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sábado, 3 de novembro de 2012

COMEDORES DE BATATAS



OS COMEDORES DE BATATAS

“A experiência dos tempos não tem feito outra coisa
                                                                                                               que dizer-nos que não há cegos, mas cegueiras.”
                                                                                                                 (José Saramago – Ensaio sobre a cegueira)


      Uma tela de Van Gogh. Cinco figuras díspares acomodadas em torno de uma pequena mesa de madeira, sob um candeeiro preso ao teto. A fraca luz empalidece os rostos congelados. O único homem, um negro esguio, cara chupada, postado à esquerda, em uma cadeira de espaldar alto, também de madeira. Uma boina cinza cobre-lhe os cabelos grisalhos e escassos. A mulher clara, ao seu lado, parece uma freira, a julgar pelo colarinho branco do vestido escuro e pelo chapéu da mesma cor. Olhos enormes, rosto em forma de pera. A outra, negra e de aspecto bonachão, também cobre a cabeça com algo de formato entre chapéu e boina. Os anos vividos parecem lhe garantir serenidade e distanciamento. De frente para o homem, no canto da direita, em uma cadeira idêntica, a terceira mulher, corcunda e com aspecto grosseiro. O nariz pontudo fere o espaço e o conceito mesmo de beleza. Como os outros, tem o cabelo coberto, mas por um lenço claro. A última mostra o cabelo, mas não o rosto. Vista de costas, a pequena estatura e o modelo do vestido – de corpete apertado, cintura e saia rodada – denunciam-lhe a pouca idade. Ainda se poderia falar das duas janelas ao fundo, da bandeja com iguarias de batatas, do chá servido pela mulher mais alta, em bule de alumínio, ou ainda da chaleira de ferro em espera inútil no canto esquerdo da tela, em primeiro plano. Mas nada disso tem importância senão o fato de que os cinco não podem enxergar os rostos que os cercam nem a luz que os ilumina. São, todos eles, cegos.
      
       Mas não foram sempre assim. Meses antes da pintura do quadro, os cinco camponeses de uma aldeia holandesa, parentes (o homem e a mulher negra, irmãos; e a garota, sobrinha de ambos) ou amigos, por uma dessas armadilhas do destino, envolveram-se em um acontecimento que mudaria irreversivelmente suas vidas.

       Depois de uma festa no povoado, em que dançaram e, menos a menina, beberam bastante, eles voltavam para casa em uma carroça conduzida pelo homem. Eram vizinhos em uma agrovila. A noite escura e chuvosa, a estrada escorregadia e uma ponte estreita, quase em curva, provocaram o descontrole do veículo e a queda de todos, incluindo os dois cavalos, nas corredeiras. Encontrados três dias depois e cerca de dois quilômetros rio abaixo, os corpos enregelados, acomodados em caixões toscos, foram perfilados no galpão em que acontecera a festa. Comoção generalizada.

       Quase na hora do enterro, quando os cocheiros estacionavam as carruagens fúnebres na entrada do salão, um ranger de dobradiças quebrou a monotonia dos choros e lamentos. Sob olhares incrédulos e desesperados, a tampa de um dos caixões, pressionada de dentro para fora, abriu-se, dando passagem a um pálido vulto em busca de ar. Em meio ao tumulto que se seguiu, os outros caixões também foram abertos, por iniciativa dos ocupantes ou por ação da menina. Já não havia testemunhas.

       Provavelmente por causa da longa exposição ao frio excessivo, as córneas dos acidentados sofreram uma espécie de gangrena, resultando na total perda da visão em poucos dias. Contribuiu para isso a recusa do único médico da aldeia em atender os enfermos.

      Cegos e privados do convívio de vizinhos e parentes, os cinco se isolaram no sítio de um deles, o homem negro, onde já havia uma plantação de batatas. Até que se habituassem à situação e pudessem cultivar outros produtos, estas foram seu único alimento.

       A notícia correu mundo. Todos comentavam sobre os mortos-vivos cegos e comedores de batatas. Só não viraram atração maior porque o temor sobrepunha-se à curiosidade.

