Joaquim Bispo
– Eh, pá, não tenho dúvidas; é um desses mails moralistas a puxar ao sentimento, mas mesmo tocante – dizia Barbosa ao seu colega de secção, no regresso do almoço, pelos corredores da Judiciária. – A história é, mais ou menos, assim: na Alemanha do século XV, havia uma família numerosa e pobre, cujo pai tinha de trabalhar dezoito horas diárias nas minas de carvão para alimentar tanta gente. Dois dos filhos queriam ser artistas, mas como? Combinaram que um trabalharia nas minas, para pagar os estudos de pintura do outro, e depois trocariam. Assim fizeram. No regresso da academia, o primeiro, já formado, quis honrar o combinado, mas o irmão disse que era demasiado tarde; que os quatro anos de trabalho nas minas lhe tinham destruído as mãos para a pintura. Então, o pintor desenhou as mãos calosas do irmão, como homenagem. Aí, o mail apresenta o desenho realista de umas mãos todas cheias de rugosidades.
– Manda-me isso – concluiu Magalhães, interessado. – Sempre quero ver se é melhor que os poucos que leio. A maioria, nem abro, quando percebo que é pieguice.
Pouco depois, o inspetor Magalhães fechava a página do eBay, onde, de manhã, estivera a pesquisar leilões de azulejos portugueses, e leu o texto do extenso e-mail que emocionara Barbosa, e que vinha acompanhado de umas mãos-postas desenhadas por Durer. Terminava com uma máxima: «quando você se sentir demasiado orgulhoso do que faz e muito seguro de si mesmo, lembre-se de que, na vida, ninguém triunfa sozinho!»
– Uou! É potente! Não sabia que o Durer era tão pobre.
– Esta máxima final parece feita de propósito para nós, não achas?
– Mas, sabes – prosseguiu Magalhães, cofiando a pera – há aqui qualquer coisa que não bate certo. A história puxa muito ao choradinho. Há muita miseriazinha, muita entreajuda cristã, uma grande lição de moral no fim... E as mãos não me parecem as manápulas robustas de dedos grossos de quem trabalhasse numa mina. Os dedos são tão compridos e esguios como os de um desocupado.
– Tens razão! Vamos ver de onde é que isto vem.
– Olha, “Durer mãos” no Google dá-me vinte mil resultados. É muito.
– Com a primeira frase dá novecentos. Isto está bem espalhado!
– O melhor é procurar na Wikipédia – racionalizava Magalhães.
– Está aqui um site em que o pai de família trabalha dezoito horas, mas no ofício de ourives. E tem dezoito filhos. Caramba!
– E tem razão. A Wiki diz que o pai de Durer teve dezoito filhos e era ourives.
– Escuta este: «Após uma demorada e memorável refeição, recheada de música e alegria, Albrecht ergueu-se do seu lugar de honra» – tal, tal… – «“agora, Albert, meu bendito irmão, agora é a tua vez. Agora podes ir para Nuremberg realizar o teu sonho, e eu cuidarei de ti.”» – recitava Barbosa, rindo. – Escuta a descrição do irmão: «Lágrimas corriam pela sua face pálida, enquanto agitava para ambos os lados a sua cabeça curvada, e em soluços repetia várias vezes “Não ... não ... não ... não.”»
– Que lamechas, esse imaginativo aspirante a escritor! – respondeu Magalhães, e prosseguiu no relato da sua pesquisa: – Parece que a família Durer vivia em Nuremberga, desafogadamente, e não numa aldeia próxima e miseravelmente. Ah, cá está! O jovem Albrecht foi colocado aos quinze anos como aprendiz na oficina do gravador Michael Wolgemut, dado o seu gosto pelo desenho. Pois! – reconfortava-se Magalhães – do que me lembro das aulas de História da Arte medieval e renascentista, as artes plásticas não se aprendiam nas universidades, mas sim em oficinas de mestres do oficio. Eram artes menores, manuais.
