Difícil
não considerar certas inversões da ordem natural como uma depravação
existencial ou divina, e dentre tantos casos manifestos cita-se o dos filhos
que morrem antes dos pais. Embora o exemplo a seguir seja menos atroz e
aviltante, ele igualmente demonstra ao ser humano a sua cômica e trágica
posição no tabuleiro da vida, também a sua impotência, pois apesar dos
incontáveis métodos destinados a embelezar homens e mulheres, nenhum é eficaz
contra os que se revelam ocorrências emblemáticas desse princípio, como quando
a filha perde em beleza para a mãe.
Assim
deu-se com Isabela, linda desde o nascimento, linda até o morrer e o após.
Compridos, lisos e claros, seus cabelos assemelhavam-se às quedas da água em
uma cachoeira, os olhos a despontar feito rochas luminosas que porventura
marcassem o precipício. Ao contrário da boca, carnuda e, porém, inocente, eram
olhos lascivos, afeitos à carne e conhecedores dela, e se não fosse a silhueta
de menina, as costelas e os quadris de criança, seria de uma beleza afrontosa
aos deuses ou aos números.
E
igualmente bela era a mãe, Gertrude.
Modelo
original de mulher, além do rosto encantador Gertrude manifestava tantas curvas
quanto exigia o esplendor, e tantas reentrâncias quanto suportava o imaginário
de homens e astros. Quem sabe por ser a perfeição fruto de sua desmedida e
independente vontade, amaldiçoou-a a fortuna com uma bela, mas não tão bela,
filha, e malgrado as gafes ouvidas pelas duas, como quando confundiam-nas com
irmãs ou amigas, ou como quando mais elogiavam o perfil de Gertrude, o
relacionamento entre elas era primoroso e pacífico, contrário ao suposto mito
da rivalidade feminina; e quem sabe se por entender a superioridade estética da
mãe como efêmera e temporária, afinal Gertrude haveria de envelhecer, Isabela
não se afetava, ou não demonstrava ser afetada, pelo segundo lugar.
Assim
viviam, e viveram, em harmonia, mesmo quando o tempo, contestando o tácito
entendimento de que os dotes físicos de Gertrude haveriam de definhar antes dos
primores juvenis de Isabela, ampliou o abismo de beleza entre as duas – abismo
este fundamentado em rugas, estrias e pelancas, em sinais ou manchas e na
flacidez da pele, mas um abismo que, com a licença da razão, pendia para o lado
de Isabela, pois Gertrude conservava-se idêntica não obstante os anos, não
obstante as décadas. Tamanha transformação manifestava-se em novas
indiscrições, em gafes cuja imprudência, se destinadas a outras mulheres, às
intolerantes mortais, resultaria em agressões e ofensas – dir-se-ia quando
acreditavam ser Isabela mãe de Gertrude.
Conquanto
os enganos e comparações de terceiros, ou o ofensivo contraste entre mãe e
filha, amavam-se elas de amanhã à manhã, amigas e companheiras de sempre, e não
se pense que com a idade Isabela conheceu da feiura e decrepitude. Não,
continuava linda, linda acima das outras, só não acima da mãe, e é de se
indagar se o seu dote não era, ao invés de virtude carnal, o da plenitude
interior, a faculdade de aceitar a natureza, as circunstâncias e o acaso e, a
despeito das angústias e consternações, gozar da vida em sua totalidade.
Contrapartes
à excelência visual de Gertrude, assomavam nela, com a idade, as falhas e
deficiências características aos mais velhos, súbitos esquecimentos e
desequilíbrios infantis, devaneios e distrações, o último e fatal deles
ocorrendo ao descer um degrau. Acompanhadas dos familiares, visitavam elas pontos
turísticos estrangeiros, e ao pisar de mau jeito, ao contemplar a união do
oceano com o horizonte, Gertrude desestabilizou-se, abriu os braços em
desespero e pendeu rumo à escadaria. No meio instante anterior à queda, Isabela
assistiu a mãe esvoaçar e, em câmera lenta, tombar para trás, e se não esticou
as mãos e salvou-a foi porque nunca antes a vira tão sublime.
Durante o
velório, com estranhos e fugidios sorrisos, Isabela não disfarçava a sua
felicidade.
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