Léo Borges
O cardiologista do Heitor disse que ele precisava correr pelo menos duas vezes na semana para baixar suas taxas de triglicerídeos e, assim, ter uma vida mais longa. Deveria ficar longe das gorduras saturadas, das novas e ameaçadoras gorduras trans, dos condimentos, das frituras, massas, doces e alimentos industrializados. Heitor sabia que aquele era um bom médico e suas palavras passavam segurança quando afirmavam que “a longevidade é reservada a quem pratica esportes e se alimenta bem”. Segundo o doutor, “as engrenagens da felicidade estão montadas sobre a boa saúde”.
Tendo seu norte nas palavras de um profissional da medicina, que preconiza como as pessoas devem se comportar para terem uma vida feliz, Heitor viu que era hora de dar um basta no sedentarismo. Então, nem a ameaça de chuva daquela noite dissuadiu sua vontade de iniciar um exercício leve no calçadão da praia. Calçou o tênis, entrou no carro e foi para a praia correr, criar o hábito que, segundo o cardiologista, manter-lhe-ia vivo por mais tempo. Procurava contar com a ajuda do estimulante aparelhinho MP3 que, nesta ocasião, apresentava o Lulu Santos dizendo, colado ao seu tímpano, que via um novo começo de era. Assim como acreditava no médico, Heitor também nunca desconfiou que o Lulu pudesse estar mentindo, apesar de saber que artistas, muitas vezes, se enganam, ou, até de propósito, enganam os outros, quase sempre com a melhor das intenções, como a de agora, em que o cantor tinha a missão de vivificar um preguiçoso.
Um atraente out door na avenida principal era imperativo na promoção do carro sofisticado: “Seja feliz hoje!”. Hoje, obviamente, já estava tarde para ser, mas Heitor vinha juntando uma grana fazia algum tempo para comprar aquela máquina de design arrojado. Faria parte da tal engrenagem da felicidade ter um carro como o do anúncio? Heitor sabia que sim. A mensagem era clara: não devemos deixar aquisições que nos farão felizes para amanhã, principalmente se você for um sedentário, pois pode acabar morrendo com uma veia entupida e vai perder a oportunidade de dirigir um belo veículo. Bom, Heitor estava ali, fazendo a parte dele, fazendo as coisas que lhe mandavam para criar sua poupança de dias, semanas, anos, e, assim, poder desfrutar por mais tempo do conforto que o dinheiro, quando existisse, proporcionaria.
A garoa se confirmou e os primeiros pingos surgiram no pára-brisa. Mas, Heitor estava determinado a iniciar sua jornada atlética sob qualquer clima. No sinal do último cruzamento para praia uma pedinte veio intimidar seus felizes pensamentos batendo com os nós dos dedos no vidro lateral. “Um trocado pelo amor do bom Deus...”. As gotas deixavam turva a imagem da mulher, como se ela estivesse desmanchando juntamente com a chuva. Era uma mendiga com um pano roto amarrado à cabeça que, não obstante não livrá-la de ter os cabelos molhados, ainda lhe conferia uma aparência melancólica. Ela não tinha um head phone onde pudesse ouvir o Lulu prevendo um futuro com gente fina elegante e sincera e não parecia estar disposta a dar uma corridinha para entrar em forma. “Estou sem comer desde ontem”. Também teria ela de se alimentar com saladas e sucos diet conforme determinava o senso saudável? Sim, com certeza, pensou Heitor. Entretanto, logo após abaixar o vidro e dar algumas moedas, ele ponderou sobre a vida e as misteriosas taxas glicêmicas daquela mulher e, com algum constrangimento, concluiu que ela poderia ter uma licença para ficar de fora do rol dos que consomem uma alimentação balanceada, dita ideal.
O calçadão da praia estava deserto. Um vento frio procurava inibir a intenção atlética do ex-sedentário Heitor. Corpos inertes refugiados em seus apartamentos apreciavam as televisões aparentemente sintonizadas em um mesmo canal. Um aposento destoante no cenário concentrava um grupo de amigos festejando algo. No poste adjacente, um cartaz atraiu a atenção de Heitor. Mostrava a foto de um garoto de seus vinte anos, sorriso estático e olhar pacífico. Fazia um sinal positivo com a mão. Letras negras e grandes apareciam sobre a foto revelando seu nome: “Marcelo Zanetti”. Abaixo, um pequeno texto dizia: “O homicídio não pode ser banalizado! Amanhã poderá ser seu filho. Confiamos na Justiça”. Triste era perceber que mesmo com uma alimentação adequada, Marcelo não garantiu sua longevidade.
