Uma
amiga
Um
homem, vestido como se estivesse a contracenar nalgum palco, dos muitos que
existiam em teatros da cidade, caminhava, trôpego, ao sabor da corrente humana.
Ia alheio a tudo e a todos. Deixava-se levar, como se nada já o interessasse.
Naqueles
preparos, e escondido atrás de uma máscara, personificava a figura de um velho,
talvez próximo da loucura, que carregava, dolorosamente, o peso dos anos. Pelo
aspecto, parecia realmente um velho e louco. Na realidade, não era nem uma
coisa, nem outra. Não tinha sido o passar dos anos, mas as recentes agruras da
vida que lhe tinham deixado profundas marcas no corpo e, especialmente, na
alma. A barba crescida, o cabelo desgrenhado, a sair dum amarrotado chapéu, a
magreza do corpo e as exóticas roupagens, não deixavam ninguém indiferente à
sua passagem.
Mesmo
na sua louca correria, os passantes, não deixavam de lançar um olhar
interrogativo e admirativo para aquela estranha figura. Tinha grandes
parecenças com o cavaleiro da triste figura, embora, mais a preceito: com um
cavaleiro da figura triste. Também podemos afirmar que, se ele chamava a
atenção dos outros, os outros para ele, seguiam à margem da sua indiferença.
─
Ó António! ─ ouviu-se gritar uma voz feminina, por cima do barulho próprio do
vai e vem dos transeuntes.
O
interpelado, olhou para o sítio de onde veio o chamamento, reduziu o andamento
e parou no passeio, à espera da mulher do grito. Um ligeiro movimento da cabeça
e um franzir da testa, davam a impressão de que ele não estaria a reconhecer
quem seria aquela pessoa que o tinha chamado.
─
Bom dia, meu amigo! Há quanto tempo. Onde vais com tanta pressa e vestido com
essas roupas? Vais a algum teatro de rua ou agora andas também a fazer de
estátua? ─ disparou de rajada. E, sem esperar de resposta, continuou: ─ Não
tenho nada contra aquela malta que ganha a vida dessa forma, mas não te estou a
ver parado ali horas e horas. Tu és um homem de acção, de movimento. É certo
que nos temos de adaptar às vicissitudes da vida. É verdade que e a vida agora
parou e nós temos de andar.
─
Ó meu Deus…não posso acreditar…És a…
─
Mas…, porque vais tão disfarçado! – antecipou-se a mulher. ─ Será uma forma de
luta? Será outra coisa qualquer? Ou será que queres passar despercebido? Se é
isso, digo-te que, até eu, tua amiga e companheira de muitas lides, só te
conheci, vê lá, pelas mãos. Estás irreconhecível.
─
Júlia! Que agradável surpresa, não sabia que já tinhas regressado, por isso,
não te reconheci de imediato. Também estas máscaras iludem-nos, um pouco. Porque
não disseste nada?
─
Afinal não me enganei, és tu! Cheguei há poucos dias e encontrei a vida da
cidade virada do avesso. Ia procurar-te assim que tivesse a ideias mais
arrumadas. Fomos todos apanhados pelo olho deste furacão. ─ respondeu, muito
contente, mas meio atrapalhada e com um tom de voz a roçar a desculpa.
─
Compreendo. ─ disse o amigo, num tom
magoado, E num repente, numa inflexão de voz, própria de grande um actor,
atirou: ─ Querida amiga, há quanto tempo. Perdi o contacto desde que foste para
Nova Iorque e com essa máscara nem te reconhecia, se não falasses. Parecemos
seres do outro mundo, não conseguimos distinguir os rostos atrás das máscaras.
─
É verdade, e nós até estamos habituados a conviver no nosso dia-a-dia com a
caracterização, ou não fossemos, nós, artistas do teatro.
─
Pois é, mas parece que com esta maldita pandemia até nos esquecemos de que
estamos a viver a realidade. A vida, para nós actores, tornou-se na própria
ficção… mas não é ficção nenhuma, não tem fim escrito.
─
Mas ainda não me disseste o que andas a fazer assim vestido?
─
Ficção, por ficção, apeteceu-me andar por aí caracterizado, estamos na era da
máscara, porque não andar vestido como se vivêssemos noutra época, encarnando
um personagem de outros tempos. Sempre fujo um pouco à realidade. Finjo, ou não
fosse eu um actor.
─ Estranha época a nossa. ─ disse a Júlia.
─
E, além disso, chamo a atenção para a nossa tragédia. Para a situação limite em
que nos encontramos, para o eminente desastre. Temos reescrever esta peça de
teatro em que foi transformada as nossas vidas.
─
Vá, vamos ali àquele café, tem esplanada e tudo, assim estamos mais à vontade.
Aproveitamos e pomos a conversa em dia.
─
Deixa lá, fica para a próxima, estou com pressa. Tenho de ir tratar de uns assuntos
inadiáveis, estou em cima da hora.
Estás
a brincar comigo, não me consegues enganar, mesmo escondido por essa máscara,
os teus olhos dizem tudo. Ainda não me esqueci de ler atrás do visível. Que
assuntos?
─
Espertinha, o que é que vês, diante de ti? Um louco, a combater outras
loucuras…
─
Não, não vejo nenhum louco, vejo um artista destes tempos, apanhado pelo
desconhecido, por um presente virado ao contrário e por um futuro a sumir-se no
infinito. Vejo um amigo a quer fugir de tudo, a desistir.
─
Bom dia! ─ saudou o empregado da pastelaria.
─
Bom dia! Dois cafés. Queres um bolinho acompanhar? ─ perguntou a Júlia.
─
Não obrigado, fico-me pelo café, minha querida amiga.
─
António, o que tens feito nestes últimos tempos?
─
Nada, a companhia desfez-se, sem espectáculos e sem subsídios, nada mais nos
restou do que ir cada um para seu lado.
─
Então e o subsídio do estado para a cultura? Não te calhou nada em sorte?
─
Na primeira fase do confinamento ainda recebi alguma coisa, que deu para
aguentar estes tempos de agrura, mas nesta segunda fase, dizem que estão a
estudar as situações. Até ao momento, nem um ceitil para amostra.
─ E como é que te tens aguentado?
─
Só Deus e eu é que sabemos. Um dia, quem sabe, talvez nas minhas memórias. Até
lá, nem às paredes confesso…bem, agora tenho de ir embora. Ofereces-me o café?
Júlia
seguiu, com o olhar, o amigo e companheiro de profissão. Um olhar carregado de
preocupações, à mistura com uma sombra de angústia e medo.
Foi
a primeira vez que António deixou de pagar o seu próprio café. Era estranho,
porque ele fazia ponto de honra que cada pagasse o seu, não custava nada e
ninguém saía sobrecarregado.
Naquele
dia pediu à amiga que fosse ela a pagar.
Uma
onda crescente de suicídios tinha tomado conta de número já muito significativo
de pessoas, apanhadas nas malhas do desespero.
«O
António, não! Era um lutador. Toda a sua vida tinha sido feita a pulso. Não
seria, com toda a certeza, o terramoto social e laboral que o iriam destruir.
Tudo aquilo que conquistara, a fama, o prestígio, a situação financeira, tinha
sido obra dele e não favores ou benefícios. Nunca se vergara. O palco era o
universo e ia para além dele, era o infinito.»
E foi aqui, chegado a este ponto, que Júlia se
sobressaltou ainda mais, sem palco, o infinito tinha fim e os actores também.
Levantou-se,
pagou os cafés e correu, voando, atrás do amigo.
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