       O pintor holandês Vincent Van Gogh, em tratamento de crise depressiva em um sanatório situado nas proximidades, ao saber da história, decidiu, sensibilizado, homenagear os excluídos em um quadro que retratasse essa condição, mas não revelasse a cegueira. “Cegos somos nós, que vemos, mas não enxergamos”, justificou-se. Foi um dos seus últimos trabalhos. Tempos depois ele se mataria.



Edelson Nagues

Extraído do livro Humanos (Scortecci Editora).



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Edelson Nagues
(nome literário de EDELSON RODRIGUES NASCIMENTO) é natural de Rondonópolis/MT e radicado em Brasília/DF. Estudou Direito e Filosofia, com pós-graduação em Língua Portuguesa. É poeta, escritor, revisor de textos e servidor público. Na década de 1980 e início da década seguinte, em seu estado de origem, atuou na área musical, como vocalista e principal letrista do Grupo Reciclagem, tendo participado de vários festivais universitários e de festivais regionais e nacionais da Caixa Econômica Federal, obtendo diversas premiações, inclusive como intérprete e letrista. Na época, funcionário da CEF, atuava como representante do então recém-criado Conjunto Cultural (hoje denominado Caixa Cultural) em Mato Grosso. Premiado e/ou selecionado para coletâneas em vários concursos literários, entre os quais se destacam: Concurso Nacional de Poesia “Adilson Reis dos Santos” (2012, Ponta Grossa/PR), XXXIII Concurso “Fellipe d’Oliveira” (2011, Santa Maria/RS), Prêmio Prefeitura de Niterói (2011), XXI Concurso Nacional de Contos “José Cândido de Carvalho” e XII FestiCampos de Poesia Falada (ambos em 2011, Campos dos Goytacazes/RJ), Concurso Novo Milênio de Literatura (Vila Velha/ES, 2010), IV Concurso Nacional de Contos do SESC-Amazonas (2010, Manaus/AM), VI Desafio dos Escritores (Brasília/DF, 2010), XL Concurso Literário “Escriba” (Piracicaba/SP, 2009). É autor dos livros Humanos (coletânea de contos premiados) e Águas de Clausura (de poesia, vencedor do X Prêmio Livraria Asabeça), ambos publicados pela Scortecci Editora. É membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras (de Cachoeiro de Itapemirim/ES) e mantém (ou tenta manter) o blog pessoal www.senaoescrevodoi.blogspot.com.
todo dia 03


25 comentários:

Edelson, não leve a mal. Da polémica pode nascer alguma luz.

Tenho as maiores dúvidas sobre ficcionar factos históricos. Parece-me que, sobre um personagem histórico e algum episódio da sua vida, ou se conta a versão histórica que se conhece, ou se trata do ambiente da personagem em peripécias compatíveis com o contexto histórico. Alterar factos históricos sem apoiar a teoria com algum conhecimento idóneo pode induzir os leitores em erro, levando-os a acreditar que os factos se passaram conforme relatado.
Vou enviar-lhe um e-mail.
Abraço!

Eu já discordo desta sua concepção, Joaquim.
Pois, citando Aristóteles: "“Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verosimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postos em versos as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa) - diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular."

Entendo que uma narrativa que distorça fatos históricos possa confundir o leitor - e já fiz isto deliberadamente -, no entanto, este leitor é um desavisado se tentar encontrar numa narrativa literária uma correspondência com o real.
Na ficção, o que vale são as regras internas da narrativa, ou a verossimilhança interna, pois o Van Gogh da ficção não é, nem precisa ser, o Van Gogh da realidade ou das biografias. Inclusive, um Van Gogh ficcional poderia ser um pedreiro holandês louco que se pensa pintor de quadros que ninguém dá valor em sua época.

Abraços.

