhes do que você escreve são muito valorosos! Texto forte, triste, lindo.

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