– Agora já não é o irmão Albert, mas um companheiro… Franz Knigstein. – chasqueava Barbosa de um dos sites por onde estava a navegar. – «Um companheiro seu, também muito pobre, o ajudou. Os dois iam à igreja, participavam da Ceia do Senhor, e o companheiro de Durer cultivava uma equilibrada vida de oração.» Este site puxa para a Igreja. Pudera! Faculdade teológica… «Um dia, Albrecht encontrou Franz de joelhos, com as suas mãos postas em atitude de oração, ásperas, no entanto, oferecidas a Deus em amoroso sacrifício, orando para que ele, Albrecht, tivesse pleno êxito na carreira de pintor.» – Ah, ah, ah! – «Prontamente, Durer desenhou o momento e produziu um símbolo do significado da oração. Desde então, a oração intercessora, simbolizada por aquela atitude faz-nos lembrar que a oração e a amizade correm juntas. A pessoa a Quem oramos teve Suas mãos atravessadas pelos cravos em nosso favor.»
– Para com isso, Barbosa!
– «Mãos tortas e calejadas, de pele ressecada, mas apontando para o céu, em atitude de súplica.» – descobria Barbosa.
– Para com essas baboseiras! «Durer elaborava infindáveis estudos de mãos, cabeças, objetos domésticos, plantas e animais: “O mínimo detalhe deve ser realizado o mais habilmente possível”, dizia, “nem as menores rugas e pregas devem ser omitidas.”»
– Só mais este – deliciava-se Barbosa. – «Eles trabalhavam juntos numa oficina de escultura em madeira; um deles fez as malas, se despediu e foi para Viena/Áustria; o outro começou a trabalhar numa ferraria. Não demorou muito, as mãos finas e sensíveis se tornaram grossas e cheias de calos.»
– Gaita, que esse pessoal não se limita a copiar. Quantas versões já encontraste?
– Sei lá! «E cuidou do amigo, que não precisou mais trabalhar na ferraria.
Esta é uma história de quatro mãos, de dois amigos que oravam um pelo outro, e de um artista reconhecido graças a uma forte amizade. “Ame o Senhor, seu Deus, com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente. Ame os outros como você ama a você mesmo.”» – Colégio evangélico.
– Há gente que não se importa de inventar e deturpar tudo para puxar a brasa à sua sardinha. Sacanas de falsários! Neste caso, fanáticos com as melhores intenções catequéticas.
– «1490». «Os dois amigos viviam na mesma pensão». «Não, eu sou mais velho e já tenho emprego no restaurante.», dizia o amigo. Já viste estes, Magalhães?: restaurante! – gozava Barbosa, virando o nariz avantajado para o colega da secção de Furto de obras de Arte, da Judiciária.
– Diz aqui que as mãos foram desenhadas em 1508, como desenho preparatório da figura de um apóstolo para um altar.
– «Suas mãos rígidas, endurecidas, articulações grossas e dedos torcidos pela labuta diária durante tanto tempo, impediam o suave manejo dos pincéis.» – continuava Barbosa, imparável. – Mas olha, este site tem comentários. Ouve o que diz quem comenta estas balelas: «A beleza das mãos calejadas de Durer toca-me profundamente a alma. São mãos que trabalharam por amor e com abnegação por toda uma vida. São mãos que carregaram peso, tocaram muitas vezes a água...» Água?; onde é que esta viu a água!? Outra: «Essas são, sem dúvida, “mãos de sol”, mãos iluminadas de uma pessoa idem, que teve a humildade de se sacrificar em prol do irmão.»
– Será que ninguém repara que não são mãos de trabalho? – irritava-se Magalhães, fazendo tremer as bochechas arredondadas. – São escuras porque têm as sombras todas marcadas e são rugosas como as mãos de qualquer pessoa, se forem desenhadas meticulosamente.