Discordo completamente, Henry.
Nesta narrativa, está claramente identificado pelo narrador, e não por uma personagem, o nome verdadeiro dum pintor, sem qualquer pista de ser um homónimo, pintando um quadro com um título que Van Gogh pintou e outros pormenores que apontam inequivocamente para o pintor histórico. Está portanto descrito “o que aconteceu” e não “o que poderia acontecer”. Essa parte não é ficção. A “correspondência com o real” é total. É como descrever D. Pedro e o seu grito de Ipiranga, segundo o que se conhece. Depois entra uma versão de cegueira que a observação do quadro não permite, com um manancial de pormenores supostamente acontecidos e não por uma possível “leitura” subjetiva do quadro. É como se depois se descreva como D. Pedro se pôs ao serviço de Simão Bolívar e ambos foram fazer guerra de corso nas costas do Índico. E lá se matou. Acho esta via perigosa e desnecessária. Um D. Pedro ficcional posterior a uma descrição tão histórica exigia alguma pista. O leitor tem de poder perceber se é um ensaio, uma crónica ou um conto. Sob pena de construirmos uma Literatura e destruirmos a História.
Eu creio que é muito simples usar personagens históricos. Basta mudar-lhes o nome e as obras. Aí é ficção.
Abraço!

Entendo que o seu estranhamento se deva, principalmente, por você ser um estudioso da História da Arte, Joaquim. Você deve conhecer pormenores e sutilezas sobre várias obras que a maioria dos leitores (e também autores) não tem ideia.
Isto é uma dificuldade que qualquer autor de obras históricas enfrenta: encontrar leitores que entendam do assunto muito mais do que eles e que identifiquem falhas de correspondência ao real que comprometam a suspensão da descrença, que seria a meta de toda a ficção.
No entanto, a situação proposta por você, de Dom Pedro passando por uma porção de peripécias fictícias, é possível na ficção. Inclusive, existe um gênero da Ficção Científica conhecida como História Alternativa, na qual se trabalha justamente com narrativas históricas onde nada foi como foi, onde Hitler pode ter sido um mocinho e Jesus um guerrilheiro gay que tentava salvar os judeus.
Nestes casos, dependerá somente dos leitores aceitarem o jogo ficcional do autor e concordarem com as regras internas da narrativa, pois, tanto na narrativa histórica que se pretenda autêntica quanto na História alternativa, tudo que vale são as regras determinadas pela própria narrativa ficcional.
Um exemplo clássico, dado pelo próprio Umberto Eco em "Seis Passeios pelos Bosques da Ficção" é o Cardeal Richelieu de "Os 3 Mosqueteiros", um personagem com o nome de uma figura histórica, mas que, no fundo, pouco tinha da figura histórica de fato, além disto, a própria Paris descrita por Dumas possui uma geografia que se assemelha à Paris da época de Dumas, e não à da época dos mosqueteiros.
No entanto, é como eu disse, quando um autor opta por distorcer a História para se encaixar em seus projetos ficcionais, de antemão ele sabe dos riscos de encontrar um leitor que recuse aceitar as regras propostas, por tentar encontrar esta correspondência com a realidade, mesmo que a Literatura não tenha nenhum comprometimento em ser verídica.

Agora, um exemplo pessoal: para a Oficina escrevi um conto descrevendo a Síndrome de Caim e desenvolvendo um psiquiatra fictício que estudou esta patologia. A descrição da síndrome e dos casos é feita mais ou menos como um trabalho científico e também como uma biografia. Alguns anos atrás, encontrei um trabalho de psicologia citando o meu conto como uma referência sobre os sintomas da Síndrome de Caim.
Eu não tenho culpa alguma se o leitor não possui discernimento para distinguir entre uma narrativa ficcional e uma obra não-ficcional, nem que ele não possua critérios para investigar mais profundamente o assunto e tentar encontrar uma resposta que refute a minha obra. É mais ou menos como "Pierre Menard, o autor de Quixote" de Borges, ou algumas resenhas de livros fictícios que ele fazia para o jornal. Podia ter enganado centenas de leitores, mas ninguém nunca determinou que a Literatura não possa ser enganadora, inclusive, uma das críticas de Platão às Artes era que os artistas eram mentirosos.
Talvez a nossa missão seja mentir da maneira mais convincente possível.

Abraços.

