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Lembrança
é vida soterrada. Escondida sob escombros fundos, onde a dor se acomoda em letargia e
desistência por um tempo longo demais, curto demais.
Conveniência?
Ou seria medo o que nos faz insistir no esquecimento? Sofrer
é hábito descuidado. E a gente nem percebe há quanto tempo não sente alegria.
Ou paixão. Ou vontade. Ou qualquer coisa que aqueça o coração. Segundos, anos...
Quanto tempo se leva sendo triste?
Tornar-se
infeliz é bordado lento. É como poeira nas roupas, que se assenta em camadas
finas, toldando o viço, deturpando os fios da trama.
Ser triste leva uma vida. A
vida que depois a gente esconde na memória. E pensa que esqueceu.
Um fim de tarde magnífico se
debruçava sobre o mar de ondas soluçadas. Na areia, um pedaço de jornal que dançava
sob a regência da brisa chamou a atenção de Salvatore, exumando memórias
inesperadas e dolorosas. Apanhando a folha bailarina enroscada em seus pés,
olhou em volta, procurando o passado.
Inês corria pela praia atrás do
jornal que lhe fugira das mãos. Segurando o chapéu para que não voasse como as
folhas, pareceu a Salvatore, num primeiro e divertido olhar, que tentava
arrancar a própria cabeça.
–– Melhor voarem as notícias do que
o cérebro! — caçoou ele.
–– Como? –– interpelou-o a moça,
séria.
–– Deixe que eu pego o fujão –– disse
ele, prosseguindo com a troça.
–– Agradeço, mas dou conta
sozinha! –– respondeu a jovem, altiva.
Mas antes que um ou outro alcançasse
o jornal, o papel fujão decidiu por vontade própria ir parar aos pés de
Salvatore.
–– Agora, não se pode negar: ele
gosta de mim –– provocou-a, bem humorado.
Cedendo ao sorriso sedutor
daquele homem charmoso, Inês aproximou-se dele, aderindo à brincadeira.
–– Ingrato! Eu o compro, eu lhe
faço companhia e ele me abandona assim, pelo primeiro estranho!
–– Onde está o estranho? Vamos,
diga-me onde está que eu o ponho daqui para correr! –— disse ele, fingindo
procurar ao redor algum intruso.
Em seguida, estendeu a mão forte
e apresentou-se a ela:
— Salvatore Rossetti.
–– Inês Santana –– respondeu ela.
As mãos de Maria Inês eram conchas
quentes e macias, e o sorriso fez com que ele prestasse a atenção aos dentes
benfeitos. Achou-a tão linda que, ainda no cumprimento, sentiu-se tomado por um
abobamento incontrolável. Tentou recompor-se, mas era tarde demais. Inês tomou-lhe
a vida naquele mesmo instante.
A diferença de idade entre os
dois era de dez anos. O que não seria muito, não fosse a vida desregrada que
Salvatore levara até conhecê-la, que o tinha transformado em um cínico, um
mundano. Sentia-se velho. E tinha medo de magoá-la. No entanto, ali, à
beira-mar, Inês se tornou um cais. E ele foi deixando, aos poucos, de ter medo.
Do tédio que lhe tomaria os sentimentos quando cessasse o êxtase. De outras carnes
que lhe atrairiam o desejo quando findasse nas dela o frescor da mocidade. Da
irritação que sentiria, numa manhã de domingo, quando um “por favor”, um “me
ajude” o desconcentrasse da escrita dos textos. Esqueceu-se apenas de ter medo
de que ela deixasse de amá-lo quando ele voltasse a ser o homem que o habitava
antes.
Inês, contudo, o surpreendeu. Cedeu
e impôs-se a seus caprichos em igual medida. Agradou-o
com carícias; respeitou-o com silêncios. Ela o fez feliz. Como ele nunca tinha
sido. Como jamais seria. Mas ele se cansou de ser feliz. Enjoou-se das manhãs,
das tardes e das noites perfeitas. Aborreceu-se com a repetição das horas. Desprezou
o amor maduro que ela lhe oferecia. E só descobriu que era inverno quando viu a
neve em seus próprios cabelos.
Quando partiu, não se voltou uma
só vez para saber da tristeza de Inês. Não se despediu dos quadros que acenavam
suas tintas enfraquecidas pelos anos, nem revidou ao relógio que marcava “É
tarde!”.
Memória
é vento que se encolhe com frio de si mesmo; tormenta que se guarda para um
próximo açoite. É linha que costura na alma, em ponto miúdo, todos os choros,
todas as belezas, toda a rebeldia. E repousa, e repousa, e então desperta.
Esparrama-se em rajadas. Como um pulmão que expele. Para não sufocar.
A lua fazia desenhos na água. A
brisa assediava Salvatore, despenteando-lhe os cabelos ainda fartos. Ele não
queria ir embora. Não de novo. Tudo doía, mas ele gostava da dor. Não sentia
remorso pelos anos de liberdade e de excessos, e enfrentava o aperto no peito
sem sobressaltar-se. Mas a falta das memórias o atormentava. As memórias de
Inês. E a certeza de que, sem elas, não haveria consolo a acompanhar-lhe a
velhice.
Precisava vasculhar os escombros daquela
casa em ruínas e ouvir o murmúrio dos destroços. Até encontrar as lembranças. Seguiria
o sorriso de Inês, deixaria que o rastro da vida soterrada lhe indicasse o
caminho. Não descansaria. Não permitiria que a solidão o encontrasse distraído,
para que se apossasse do que lhe restava a respirar.
–– Salvatore –– escutou, então, a
voz tranquila.
Fechou os olhos e entregou-se ao
arrepio que o sacudiu por inteiro. Depois, sentiu que Inês o puxava pela mão e
deixou que os seus pés a seguissem. Abriu os olhos para reencontrar os quadros
em suas cores vívidas, e olhou para o relógio que marcava “Enfim!”.
A
gente pensa que esqueceu. A gente acredita que acabou. Então, a vida se levanta
das ruínas. Sussurra. Alcança-nos. E tudo está lá, intacto. Para nos levar
além.
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