Aquele rapaz engrossava as estatísticas de assassinatos na cidade e a família agora parecia querer incomodar os atletas da orla, longevos ou não, com o assunto. E o objetivo estava sendo alcançado. Pelo menos com Heitor, que para não ficar impressionado, desviou novamente os olhos para os prédios e casas ao redor. Notou que o carro de seus sonhos, o mesmo do out door, passava agora pela televisão de um porteiro do edifício de bela fachada. E a festa solitária continuava rolando no apartamento, com animadas pessoas emitindo o ruído característico de ambientes felizes. Desta vez com o Tim Maia pedindo um motivo para ir embora. Marcelo não precisou de nenhum, foi embora sem motivo mesmo.
Heitor mexeu no relógio para acertar o cronômetro. Respirou fundo e tentou criar boas vibrações na mente para a corrida fluir numa boa. No calçadão não havia ninguém além dele e de um cachorro revirando o lixo junto ao poste do cartaz que se descolava com a chuva. Para viver muito você tem que priorizar o lado bom da vida, tem que buscar ser feliz de todo jeito. Esse era o ditado de Soraia, uma vizinha com quem Heitor chegou a trocar olhares mais demorados numa determinada época de sua vida, mas que, por causa da timidez de ambos, nunca chegou a namorar. Ela morreu atropelada numa noite de garoa como aquela, num acidente em que um carro invadiu a calçada e o motorista não parou para socorrê-la. Certamente quem o dirigia não o fazia dentro daquele possante de 16 válvulas da propaganda. Pessoas daquela estirpe costumam ser solidárias, têm classe, entendem o sofrimento alheio, pensou Heitor. Sendo o condutor de um carro como aquele uma pessoa feliz, por que não iria ajudar alguém a quem causou tamanha dor? Não fazia nenhum sentido. Mesmo assim, apesar da indelével felicidade de Soraia ter sido ceifada de modo brutal, essa mulher viveu o suficiente para acreditar no que pregava, no sorriso que cedia às pessoas e na crença em um mundo sem injustiças.
Heitor iniciou uma corrida nervosa, como se quisesse fugir dos fantasmas de todas aquelas tragédias e fixar os pensamentos apenas nas mensagens de alegria que a vizinha deixara. Quanto mais o rapaz corria, mas o som alto do apartamento festivo perdia a briga com o do seu MP3, que agora passava a tocar um rock americano pesado, impossível de se entender a letra.
Pode ser que a luta por mais tempo no mundo, a alimentação saudável, o prazer instantâneo e a busca pelo conforto imediato é que mova a humanidade e se mostre como o combustível para a longevidade. Talvez seja este o motivo da vida: tentar conquistar algo que nos mostre as reais engrenagens da felicidade. Porém, naquela noite chuvosa, parecida com a da morte de Soraia, o olhar congelado e sem vida de Marcelo estava incomodando bastante Heitor.
Tendo seu norte nas palavras de um profissional da medicina, que preconiza como as pessoas devem se comportar para terem uma vida feliz, Heitor viu que era hora de dar um basta no sedentarismo. Então, nem a ameaça de chuva daquela noite dissuadiu sua vontade de iniciar um exercício leve no calçadão da praia. Calçou o tênis, entrou no carro e foi para a praia correr, criar o hábito que, segundo o cardiologista, manter-lhe-ia vivo por mais tempo. Procurava contar com a ajuda do estimulante aparelhinho MP3 que, nesta ocasião, apresentava o Lulu Santos dizendo, colado ao seu tímpano, que via um novo começo de era. Assim como acreditava no médico, Heitor também nunca desconfiou que o Lulu pudesse estar mentindo, apesar de saber que artistas, muitas vezes, se enganam, ou, até de propósito, enganam os outros, quase sempre com a melhor das intenções, como a de agora, em que o cantor tinha a missão de vivificar um preguiçoso.
Um atraente out door na avenida principal era imperativo na promoção do carro sofisticado: “Seja feliz hoje!”. Hoje, obviamente, já estava tarde para ser, mas Heitor vinha juntando uma grana fazia algum tempo para comprar aquela máquina de design arrojado. Faria parte da tal engrenagem da felicidade ter um carro como o do anúncio? Heitor sabia que sim. A mensagem era clara: não devemos deixar aquisições que nos farão felizes para amanhã, principalmente se você for um sedentário, pois pode acabar morrendo com uma veia entupida e vai perder a oportunidade de dirigir um belo veículo. Bom, Heitor estava ali, fazendo a parte dele, fazendo as coisas que lhe mandavam para criar sua poupança de dias, semanas, anos, e, assim, poder desfrutar por mais tempo do conforto que o dinheiro, quando existisse, proporcionaria.