Mais um belo texto, Edelson. Parabens.

até me sentiria inibida, a pensar como o Joaquim, a escrever aquele contito dito " novas de Bentinho a seu filho" sim sim eu sei que aí era ficção versus ficção, mas ainda assim...mas quem sou eu...e no entanto estou em pleno acordo com o Henry, Joaquim, e disso apelo apenas à ficção (dita) científica, onde muita coisa é apelo à imaginação, umas vezes partindo de fenómenos e suas interpretações correctas cientificamente, mas nem sempre, nem necessàriamente espera isso quem lê e apliquei algumas vezes em sala de aula textos (não tantos como desejaria...) cuja leitura visava precisamente detectar incorrecções...
nisso de facto (histórico ou científico) versus ficção, literatura, o que é grave (víssimo!!) é misturar na narração factos supostamente correctos e que, por incúria de quem escreve, estão errados! disso se deve precaver quem escreve e é caso bem diverso do que estamos discutindo, e esse, sim, Joaquim, não só perigoso por induzir em erro, mas desconfortável para quem sabe que está a ser ludibriado
abraços

Joaquim, li seu e-mail ontem, de passagem, e ainda não tive tempo de respondê-lo (embora "feriadão", eu estou cheio de trabalho, por conta de minha atividade profissional). Pretendo fazê-lo ainda hj, rebatendo ponto por ponto.

Pouco depois de ler seu e-mail, pensei exatamente no conto "Pierre Menard, excritor de D. Quixote", do Borges, a que o Henry se referiu em um dos posts acima (que só li agora há pouco). Ora, um leitor muito - mas mto mesmo - desavisado, envolvido pela narrativa inteligente do grande escritor argentino, sempre repleta de informações falsas, mas embasadas em uma erudição fantástica, poderia, então, acreditar que o autor de "D. Quixote" seria mesmo um tal Pierre Menard. Um outro grande escritor latino-americano, Alejo Carpentier, em seu livro "O reino deste mundo", aborda fatos históricos que antecederam a independência do Haiti, dotando um de seus mártires de poderes sobrenaturais, como voar e tornar-se invisível. Assim, se um leitor procurar fidelidade aos fatos históricos, com certeza considerará o livro, uma reconhecida obra-prima, uma grande besteira. Há vários outros exemplos nessa linha, mas creio que eses dois sejam suficientes para balizar esta interessante discussão. Como o Henry disse - e é o meu entendimento tb -, "na ficção, o que vale são as regras internas da narrativa ou a verossimilhança interna".

Ainda no e-mail, vc questiona o fato de, na narrativa, as cinco pessoas retratadas no quadro serem cegas, mas umas olham para as outras, o que não é uma atitude comum nos cegos, e há uma candeeiro, totalmente inútil, portanto. Mas, se vc reparar bem, em meu conto há uma frase que torna essas distorções possíveis (a tal da verossimilhança interna), que é a seguinte: "... decidiu, sensibilizado, homenagear os excluídos em um quadro que retratasse essa condição, mas não revelasse a cegueira". Ora, se o pintor não tivesse a intenção de revelar a cegueira, com certeza pintaria pessoas que não parecessem cegas, colocando um elemento, a luz, em destaque no quadro.

Em uma outra observação, em seu e-mail, vc diz que desconhece o fato de Van Gogh, o pintor (e não o personagem) ter se matado, mas a grande maioria das informações biográficas contam que ele, já no manicômio, teria dado um tiro com uma espingarda no próprio peito, vindo a morrer três dias depois (informação que consta do volume dedicado ao gênio holandês da coleção Grandes Mestres da Pintura, da Folha de São Paulo, baseada em publicações sérias sobre a vida do pintor - a divergência é que se refere a um tiro no estômago, e não no peito). Ainda que nesse período de três dias ele, suponhamos, tenha se arrependido de tal ato, o fato de ter morrido em consequência não altera a realidade do suicídio.

Enfim, são questões interessantes sobre entendimentos diferentes sobre literatura. Agradeço-lhe por tê-las suscitado, provocando este debate profícuo. Como vc mesmo disse, "da polêmica pode nascer a luz".

