Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

sábado, 10 de novembro de 2012

A Alma da Capital



Henry Alfred Bugalho

Minha coroa quase nunca falou sobre meu pai, e eu, em respeito ao padrasto, que me criou como a um verdadeiro filho, também não tocava neste assunto.
Conviver não é fácil, pois às vezes magoamo-nos uns aos outros sem nem termos intenção.
No entanto, ao avisar minha mãe que me mudaria para Brasília para assumir um cargo no funcionalismo público, os olhos dela se encheram de lágrimas, ela segurou delicadamente minhas mãos entre as delas e me puxou para a sala.
— Seu pai teria orgulho de você.
— Sim, eu sei...
— Promete que se cuida? Ouvi no rádio sobre os atentados nas bancas de jornal. Os ânimos estão à flor da pele. Não vá se envolver com politicagem, meu filho, nem com estes grupos radicais.
Eu ri, um pouco nervoso. Não entendia nada de política, nem me interessava o comunismo, apesar de vários amigos da universidade terem levado borrachada da cavalaria em protestos. Eu não estava nem aí para o Figueiredo. A minha diversão eram os filmes do Chuck Norris, Bruce Lee e James Bond, nada muito intelectualóide e Marx nunca havia dado as caras por minhas prateleiras. Tudo que mais me importava era a minha garota, e eu estava deprê pacas por deixá-la pra trás.
— Não se preocupe, mãe — respondi, enquanto ela me abraçava com força.
— Sabe, foi lá que conheci seu pai...
— Em Brasília?!
— Sim, era um dos peões que ergueu aquela cidade, isto vinte anos atrás. Vindo do sertão baiano, pele queimada do sol e olhos cor de grafite. Um baita homem, eu lhe digo! Daqueles que parecia saído das histórias de jagunços e cangaceiros. Muitos tinham medo dele, um sujeito calado e que nunca sorria, trabalhando incansável do nascer ao pôr do sol. Meu noivo e ele logo se tornaram os melhores amigos, unha e carne, como se diz. Na hora do almoço, eu levava a marmita para os dois no canteiro de obra e seu pai falava que, assim que juntassem um dinheirinho, ele e meu noivo abririam uma sociedade no Rio de Janeiro e ficariam ricos. Aquela era a época dos sonhos, meu filho, mesmo que todos nós estivéssemos comendo o pão que o diabo amassou. É o progresso atropelando os fracos para que os fortes fiquem ainda mais poderosos. Não estou certa de quando reparei que seu pai me olhava com outros olhos, desejando-me, mas sei que também me apaixonei por ele. Ninguém manda no coração, e todo o jovem é capaz de fazer loucuras quando está apaixonado. Uma manhã, seu pai me chamou num cantinho e me disse: “quero encontrar você mais tarde”. E foi na escuridão, no meio das obras, no esqueleto do que viria a ser o Palácio do Planalto, que eu e seu pai nos amamos, cheios de medo que os capatazes nos flagrassem.
— E o seu noivo?
— Não sabia de nada, a princípio. Até que os boatos começaram a circular entre os peões e a notícia chegou aos ouvidos dele. Meu noivo era pacífico, um santo, não quis acreditar no que escutava. Mas, uma noite, com a pulga atrás da orelha, ele foi atrás de mim na construção e nos pegou juntos. Um rebuliço! Seu pai puxou uma peixeira e só não matou o meu noivo porque não deixei. Não queria nenhum morto por minha culpa, não sou assim. Juntei minhas trouxas e fui de vez pra casinha de seu pai. Ele e meu noivo não se falaram mais, apesar de trocarem olhares atravessados quando se esbarravam. E eu morria de medo que por um ato de vingança eles ainda se matassem. Seu pai se isolou ainda mais, todos o evitavam e ele virou um homem amargo. Era no meu seio, na escuridão da noite, que ele sussurrava para mim que me amava e que, quando possível, cairíamos no mundo e seríamos felizes como casal nenhum jamais foi.
E minha mãe enxugou com um lencinho a lágrima que lhe deslizava pela face.
— Já estava tudo certo e em uma semana partiríamos de Brasília rumo a Salvador, onde um amigo de seu pai havia lhe arranjado um emprego. Então o andaime onde trabalhava meu antigo noivo tombou. A amizade entre eles falou mais alto e seu pai correu para acudir, segurando o amigo pelo braço. “Não vou te soltar”, ele disse, mas os dois despencaram trinta metros abaixo. Foi um milagre, muitos disseram, porque meu noivo se salvou ileso, nem um arranhão, enquanto seu pai caiu de cabeça e morreu no ato. Uma semana antes de irmos embora, dá para acreditar?
— E o que aconteceu depois? — perguntei.
— Meu noivo veio e me consolou. “Ele era um homem bom”, ele me disse, “um verdadeiro amigo”. Eu respondi: “estou grávida... E o pai do meu filho está morto. O que será da minha vida?”. Eu chorava. Meu noivo se ajoelhou diante de mim e jurou: “vou cuidar de você até o fim de seus dias. Confie em mim”. Parecia até cena de filme.
— Meu padrasto? — perguntei.
— Sim, filho, ele sempre cumpriu a promessa, nunca deixou de me amparar e, com o tempo, voltei a amá-lo como antes. Viemos para o sul, você nasceu e fomos muito felizes até agora.
A luz vermelha do entardecer atravessava as cortinas e iluminava o rosto de minha mãe. Era a primeira vez que transparecia a dor íntima que ela havia ocultado por tantos anos.
— E você pensa nele?
— Todo o santo dia. Nem todo o tempo do mundo apaga o verdadeiro amor. E tem você, com o olhar profundo e cinzento do seu pai, como um retrato vivo do homem que conheci vinte anos atrás. Ele era um verdadeiro brasileiro, não daqueles que usam ternos e fazem leis, ou que estão sentados em poltronas de couro fumando charutos. Era daqueles brasileiros que põem a mão na massa, que erguem os prédios de luxo nos quais jamais poderão habitar, que constroem as capitais onde trabalharão os políticos que não dão a mínima pra gente simples como nós. Ele era a alma do nosso país, e morreu trabalhando para nos dar um futuro.
No ônibus, a caminho para a capital, refleti muito sobre esta história. Eu era jovem quando minha mãe me revelou este segredo e, desde então, vi o fim da ditadura, meia dúzia de presidentes passarem pelo Planalto e maracutaias e escândalos sem fim. No entanto, sempre que caminho pelas ruas da cidade, penso que por aquelas veias corre o sangue do meu sangue, daquela classe de heróis anônimos que são a argamassa do mundo, cujas insignificantes vitórias cotidianas jamais serão contadas nos livros de História. Como minha mãe havia dito: a alma de nosso país.