– Só encontrei um a falar em «dedos emagrecidos». Ah! Finalmente o comentário de alguém que agarra a tarefa de desmistificar a trapaça: «Gostaria de informar que li diversas biografias do pintor renascentista alemão Albrecht Durer, escritas por estudiosos como Moriz Thausing, Erwin Panofsky, Ernst Rebel, Matthias Mende, entre outros, e em nenhum deles encontrei qualquer menção aos fatos citados.» Temos uma justiceira, Magalhães – alegrou-se Barbosa, batendo palmas. – É uma tal Constanze de Curitiba. Grande mulher! Ou será homem? «O pai de Albrecht Durer, assim como seu avô, era ourives de profissão, uma das profissões mais reconhecidas na Idade Média. Húngaro de nascimento, mudou-se para a cidade de Nuremberg, onde mais tarde casaria com Barbara, com quem teve 18 filhos. Desses, apenas 3 sobreviveram, o próprio Albrecht Durer (1471-1528), Endres (1484-1555) e Hans (1490- ?), este também artista. Quando Albrecht Durer tinha 4 anos de idade, seu pai, já um renomado ourives, comprou sua casa própria em Nuremberg, onde o artista cresceu e viveu durante 30 anos. Como fonte destas informações os autores citam uma “Crônica Familiar”, espécie de diário que Albrecht Durer manteve durante sua vida. O quadro citado, “Mãos que Oram” – “Betende Hände” – foi desenhado a pincel em 1508, sobre papel azul, e trata de um esboço/estudo de mãos para uma figura de apóstolo para o painel central de um altar encomendado por Jakob Heller para a igreja dominicana em Frankfurt. O painel foi destruído num incêndio por volta de 1729, mas cerca de 20 esboços preliminares ficaram preservados, dentre eles, este citado tornou-se um dos quadros mais famosos de Albrecht Durer. Trata-se, certamente, de uma brincadeira que circula livremente pela Internet, sem o cuidado de verificar sua autenticidade.»
– É isso mesmo! – entusiasmou-se Magalhães. – Pesquisei «altar Heller», e olha o que descobri. Chega aqui!
Barbosa aproximou-se da mesa de trabalho do amigo e ambos observaram, reconfortados, a imagem de um grande retábulo em cujo painel central estava pintado um conjunto de apóstolos assistindo à ascensão da Virgem, um dos quais tinha as mãos postas tal qual as do esboço que os tinha intrigado na última hora e meia.
– Datado de 1508. Nesta altura tinha Durer… 37 anos – calculava Magalhães.
– Mas, o altar não tinha ardido?
– Diz aqui que é uma cópia feita por um outro pintor, em 1614.
– Sabes o que eu senti? Um grande repúdio pela tacanhez desta gente para quem umas mãos, só por estarem pintadas em escuro, têm de estar encardidas de carvão, e por estarem minuciosamente desenhadas, com todos os volumes, todas as rugas, têm de estar calejadas e deformadas. E uma grande indignação por utilizarem a mentira e a falsificação para atingirem o coração crédulo das pessoas. Por outro lado, fiquei muito agradado que tivesse havido alguém a dar-se ao trabalho de esclarecer estes ataques à verdade histórica. Se calhar, devia haver uma entidade, uma organização não-governamental, engajada com a divulgação do conhecimento, que tomasse por missão desmascarar esta gente que espalha a aldrabice pela Internet, como quem espalha o vírus duma doença epidémica.
– Vamos à biblioteca, que quero tirar isto bem a limpo.
Pouco depois, confirmavam quase tudo o que «a justiceira» dissera. E ficaram a saber, também, que o desenho das mãos postas está no museu Galeria Albertina, em Viena.
– Mais um caso resolvido – gracejou Magalhães. – Vamos lanchar?
Antes que o parceiro pudesse responder, tocou o telefone. Era o inspetor-chefe a distribuir serviço: «Roubaram mais um painel de azulejos do século XVII, num palacete do Lumiar. Passem aqui a buscar a documentação».
5 comentários:
No link abaixo pode ler-se uma das versões mais recorrentes das histórias deste desenho de Durer que pululam pela internet. Este site tem a vantagem de conter um comentário exaustivamente elucidativo e que é referido no conto.
http://www.brasilwiki.com.br/noticia.php?id_noticia=4703
O meu conto foi escrito em 2009, e foi desencadeado pela irritação que senti ao ler o mail referido no conto, tentando denunciar este tipo de mails. Publico-o agora porque se iniciou há dias, neste blogue – http://www.revistasamizdat.com/2012/11/comedores-de-batatas.html – uma polémica por mim encetada sobre os limites, ou a falta deles, da narrativa ficcional histórica, questão central do meu conto.
Caramba, estava com esperança que se descobrisse que isto afinal eram pés...
:)
Estou só a chasquear contigo!
bom texto:)
rod
Atento à narrativa, tomei uns (vários) sustos. Desmentidos atrás de desmentidos. Tudo muito bem posto. Interessante esse seu caminho da narrativa ficcional histórica. Nesse caso, a ficção (pelo grande número de versões) dentro da ficção.
É isso aí, Joaquim. Abs. Otávio.
Obrigado, amigos!
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