Abraço.

Agradeço tb ao Henry, ao Edweine e a Maria de Fátima pela leitura e comentários.

Vamos por partes. Antes de mais:

Edelson, você tem razão sobre a morte de Van Gogh. Foi ligeireza de pesquisa da minha parte. E também não reparei nessa frase final que retira inverosimilhança ao texto confrontado com o que é visível no quadro. Por aí, já podemos ir.

No entanto o texto continua a suscitar-me reticências ao ser apresentada a cegueira das personagens como coisa acontecida. Borges pode enganar-nos com um Meinard fictício. É gostoso. Mas seria aceitável se ele alterasse a história de Cervantes?
Neste site: http://www.bernardcornwellbr.net/entrevistas/article.htm
o autor diz que “A maioria dos romances históricos tem uma GRANDE história (digamos a Guerra Civil Americana) e uma pequena história (Conseguirá Scarlett o'Hara salvar Tara?). O segredo é conseguir uni-las - você coloca a pequena história (inventada) no primeiro plano e a grande história (real) como plano de fundo. Agora, você não tem liberdade para alterar a história grande, mas você pode ser tão inventivo quanto quiser com a pequena história.”
O que eu sinto é que aqueles camponeses à mesa talvez façam parte da grande história. Van Gogh falou deles e possivelmente sabe-se os seus nomes e a sua ausência de cegueira.

Esta questão dos limites na ficção histórica interessa-me muito e ficaria contente se conseguisse ficar convencido de uma das teses.

Fátima, não percebo. Por um lado dizes que “nisso de facto (histórico ou científico) versus ficção, literatura, o que é grave (víssimo!!) é misturar na narração factos supostamente correctos e que, por incúria de quem escreve, estão errados!”, por outro dizes que discordas de mim. Um de nós deve estar a falar chinês e o outro, sueco.
Abraço!

Pois é, Henry, “ um autor (…) sabe dos riscos de encontrar um leitor que recuse aceitar as regras propostas, por tentar encontrar esta correspondência com a realidade”. Dum livro que pusesse D. Pedro a fazer guerra de corso no Índico a crítica diria que tinha inconsistências históricas e alguns leitores poriam o livro de lado como mau. Entenderiam a deturpação histórica como inverosimilhança. Os que aceitassem o jogo ficcional talvez um dia teimassem veementemente com os netos de que sabiam muito bem que D. Pedro, blá, blá, no Índico porque já tinham lido isso.

Na Oficina escrevi o conto “Com a melhor das intenções” suscitado pela revolta que sentira com um e-mail que recebi com uma história deturpada sobre a génese de um desenho de Durer. Nesse conto as personagens sugeriam a perseguição judicial a quem deliberadamente alterasse os factos históricos, equiparando-os a falsários. Sim, a deformação da aprendizagem académica tem destes arroubos.
Abraço!

Muito interessante esta citação do Bernard Cornwell, Joaquim, apesar de eu não saber até que ponto ele segue esta recomendação ao pé da letra.

Estava lendo "O Rei do Inverno", romance sobre o rei Arthur, e me pareceu que ele se deu bastante liberdade para inventar tanto a pequena História quanto a grande História, posto que há pouquíssimas evidências sobre a história real de Arthur, a não ser através das várias lendas medievais.
Não sei quanto aos outros romances dele, mas me pareceu mais um "faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço". :D

Abraços.

Encontrei este texto de um escritor de romances históricos, professor universitário da área e especialista em Saramago, mas estou com dificuldades em encontrar lá as respostas que preciso:
http://www.pedroalmeidavieira.com/assets/media/DEC%C3%81LOGO%20DO%20ROMANCE%20HIST%C3%93RICO.pdf

A melhor obra que já li sobre este assunto, Joaquim, que utilizei durante a especialização em História e Literatura, é "A Poética da Pós-Modernismo", de Linda Hutcheon.