Henry Alfred Bugalho
Curitibano, formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino”, "O Covil dos Inocentes", "O Rei dos Judeus", da novela "O Homem Pós-Histórico", e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca”, cidade na qual morou por 4 anos, e do "Curso de Introdução à Fotografia do Cala a Boca e Clica!". Após uma temporada de um ano e meio em Buenos Aires, está baseado, atualmente, na Itália, com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.
http://www.henrybugalho.com/

Share




4 comentários:

Uma bela homenagem aos verdadeiramente candangos, que ergueram a capital no Planalto Central. E mostra um Henry romântico, quase nostálgico. Agora, lendo, lembrei.

Obrigado pelo comentário, Cinthia.

No entanto, acho que fujo bastante da minha abordagem usual neste conto. Sou muito mais crítico e ácido, bem distante do semi-ufanismo desta narrativa.

Mesmo assim, gostei do resultado, apesar de o final estar um pouco deslocado...

Abraços.

Uou! Raramente os seus contos me emocionam. Este tem algo mais. Se calhar gosto de um pouco de drama.
E também noto, pela primeira vez (ou é do Alzheimer), uma nota de consciência político-social.
Gostei!

Obrigado pela leitura, Joaquim.

Certamente que meus textos acabam tendendo para um tom mais cerebral. Escrevi este sob medida para um concurso homenageando Brasília (do qual a Cinthia foi jurada, como descobri posteriormente).
Provavelmente forcei as tintas para dar este toque mais emocional.

Abraços.

Postar um comentário