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sábado, 4 de julho de 2009

Autor convidado

O escritor

José Guilherme Vereza

Afrânio resolveu escrever um livro. Achava que estava na hora. Só não decidiu fazer isso antes, porque era perseguido pela mais absoluta das certezas de que nenhum editor iria dar importância ao seu texto, nenhum livreiro iria colocar seu livro na vitrine, a noite de autógrafos seria um fiasco, nenhum leitor iria comprar seus escritos. E todos os críticos iriam condená-lo a um vexame público e notório.
Mas dessa vez estava firme.
Ouviu dizer que para um escritor bastava um cotoco de lápis e um papel de pão. O assunto viria no decorrer do pensar e as histórias, as personagens, as situações brotariam por si só. Bastava apenas um leve empurrãozinho do tal cotoco.
Foi assim mesmo que se sentou à mesa do jantar.
Muito bem, vamos lá.
Era uma vez.
Ok. Era uma vez o quê?
Era uma vez... era uma vez o quê, onde, quando, como e por quê?
Afrânio franziu as sobrancelhas diante daquele monstruoso papel em branco.
Tentou mais uma vez e não saiu nada.
Não era uma vez.
Procurou outro caminho.
Mordidas de lábios, ar de quem tinha caído nas armadilhas da inspiração.
Gabriel Garcia Márquez também deve ter lá seus dias absolutamente inócuos.
Inócuos. Bela palavra.
Que tal começar assim?
Inócuos momentos em que...
Toca o telefone.
- Alô.
- Afrânio, sou eu.
- Oi, que voz é essa?
- Uma notícia chata: tio Miguel morreu.
- O quê?
- O tio Miguel mesmo. Enfarte fulminante, agora de manhã, fazendo a barba. Quando tia Magali chegou só deu tempo de tirar o sabão do rosto.
- Peraí. Deixa eu me refazer.
- Tudo bem, depois você me liga.
- Não, não, a gente tem que enfrentar. Mas eu não vou a enterros.
- Nem eu. Dá riso nervoso ver tanta gente chorando...
- E a Candinha, já sabe?
- Iam avisar. Não sei se avisaram. Ela está no Tibet.
- Sabe de uma coisa, não vou ao enterro não. Tio Miguel era um chato, tia Magali também e a Candinha sempre me irritou com essa mania de meditação.
- Acho que não vou também não.
- Passo um telegrama e tudo bem.
- Vou fazer a mesma coisa. Tchau.
Mal desligou o telefone, Afrânio teclou o número do telegrama fonado. Atendeu uma voz de gralha.
- Telegrama fonado, bom dia.
- Bom dia, eu queria passar um telegrama.
- Seu nome e número do seu telefone.
- Afrânio Rosa Batista, 2254-0969.
- Nome e endereço do destinatário.
- Magali Batista Santana. Rua Carlos Pedrosa, 223, se não me engano.
- Se o senhor se engana, o telegrama não chega.
- Claro, um momento... estou conferindo no meu caderninho... cá está. O número correto é 476. Passei raspando.
- Texto do telegrama.
- Texto? Ah, sim, a mensagem...
Meu Deus, o branco de novo.
- Vamos lá: QUERIDA TIA MAGALI RECEBA DE SEU DILETO SOBRINHO AFRÂNIO AS MAIS SINCERAS CONDOLÊNCIAS PELA SÚBITA PERDA DE AMADO CÔNJUGE E ESTIMADO TIO. UM AFETUOSO ABRAÇO DE DOR E CONSTERNAÇÃO.
- O senhor não acha que está meio rococó?
Afrânio gelou. Ficou sem graça.
- A senhora acha, é...?
- Tá meio rebuscado. Não dá pra ser mais direto?
- Acho que sim, vamos lá: QUERIDA TIA MAGALI, RECEBA MINHAS CONDOLÊNCIAS PERDA ESTIMADO TIO.
Afrânio ouviu uma risadinha do outro lado da linha.
Não gostou.
- Escuta aqui: a senhora, por acaso, está rindo de quê?
- Nada, nada não senhor...
- Mais risinhos.
- A senhora está rindo do meu telegrama?
- Desculpe seu Afrânio, condolências é muito antigo.
- A senhora acha, é...?
- Desculpe seu Afrânio, o senhor escreve como quiser...
- Não, não, sua opinião é importante. A senhora deve estar acostumada com muitos telegramas de falecimento. É melhor dizer pêsames mesmo.
- O senhor é quem manda. Então ficamos assim: QUERIDA TIA MAGALI RECEBA MEUS PÊSAMOS PERDA ESTIMADO TIO.
- Sei não, sei não... tá meio falso.
- Já que o senhor tocou no assunto, sabe que eu acho a mesma coisa?
- Tá falso, é?
- Pouquinho.
- Então tira o estimado. Bota querido.
- Agora tá redondinho. QUERIDA TIA MAGALI RECEBA MEUS PÊSAMES PERDA QUERIDO TIO.
- Seu Afrânio, querida e querido na mesma frase?
- É. Na mesma frase, por quê?
Afrânio começou a perder estribeiras.
- Nada não, seu Afrânio, eu só acho que não fica bonito.
- Tem certeza?
- Bem, seu Afrânio, é a minha opinião sincera, mas a tia é sua, o defunto é seu, o telegrama é seu.
- Tem razão. Tira querido tio e bota tio Miguel.
- Muito bem. QUERIDA TIA MAGALI. RECEBA MEUS PÊSAMES PERDA TIO MIGUEL. Ok?
- OK... ok... OK nada! Você acabou fazendo a mensagem para mim.
- Desculpe, Seu Afrânio... mas seu texto não estava bom.
- Quer dizer que temos uma crítica literária fazendo bico de telefonista? Ora, vê se se enxerga, minha filha...
- Minha filha não senhor! Meu nome é Kátia, telefonista com muito orgulho.
- Então, Kátia, enfia esse telegrama...
- Além de escrever mal, é grosso. Só para encerrar, o telegrama não está autorizado, certo?
- Certo, cancela tudo. O que está autorizado, Kátia, já disse e repito: é esse telegrama enfiado no seu... você sabe aonde, minha filha.
Afrânio desligou o telefone. Decidiu encarar o velório.