Abaixo está o link

http://www.scribd.com/doc/80199935/HUTCHEON-Linda-Poetica-do-pos-modernismo

Leia particularmente o capítulo "Metaficção Historiográfica: "O Passatempo do Tempo Passado".

Boa tarde.

Particularmente, também gostei muito do texto. E não vejo mal algum em se usar personagens reais em históricas fictícias. A literatura e, por consequência, o cinema fazem isso com muita frequência.

O livro e também filme 'A Última Tentação de Cristo' é um bom exemplo disso.

Quando alguém quer conhecer os fatos reais, certo é que não os encontrará em contos de ficção. A pesquisa histórica é outra coisa e seu objeto de estudo são outras fontes.

A literatura possui, sim, a liberdade para brincar com a realidade, alterando-a para melhor ou para pior, conforme a visão de cada um.

E esse conto ficou. Parabéns meu amigo. Sua criatividade é extrema. Não é por acaso que vem somando prêmios literários.

Grande abraço!

Este comentário foi removido pelo autor.
Este comentário foi removido pelo autor.

Joaquim, dois outros exemplos de "distorções históricas" pela ficção são os livros "A mulher que escreveu a bíblia", do Moacyr Scliar (o próprio título já diz tudo) e "O Chalaça", do Roberto Torero, ambos ganhadores de importantes prêmios literários no Brasil. Este último trata, de forma bastante "deturpada", de episódios ocorridos no período imediatamente anterior à Independência do Brasil e um pouco depois, brincando - e questionando - com a "história oficial".


Respeito seu posicionamento, mas não concordo com que vc compare meu trabalho de ficção com "um e-mail que recebi [vc recebeu] com uma história deturpada sobre a génese de um desenho de Durer", como vc tb disse no e-mail que me enviou. Desconhecendo o conteúdo do e-mail a que vc se refere, concluo que não se trata de ficção, mas da tentativa deliberada de deturpar o que poderíamos chamar de "fato histórico" (deixando de lado a questão sobre o que realmente possa assim ser considerado), qual seja, a gênese de um desenho de Durer. Isso, sim, é tentar deliberadamente induzir o leitor a erro, e seu autor é de fato um falsário e como tal deveria ser processado. Já pensar em processar um escritor por utilizar, com a liberdade que a arte lhe outorga, um fato histórico com dstorções adequadas à sua narrativa, é, no mínimo, uma tentaiva arbitráaria de cercear a criação. Inconcebível em todos os sentidos. Mais ainda qudo vinda de outro escritor.

(Removi os dois posts anteriores por apresentarem algumas incorreções gramaticais, agora sanadas.)

Mto obrigado, André. E a lembrança do cinema como manifestação artística que tb se utiliza, com liberdade, de fatos consagrados pela "história oficial" vem enriquecer - e mto - este debate.

“não vejo mal algum em se usar personagens reais em históricas fictícias.” – E não tem dúvidas?

Segundo o texto a citar http://www.pedroalmeidavieira.com/assets/media/DEC%C3%81LOGO%20DO%20ROMANCE%20HIST%C3%93RICO.pdf
“O romance histórico não reinterpreta ou reconstrói a história segundo um ditame de verdade – tal como fora pensado na primeira metade do século XX.”

Portanto, houve um tempo em que a dependência da verdade histórica limitava a narrativa, segundo entendo do texto citado. Provavelmente, ainda estou nesse tempo e preciso de acreditar no novo entendimento, mas não em modismos ou argumentos de autoridade, se bem que estes ajudem.

“Não é por acaso que vem somando prêmios literários.” – Nunca esteve em causa, nesta polémica, a qualidade ficcional do conto do Edelson. Aliás, o meu problema advém exatamente da razoável verosimilhança da narrativa, sem que uma pista nos alerte de que se trata de ficção. Em muita ficção o leitor aceita entrar no jogo, mas percebe que se trata de ficção.

