Era um bom menino, avesso às pequenas
malvadezas tão comuns no universo infantil, mas queria ter uma atiradeira.
Nunca pensou em matar passarinhos, judiar dos gatos, bater nos meninos menores,
mas queria ter uma atiradeira, símbolo de status entre a gurizada do bairro, um
rito de passagem, porta de entrada para o mundo dos garotos maiores. E ele
desejava ser da turma dos maiores.
Diziam ser ele inteligente e observador, qualidades
que amenizavam sua timidez, quase um bicho do mato. E sendo tímido, não se
encorajara em pedir a outro menino para lhe fazer um estilingue. Inteligente e
observador, estudou por semanas a construção daqueles meio-brinquedos, quase
armas, a enfeitar as mãos dos moleques descalços quando invadiam o sítio
fronteiriço à comunidade para caçar pardais e rolinhas.
Adquirindo segurança em seus planos,
pôs mãos à obra. Cuidando de ocultar no esconderijo do seu quarto o projeto que
certamente a mãe abominaria, o menino serrou a forquilha colhida de uma
goiabeira até conquistar a forma do ipsílon característico do bodoque. Arrancou
a casca com auxílio do seu canivete, presente do pai que há meses fora embora
de casa, e o quarto inundou-se pelo cheiro da clorofila liberada pela operação.
Lixou o artefato e uniu as pontas menores do vértice às tiras de câmara de pneu
previamente cortadas, atando as extremidades livres a uma peça de couro
retangular que alojaria a pedra a ser arremessada.
Trabalhou o menino com extrema
habilidade na criação de sua atiradeira. Ele mesmo surpreendera-se com o
talento manual hibernado dentro de si. Agitado pela novidade, experimentou uma,
duas vezes o estilingue, esticando e soltando inúmeras vezes as alças
elásticas, lançando ao longe obuses imaginários. Escondeu o brinquedo debaixo
da cama e custou a ser visitado pelo sono naquela noite, fruto da ansiedade
para usar de seu bodoque no dia seguinte.
Mal os galos cantaram, o menino já
estava de pé. Era período de férias e ele podia assim gastar toda a manhã
provando de seu novo brinquedo.
Sozinho, no campinho de futebol
próximo a sua casa, treinou a pontaria em latas de leite enferrujadas,
dispostas lado a lado, próximo a uns dos gols. Fazia com cuidado a mira,
esticando as tiras, enquanto olhava concentrado dentro do vértice. Soltava a
pedra com suavidade, sem mover o braço. Foi quando o menino viu um camaleão
sair de seu esconderijo e subir em um pequeno corte do terreno atrás do gol. O
bicho parecia se aquecer, ganhando vida ao banhar-se com os primeiros raios
solares do dia.
Lentamente, para não afugentar o
réptil, o menino abaixou-se e pegou uma pedra. Novamente de pé, apontou o
estilingue em direção ao pequeno animal. O mundo pareceu estancar naquele
momento, só existindo o caçador e sua presa, tal a concentração na qual o
menino depositou o tiro que atingiu de modo preciso a cabeça do camaleão, arremessando-o
por força do impacto para uma moita atrás do corte.
Tonificado pela adrenalina da
ocasião, o menino ansioso vasculhou a moita e encontrou o camaleão agonizante.
A pedrada esfacelara parte do crânio, carnes estavam expostas, um olho havia
sido arrancado. A respiração do bicho se fazia ofegante, e o réptil movia
apenas uma das patas traseiras.
A visão do animal às portas da morte
o chocou. O remorso então lhe inundou alma, afogando a sanha assassina que
minutos antes o fizera predador. De súbito, tomou asco pela atiradeira que
tanto desejara e jogou-a no meio do mato. Pela primeira vez ele matara, e viu
que fora ruim. Voltou para casa corroído pela culpa. Lágrimas umedeciam sua
face. A mãe, assustada, perguntou o que ocorrera. Preferiu o silêncio.
Trancou-se no quarto durante o resto do dia, pensamentos dominados pela imagem
do camaleão atingido.
Quando o cansaço venceu e o sono o
tomou, o menino foi perturbado durante toda a noite por sonhos maus,
protagonizados pelo camaleão ferido.
Os galos novamente cantaram,
anunciando a nova alvorada e o menino, nem bem despertara, correu para o local
onde jazia o réptil. Nada encontrou. Vasculhou em torno e nem sinal do bicho.
"Quem sabe ele sobreviveu"? - pensou o menino. Um rasgo de esperança assaltou
seu coração e um sorriso brotou novamente em sua face cuja tristeza havia se
esculpido por quase 24 horas. Aquele
sorriso juvenil transformou-se em uma risada gostosa, aplacando o remorso pelo
mau ato de véspera, atestando em seu íntimo que, apesar do acontecido, ele
ainda era um bom menino.
O menino nunca soube que um grupo de
garotos maiores, daqueles que ele admirava, havia se reunido ali para jogarem
bola enquanto ele estivera trancado em casa, remoendo-se em culpa.
Divertiram-se atirando o corpo do cameleão em um riacho próximo ao campinho
para ver os peixes devorá-lo. Quanto à atiradeira, também encontrada, serviu de
motivo para contenda entre eles. O maior dos meninos, e mais forte, vencera a
batalha, e era agora dono de um estilingue de fazer inveja. Deus escreve certo
por linhas tortas.
1 comentários:
Crescer dói!
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