****

Pegou o primeiro táxi.
- Bom dia, o senhor poderia me levar às capelas do Cemitério São João Batista, por obséquio?
- O motorista deu uma risadinha.
- O senhor está rindo do quê?
- Por obséquio, é? Não é melhor por Botafogo?
E Afrânio mais não disse. Só pensou: outra Kátia na minha vida.


****
A capela estava vazia. Ninguém. Nem a viúva. Entre flores mal cheirosas, sob um manto de filó, Tio Miguel era apenas um nariz cor de cera com algodão em cada narina. Afrânio ficou à distância, observando como os homens depois que viram defuntos perdem a dignidade. São apenas narizes apontando para o teto, alheios a seus arredores. Logo Tio Miguel. Tão extrovertido e mandão. Metido a dar ordens em casa, na cozinha, nas filas de cinema, nas reuniões familiares, nas casernas, onde passou mais da metade da sua vida. Agora estava ali sem ninguém para mandar ou chatear. Só esperando a hora de uma outra pessoa, alheia a sua vontade, mandar fechar o caixão e sair carregado a uma gaveta qualquer.
De repente, um ruído assustador. Irrompe à capela Tia Magali. Toda de preto, amparada por uma amiga, proferindo urros de desespero, gritando bem alto como se o marido gelado pudesse se comover.
- Miguinho, Miguinho! Por que você fez isso comigo? Por que foi jogar peteca na praia ontem à noite? Eu sabia que ia te fazer mal de manhã...
Ao descobrir Afrânio encostado na parede mais distante do caixão, Tia Magali se joga nos seus braços. Aperta-lhe tórax, peito e pescoço. Como uma sucuri.
- Alfredo, que bom que você veio... vem cá ver o rosto sereno do Miguinho.
- Afrânio, tia Magali, Afrânio...
- Afraninho, claro, Afraninho de Marieta.
- Antonieta, Tia Magali.
- Vem cá, meu sobrinho querido, vamos nos despedir juntos do seu tio Miguel.
- Tia Magali, deixa o tio Miguel dormindo seu sono eterno, tranqüilo. Prefiro ficar aqui mesmo.
Tia Magali em prantos.
- Afraninho, você sempre carinhoso...
- Tia Magali, em meu nome e em nome da minha irmã...
- Luzia...
- Não, Tia Magali. Lavínia. La-ví-nia.
- Lavininha, claro. Deve estar tão crescida.
- 42 anos, Tia Magali.
Tia Magali vira-se para o centro das desatenções da capela e recomeça a gritaria.
- Miguinho, Miguinho, meu companheiro, meu companheiro que se foi. Meu Deus, o que será de mim?
Afrânio espera passar o transe. Tão logo a tia se recupera, volta à carga e, enfim, consegue falar.
- Querida Tia Magali, receba do seu dileto sobrinho Afrânio e da sua não menos dileta sobrinha Lavínia as mais sinceras condolências pela súbita perda do amado cônjuge e estimado tio. Dá me cá um afetuoso abraço de dor e consternação.
Tia Magali olha nos olhos de Afrânio. Tenta se controlar, esquece a viuvez. E cai na gargalhada.
- Tá rindo de quê, Tia Magali?
- Desculpe, mas esse seu discurso foi muito rococó.
E tome de ataque de riso. Tia Magali e a amiga que a amparava, olham às gargalhadas para a cara do Afrânio. Circunspecto, contido, sobrancelhas franzidas. Outras pessoas começam a chegar. Os amigos da peteca, os coronéis reformados, as balzacas bronzeadas do Posto Seis. A tia retoma os prantos. Afrânio sai de fininho.

