A
D. Mariazinha estava cada vez mais confusa com o que ouvia nos noticiários. Já
se arrependera até mil vezes de lhes ter começado a prestar atenção, mas nas
últimas vezes em que saíra entrara ligeiramente em pânico com as conversas que
escutara nas lojas onde fora comprar as suas parcas necessidades e decidira que
talvez fosse melhor informar-se devidamente, em vez de se limitar aos programas
de entretenimento da manhã e da tarde que eram a sua única distração. Ainda
temeu ter de ficar a pé até mais tarde para poder ver as notícias, mas descobriu
encantada que havia noticiários a todas as horas e para todos os gostos.
Percebeu
pois que as coisas estavam bem feias e que se aconselhavam as pessoas,
sobretudo as mais idosas, como ela, a não saírem de casa. Por ela tudo bem,
pouco saía, mas vivendo sozinha e sem família na vila, como faria para se
abastecer? Ainda por cima só podia trazer poucas coisas de cada vez, a paragem
do autocarro ainda ficava longe, especialmente para alguém com dificuldades de
locomoção, e o uso da bengala limitava muito o número de sacos que podia
transportar.
Com
grande espanto seu, esse problema foi-lhe resolvido sem ela bem saber como. Um
dia, quase no início, e precisamente quando debatia mentalmente se devia ou não
arriscar uma saída para ir comprar algumas coisitas que tinham acabado,
tocaram-lhe à porta. Ainda hesitou, nunca se sabe quem aparece e uma velhota
sozinha precisa de ter cuidado, mas estava-se a meio da manhã, mal seria que
fosse alguém com más intenções – sim, a D. Mariazinha ainda era do tempo em que
a noção de crime estava associada à noite, em particular a altas horas da
noite...
Afinal
eram três jovens que se identificaram como sendo da paróquia e que andavam a
verificar as pessoas idosas da zona e o apoio que teriam nestes tempos
conturbados.
Mandou-as
entrar, claro, há muito que não tinha visitas mas hábitos aprendidos na
juventude dificilmente desaparecem, oferecendo-lhes até um chazinho de
camomila, o único que tinha em casa, chá “a sério” dava-lhe insónias.
Sendo
uma pessoa honesta, apressou-se a informá-las de que nunca ia à missa nem
frequentava o centro paroquial, que sabia que existia graças a uma vizinha, a
sua única conhecida no prédio, que entretanto se mudara para um lar e com quem
perdera o contacto.
Mas
as jovens descansaram-na imediatamente, o seu serviço nada tinha a ver com
isso, trabalhavam em coordenação com a Junta de Freguesia local atendendo ao
elevado número de idosos da zona.
Eram
muito simpáticas e a D. Mariazinha gostou imenso de falar com elas, uma grande
novidade já que os únicos contactos que tinha normalmente eram com o pessoal da
caixa das lojas a que ia e o senhor – muito prestável, diga-se de passagem –
que a ajudava com o passe mensal para o autocarro. Até ao médico deixara de ir,
para quê, a consulta era rapidíssima, mediam-lhe a tensão e pronto, já estava,
passavam-lhe a renovação dos poucos medicamentos que tomava há anos. E que
deixara de tomar para não ter o trabalho – e a despesa – de ir ao centro de
saúde. Mas continuava sã como um pero, pelos vistos não lhe faziam falta e
sempre eram uns dinheirinhos que poupava da parca reforma.
As
simpáticas jovens frisaram repetidas vezes que era melhor a D. Mariazinha não
sair de casa, a menos que fosse dar uma voltinha na rua à laia de exercício,
uma vez que pertencia ao grupo mais em risco. E que nem pensasse em usar
autocarros ou outros transportes, eram a maior fonte de contágio.
E
para evitar que tivesse de se deslocar, alguém viria semanalmente a sua casa
para receber a lista das compras a fazer, que lhe apareceriam depois à porta.
Mais ainda, o Presidente da Junta, homem muito ponderado e dedicado ao “seu
povo”, organizara uma espécie de rede telefónica para os que viviam sozinhos e
que passariam a receber um telefonema diário para saberem se estava tudo bem.
Deixaram-lhe também um número que poderia contactar se tivesse algum problema,
não uma emergência, claro, para essas havia o 112, mas algo que a preocupasse
ou que precisasse de resolver.
As
semanas seguintes correram sobre rodas para a D. Mariazinha. Por volta das 9 da
manhã recebia o telefonema diário. Nem sempre era a mesma pessoa, mas dava
sempre para uns minutos de conversa. E se tinha a sorte de ser a Joana, então
podia palrar à vontade sobre coisas da TV, recordações do seu passado – quase
sempre da infância e juventude, em adulta pouco vivera, primeiro a cuidar da
mãe doente durante muitos anos, depois a vida modesta que a módica pensão lhe
permitia ter.
E
uma vez por semana, lá aparecia alguém, quase sempre uma jovem, a perguntar-lhe
sobre as coisas de que precisava e que apareciam prontamente ainda nesse dia
ou, no máximo, na manhã seguinte. Nunca a casa andara tão bem abastecida e sem
ter de mexer uma palha! E os jovens que apareciam eram sempre muito simpáticos,
perguntavam sempre se podiam ajudar em mais alguma coisa. Até voltara a pedir a
renovação da sua receita, sentindo-se afinal bem melhor agora que voltara à
medicamentação.
Inicialmente
ainda saíra um pouco à rua para o que sempre ouvira o pai chamar “passeio
higiénico”, mas as ruas quase desertas por onde passavam ocasionalmente
mascarados assustaram-na um pouco, sempre associara tapar a cara a assaltos e
roubos, sabia que agora era uma exigência, ela própria o fazia, mas uma coisa é
saber, outra bem diferente é sentir. Deixou-se pois ficar no seu aconchego,
vendo os seus programas habituais e pelo menos um noticiário diário para se ir
mantendo informada.
Mas
a sua confusão manteve-se. Ouvia pessoas com um ar muito douto falarem na
solidão crescente dos idosos e nos problemas mentais e emocionais que isso lhes
iria inevitavelmente acarretar e não entendia. Que isolamento? Desde que isto
começara tinha mais contactos semanais do que antes em vários meses. Nunca
conversara tanto, nunca tivera tanta ajuda, nunca vivera tão bem!
Bendita
pandemia! Que durasse muito, era o que desejava, embora soubesse que isso era
um tanto egoísta. Mas iria ser-lhe difícil voltar à solidão e falta de ajudas
da sua vida de antes da crise.
Luísa Lopes
Imagem criada com QuickWrite
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