A garoa se confirmou e os primeiros pingos surgiram no pára-brisa. Mas, Heitor estava determinado a iniciar sua jornada atlética sob qualquer clima. No sinal do último cruzamento para praia uma pedinte veio intimidar seus felizes pensamentos batendo com os nós dos dedos no vidro lateral. “Um trocado pelo amor do bom Deus...”. As gotas deixavam turva a imagem da mulher, como se ela estivesse desmanchando juntamente com a chuva. Era uma mendiga com um pano roto amarrado à cabeça que, não obstante não livrá-la de ter os cabelos molhados, ainda lhe conferia uma aparência melancólica. Ela não tinha um head phone onde pudesse ouvir o Lulu prevendo um futuro com gente fina elegante e sincera e não parecia estar disposta a dar uma corridinha para entrar em forma. “Estou sem comer desde ontem”. Também teria ela de se alimentar com saladas e sucos diet conforme determinava o senso saudável? Sim, com certeza, pensou Heitor. Entretanto, logo após abaixar o vidro e dar algumas moedas, ele ponderou sobre a vida e as misteriosas taxas glicêmicas daquela mulher e, com algum constrangimento, concluiu que ela poderia ter uma licença para ficar de fora do rol dos que consomem uma alimentação balanceada, dita ideal.
O calçadão da praia estava deserto. Um vento frio procurava inibir a intenção atlética do ex-sedentário Heitor. Corpos inertes refugiados em seus apartamentos apreciavam as televisões aparentemente sintonizadas em um mesmo canal. Um aposento destoante no cenário concentrava um grupo de amigos festejando algo. No poste adjacente, um cartaz atraiu a atenção de Heitor. Mostrava a foto de um garoto de seus vinte anos, sorriso estático e olhar pacífico. Fazia um sinal positivo com a mão. Letras negras e grandes apareciam sobre a foto revelando seu nome: “Marcelo Zanetti”. Abaixo, um pequeno texto dizia: “O homicídio não pode ser banalizado! Amanhã poderá ser seu filho. Confiamos na Justiça”. Triste era perceber que mesmo com uma alimentação adequada, Marcelo não garantiu sua longevidade.
Aquele rapaz engrossava as estatísticas de assassinatos na cidade e a família agora parecia querer incomodar os atletas da orla, longevos ou não, com o assunto. E o objetivo estava sendo alcançado. Pelo menos com Heitor, que para não ficar impressionado, desviou novamente os olhos para os prédios e casas ao redor. Notou que o carro de seus sonhos, o mesmo do out door, passava agora pela televisão de um porteiro do edifício de bela fachada. E a festa solitária continuava rolando no apartamento, com animadas pessoas emitindo o ruído característico de ambientes felizes. Desta vez com o Tim Maia pedindo um motivo para ir embora. Marcelo não precisou de nenhum, foi embora sem motivo mesmo.
Heitor mexeu no relógio para acertar o cronômetro. Respirou fundo e tentou criar boas vibrações na mente para a corrida fluir numa boa. No calçadão não havia ninguém além dele e de um cachorro revirando o lixo junto ao poste do cartaz que se descolava com a chuva. Para viver muito você tem que priorizar o lado bom da vida, tem que buscar ser feliz de todo jeito. Esse era o ditado de Soraia, uma vizinha com quem Heitor chegou a trocar olhares mais demorados numa determinada época de sua vida, mas que, por causa da timidez de ambos, nunca chegou a namorar. Ela morreu atropelada numa noite de garoa como aquela, num acidente em que um carro invadiu a calçada e o motorista não parou para socorrê-la. Certamente quem o dirigia não o fazia dentro daquele possante de 16 válvulas da propaganda. Pessoas daquela estirpe costumam ser solidárias, têm classe, entendem o sofrimento alheio, pensou Heitor. Sendo o condutor de um carro como aquele uma pessoa feliz, por que não iria ajudar alguém a quem causou tamanha dor? Não fazia nenhum sentido. Mesmo assim, apesar da indelével felicidade de Soraia ter sido ceifada de modo brutal, essa mulher viveu o suficiente para acreditar no que pregava, no sorriso que cedia às pessoas e na crença em um mundo sem injustiças.
Heitor iniciou uma corrida nervosa, como se quisesse fugir dos fantasmas de todas aquelas tragédias e fixar os pensamentos apenas nas mensagens de alegria que a vizinha deixara. Quanto mais o rapaz corria, mas o som alto do apartamento festivo perdia a briga com o do seu MP3, que agora passava a tocar um rock americano pesado, impossível de se entender a letra.
Pode ser que a luta por mais tempo no mundo, a alimentação saudável, o prazer instantâneo e a busca pelo conforto imediato é que mova a humanidade e se mostre como o combustível para a longevidade. Talvez seja este o motivo da vida: tentar conquistar algo que nos mostre as reais engrenagens da felicidade. Porém, naquela noite chuvosa, parecida com a da morte de Soraia, o olhar congelado e sem vida de Marcelo estava incomodando bastante Heitor.
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