****

Na saída do cemitério. É abordado por um florista.
- Parente ou amigo?
- Tio.
- Então, o melhor é uma coroa de cravos.
- Pensando bem, é distinto.
- Sim, claro, uma bem frondosa, para ficar num cavalete ao lado do morto. Todo mundo olha para a coroa antes de olhar o falecido. Aliás, muita gente evita olhar o falecido. É um macete. O parente finge que está olhando o defunto, mas é atraído pela beleza da coroa.
- Bem pensado.
- Então, só falta os dizeres.
- Dizeres?
- A mensagem.
- Eu sei que dizeres e mensagem são a mesma coisa, não precisa explicar. Esse é que é o problema.
Afrânio suou frio de novo.
- Uma frase curta e direta, meu amigo.
- Um momento. Estou pensando. Não faz pressão, por favor.
Enxugou a testa e mandou:
- Anote aí: VAI COM DEUS, TIO MIGUEL.
- O florista prendeu o riso. Não conseguiu.
- Está rindo do quê?
- Desculpe, amigo, parece que o senhor...
Mais risos incontidos.
- ... parece que o senhor estava querendo se livrar do tio.
Afrânio se enfureceu.
- Além de florista chato é palpiteiro...
- Desculpe, mas a mensagem pode ser mal interpretada. Parece deboche.
- Então, vai com Deus o senhor mesmo. E enfia essa coroa ...ó!
E partiu raivoso em direção a um táxi. Em momentos de cólera, Afrânio também só sabia mandar alguém enfiar alguma coisa no... lá mesmo. Não variava nunca.

****

No táxi de volta. Afrânio contou até dez. Entrou num clima de paz interior.
- Boa tarde, por favor leve-me à Francisco Otaviano. Sugiro irmos pela praia. É mais gratificante ver o azul do céu tocando o azul do mar, que por sua vez, beija delicadamente as alvas areias com suas espumas peroladas.
- Não entendi nada. É pra pegá a Atrântica, né moço?
- Isso mesmo. Toca esse táxi e vê se não abre a boca. Tive uma manhã repleta de arrufos.
- O quê?
O taxista começou a rir.
- Está rindo de que?
- Nada não senhor. É que o senhor fala bonito...
- Você acha mesmo...?
- Só que não entendo nada.
Afrânio olhou fixo para o horizonte. Não mais falou. Não mais ouviu. Ao parar na Francisco Otaviano, pagou o taxista e disse:
- Muito agradecido.
O taxista recolheu o dinheiro e comentou:
- Taí, bonito dizer “muito agradecido”. Outro dia uma velha me disse a mesma coisa.
Dessa vez, Afrânio desistiu de xingar o motorista.

****

Ao chegar em casa, desistiu de muito mais. Olhou o cotoco de lápis ainda sobre o papel em branco. Lembrou da Kátia, da Tia Magali, do florista, do taxista da ida, do taxista da volta. Rasgou o papel em mil pedacinhos e jogou pela janela. Só não mandou ele mesmo enfiar o cotoco em si próprio. Não era coisa de sua preferência.

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