Aconteceu num inverno qualquer da primeira década de 2000. Veio de repente no meio da penumbra, jogou-me contra a parede e perfurou minha alma com seus olhos distantes. Olhos de passado, de quem já foi e não estava mais ali. Parecia que o conhecia, mas forcei a memória e não encontrei nada parecido com ele. Tirou uma carta amassada do bolso, esfregou-a na minha cara. Sua expressão era de dor e pavor, ele tinha medo de mim, e ao mesmo tempo uma raiva contida prestes a explodir.
“Quem é você?”, perguntei, mas ele disse que não tinha muito tempo. “Assim que eu sair, você lê”. A carta pressionada contra meu corpo, as lágrimas dele começando a rolar. “Quem é você?”, eu perguntava, tentando encontrar a resposta naqueles olhos familiares, malditos olhos, de onde vem? Ele me abraçou forte, aconchegou-se em meu colo como se sempre o tivesse feito, e esse ato me pareceu corriqueiro como acordar todos os dias e escovar os dentes.
Num rompante ele se separou de mim, saiu de repente como havia chegado e desapareceu na penumbra. Na mesma hora abri o envelope amassado, era uma carta velha, mas estranhamente datava de 2032. Era de despedida, e dizia “Meus filhos, não me vejo mais neste mundo. Perdoem-me”. A caligrafia suicida era conhecida, as letras, apesar de tremidas, eram familiares. Fiquei completamente sem ar. Afinal, eu conhecia muito bem a pessoa que escreveu a carta... Era eu mesma.
Alguns anos depois do dia em que ele me perfurou com seus olhos de passado, tenho-o novamente em meus braços. É um bebê, recostado em meu colo, olhando-me com olhos familiares. Entendi que não eram olhos de passado, eram olhos de futuro, de quem seria e ainda não estava lá. Mas, ainda assim, na penumbra, ele me salvou de mim mesma.
Texto publicado originalmente no blog "Não Clique"
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