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quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O Menino e a Atiradeira


Era um bom menino, avesso às pequenas malvadezas tão comuns no universo infantil, mas queria ter uma atiradeira. Nunca pensou em matar passarinhos, judiar dos gatos, bater nos meninos menores, mas queria ter uma atiradeira, símbolo de status entre a gurizada do bairro, um rito de passagem, porta de entrada para o mundo dos garotos maiores. E ele desejava ser da turma dos maiores.
Diziam ser ele inteligente e observador, qualidades que amenizavam sua timidez, quase um bicho do mato. E sendo tímido, não se encorajara em pedir a outro menino para lhe fazer um estilingue. Inteligente e observador, estudou por semanas a construção daqueles meio-brinquedos, quase armas, a enfeitar as mãos dos moleques descalços quando invadiam o sítio fronteiriço à comunidade para caçar pardais e rolinhas.
Adquirindo segurança em seus planos, pôs mãos à obra. Cuidando de ocultar no esconderijo do seu quarto o projeto que certamente a mãe abominaria, o menino serrou a forquilha colhida de uma goiabeira até conquistar a forma do ipsílon característico do bodoque. Arrancou a casca com auxílio do seu canivete, presente do pai que há meses fora embora de casa, e o quarto inundou-se pelo cheiro da clorofila liberada pela operação. Lixou o artefato e uniu as pontas menores do vértice às tiras de câmara de pneu previamente cortadas, atando as extremidades livres a uma peça de couro retangular que alojaria a pedra a ser arremessada.
Trabalhou o menino com extrema habilidade na criação de sua atiradeira. Ele mesmo surpreendera-se com o talento manual hibernado dentro de si. Agitado pela novidade, experimentou uma, duas vezes o estilingue, esticando e soltando inúmeras vezes as alças elásticas, lançando ao longe obuses imaginários. Escondeu o brinquedo debaixo da cama e custou a ser visitado pelo sono naquela noite, fruto da ansiedade para usar de seu bodoque no dia seguinte.
Mal os galos cantaram, o menino já estava de pé. Era período de férias e ele podia assim gastar toda a manhã provando de seu novo brinquedo.
Sozinho, no campinho de futebol próximo a sua casa, treinou a pontaria em latas de leite enferrujadas, dispostas lado a lado, próximo a uns dos gols. Fazia com cuidado a mira, esticando as tiras, enquanto olhava concentrado dentro do vértice. Soltava a pedra com suavidade, sem mover o braço. Foi quando o menino viu um camaleão sair de seu esconderijo e subir em um pequeno corte do terreno atrás do gol. O bicho parecia se aquecer, ganhando vida ao banhar-se com os primeiros raios solares do dia.
Lentamente, para não afugentar o réptil, o menino abaixou-se e pegou uma pedra. Novamente de pé, apontou o estilingue em direção ao pequeno animal. O mundo pareceu estancar naquele momento, só existindo o caçador e sua presa, tal a concentração na qual o menino depositou o tiro que atingiu de modo preciso a cabeça do camaleão, arremessando-o por força do impacto para uma moita atrás do corte.
Tonificado pela adrenalina da ocasião, o menino ansioso vasculhou a moita e encontrou o camaleão agonizante. A pedrada esfacelara parte do crânio, carnes estavam expostas, um olho havia sido arrancado. A respiração do bicho se fazia ofegante, e o réptil movia apenas uma das patas traseiras.
A visão do animal às portas da morte o chocou. O remorso então lhe inundou alma, afogando a sanha assassina que minutos antes o fizera predador. De súbito, tomou asco pela atiradeira que tanto desejara e jogou-a no meio do mato. Pela primeira vez ele matara, e viu que fora ruim. Voltou para casa corroído pela culpa. Lágrimas umedeciam sua face. A mãe, assustada, perguntou o que ocorrera. Preferiu o silêncio. Trancou-se no quarto durante o resto do dia, pensamentos dominados pela imagem do camaleão atingido.
Quando o cansaço venceu e o sono o tomou, o menino foi perturbado durante toda a noite por sonhos maus, protagonizados pelo camaleão ferido.
Os galos novamente cantaram, anunciando a nova alvorada e o menino, nem bem despertara, correu para o local onde jazia o réptil. Nada encontrou. Vasculhou em torno e nem sinal do bicho. "Quem sabe ele sobreviveu"? - pensou o menino. Um rasgo de esperança assaltou seu coração e um sorriso brotou novamente em sua face cuja tristeza havia se esculpido por quase 24 horas.  Aquele sorriso juvenil transformou-se em uma risada gostosa, aplacando o remorso pelo mau ato de véspera, atestando em seu íntimo que, apesar do acontecido, ele ainda era um bom menino.
O menino nunca soube que um grupo de garotos maiores, daqueles que ele admirava, havia se reunido ali para jogarem bola enquanto ele estivera trancado em casa, remoendo-se em culpa. Divertiram-se atirando o corpo do cameleão em um riacho próximo ao campinho para ver os peixes devorá-lo. Quanto à atiradeira, também encontrada, serviu de motivo para contenda entre eles. O maior dos meninos, e mais forte, vencera a batalha, e era agora dono de um estilingue de fazer inveja. Deus escreve certo por linhas tortas.

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Zulmar Lopes
Carioca, jornalista, contista e aspirante a romancista, Zulmar Lopes tem um punhado de prêmios literários, a maioria de nenhuma importância. Membro correspondente da Academia Cachoeirense de Letras (ACL). Roteirista do curta de animação “Chapeuzinho Adolescente”. Em 2011 lançou o livro de contos “O Cheiro da Carne Queimada”. Finalmente concluiu o maldito romance cujo pano de fundo é o carnaval carioca e está na expectativa de que alguma editora incauta se atreva a publicá-lo.
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