“Já pensar em processar um escritor (…) Inconcebível em todos os sentidos. Mais ainda qudo vinda de outro escritor.” – Não, a ideia de desmascarar as fraudes (e não perseguir judicialmente, como eu recordava), não veio dum escritor mas duma personagem que era delegado duma secção de roubo de obras de arte. A frase foi: “Se calhar, devia haver uma entidade, uma organização não-governamental, engajada com a divulgação do conhecimento, que tomasse por missão desmascarar esta gente que espalha a aldrabice pela Internet, como quem espalha o vírus duma doença epidémica.”

"...mas não em modismos ou argumentos de autoridade, se bem que estes ajudem."

Só não podemos nos esquecer, Joaquim, que os argumentos de autoridade se fundam em casos literários concretos.
Se os limites entre ficção e História se tornam mais difusos, ou até irreconhecíveis, na ficção histórica do século XX em diante, é justamente porque vários escritores, consciente ou inconscientemente, resolveram dissolver uma vertente anterior de ficção história, talver por constatar a falsidade com que elas tentavam dialogar com os fatos reais.
Isto só se torna um problema para a teoria porque era o que os autores estavam/estão escrevendo, exatamente do mesmo modo que a gramática codifica e se altera de acordo com as flutuações da oralidade da língua.

Abraços.

Não tenho estado parado.
Como não consigo baixar o texto do Scribd que o Henry aconselhou, contactei o académico que refiro como autor de um decálogo do romance histórico: Miguel Real. Amavelmente, respondeu-me: [em Portugal] “Após o 25 de Abril, o romance histórico deixou de conhecer limites ficcionais e os autores dividem-se em duas correntes: uma, mais clássica, que obedece fielmente à cronologia e e à verosimilhança. Outra, mais actual, para a qual a realidade histórica é meramente inspiradora.
Os melhores romances históricos actuais (não os light), foram escritos segundo esta última corrente - tempo, por exemplo, a trilogia de João Paulo Oliveira e Costa, "O Império dos Pardais", dos melhores romances históricos publicados este século em Portugal e que cruza o suspense, o sexo, a espionagem e o romance histórico.”
Aconselhou-me a leitura do livro: "O Romance Histórico em Portugal", de Maria [?] Marinho (Campo das Letras). Amanhã vou requisitá-lo na biblioteca de onde moro.
Estou com uma grande curiosidade do que vou encontrar. Ainda tenho dúvidas se não estaremos a laborar num mal-entendido, cada um a falar de coisas diferentes.

Já li várias partes do livro que refiro no post anterior, especialmente as relacionadas com "História alternativa". Realmente, já entendo que o relativismo do conhecimento da História tenha permitido a alguns escritores concederem-se a licença para efabularem mirabolantemente com os dados históricos.
(Em relação ao relativismo do conhecimento, acho que é positivo para manter a mente aberta para achegas inesperadas ao que se conhece. Já acho temerário um “relativismo absoluto”, deitando fora tudo o que se sabe, porque o nosso progresso se funda na adição progressiva de conhecimento. Mesmo nas revoluções, como a copernicana, o que se trocou – o centro do mundo – embora de uma importância central e fundamental, foi apenas parte do conhecimento astronómico existente à época.)
Percebi que é possível ir tanto mais longe na deturpação histórica quanto maior é a cultura do leitor. A adulteração bíblica de Saramago é pacificamente aceite pelo leitor que conheça a Bíblia, que rapidamente reconhece a paródia.
Confirmei algumas técnicas que os escritores usam para não entrarem em conflito direto com a História: histórias contadas por marginais, ou bobos, ou outros menos credíveis, documentos que aparecem sem rastreio de autenticidade, declarações explícitas de que o que se vai ler não corresponde à História conhecida, etc.
Dos vários exemplos literários apontados, só um ou dois me pareceram adulterações em roda livre, daqueles que não dão qualquer pista ao leitor, mas só lendo-os poderia confirmá-lo.

Como seria de esperar, a autora cita várias vezes Linda Hutcheon e Elisabeth Wesseling. Como continuo incapaz de ler ou baixar o texto de Linda Hutcheon,
http://www.scribd.com/doc/80199935/HUTCHEON-Linda-Poetica-do-pos-modernismo
peço a quem o consiga que mo envie para episcopum@hotmail.com
Obrigado!

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