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quinta-feira, 25 de maio de 2023

A inspiração de Hudai

 


Constantino Leixões não tinha muito que o distinguisse dos outros cascaenses de gema, nascidos na década de 80. Chegado à faculdade, formou-se em História e em adulto ingressou no Arquivo Histórico Municipal de Cascais. Nada fazia prever a sua obra futura.

Numa pós-graduação desenvolveu um estudo histórico sobre as consequências do terramoto de 1755 na Vila. Encontrou relatos impressivos e perturbadores, como: «o tremor de terra fez-se sentir por nove minutos e transformou a grande povoação em insensível e frio cadáver do que havia sido e uma desfeita cena do que já não era». Lidar com o assunto trouxe-lhe preocupações pela segurança sísmica da Vila. Mas, se o problema da destruição sísmica estava já claramente muito mitigado pelas normas anti-sísmicas de construção de então, o problema da destruição por um eventual e provável tsunami resultante era mais do que angustiante. Os textos avisavam: «O posterior maremoto fez avançar o oceano terra adentro por várias vezes, dando origem a duzentas e duas mortes, nos 5109 habitantes do concelho»; «a vila toda ficou arruinada até ao chão. Não há casa que ou não caísse em terra ou não ficasse abalada e ameaçando ruína. Tudo está demolido e feito em pó.»

Aprofundou leituras, inteirou-se das terríveis consequências dos grandes tsunamis e, por aí, entrou em contacto com tentativas de proteção executadas em vários pontos da costa japonesa.

Pouco depois, aconteceu o grande terramoto de 2011 nos mares do Japão. As imagens do tsunami subsequente eram angustiantes: carros a vaguear ao sabor da maré alta, barcos atirados para terra, o mar grosso a entrar por povoações adentro, casas arrastadas e paulatinamente esfaceladas. Também ali encontrou casos animadores, como o de Hudai, onde um visionário tinha construído um dique, havia trinta anos, que salvou a sua aldeia, exemplo que sentiu como inspirador.

Foi nesse tempo que as imagens pavorosas se associaram às suas sensibilidade e formação e o levaram a tomar a defesa de Cascais contra tsunamis como desígnio pessoal. Juntou-se a um grupo ecologista regional e foi desenvolvendo atividade política, enquanto ia associando jovens engenheiros ao projeto pessoal e à investigação adaptada a Cascais do que os japoneses já faziam.

Ganhou a Câmara nas eleições autárquicas de 2037, com o lema de campanha “Salvar Cascais”. A mensagem era a de que, mais tarde ou mais cedo, haveria outro grande terramoto ao largo da costa portuguesa e haveria que tomar medidas o quanto antes.

Em meados do segundo mandato, a Câmara lançou a discussão pública de um grande projeto, que envolvera muita gente e muitos estudos, até com a participação de experimentados engenheiros japoneses.

A discussão não foi fácil. O preço era proibitivo e obrigava a autarquia a endividar-se. A Comunicação Visual chamava-lhe projeto megalómano, quando havia tantos pobres no concelho e tantas empresas em dificuldades. Megalómano e inútil, porque era gastar rodos de dinheiro numa eventualidade que não dava mostras de acontecer, havia 300 anos. Também foram levantadas muitas dúvidas sobre o aspeto e a viabilidade de utilização das praias da zona e dos danos para o turismo que a obra acarretaria.

O concurso de construção foi lançado no início do terceiro mandato e a obra ficou concluída seis meses antes de a autarquia mudar de mãos. Era constituída por duas séries de estruturas submersas que seriam acionadas automaticamente pela força tremenda do tsunami.

Numa faixa compreendida entre os 700 e os 1000 metros da costa, elevar-se-iam, nessa eventualidade, centenas de vigas metálicas articuladas, como pernas submersas, de perfil em T, de dois metros de largura, dobrando-se, com o empurrão profundo da vaga a fazer elevar o “joelho” aos cerca de 20 metros acima do nível médio do mar, em ângulo de 70 graus, que constituiriam a primeira defesa contra a onda inicial. Não para a travar, mas para a desorganizar. O corpo firme de cada viga atenuaria um pouco a força inicial, mas seria sobretudo a localização desfasada da rede de vigas que introduziria micro-movimentos contraditórios na vaga, que quebrariam a sua força.

A cerca de trezentos metros da costa, e desdobrando-se em leque, erguer-se-iam, então, aos 17 metros, forçadas igualmente pela força marinha, duas barreiras solidárias de grossas, mas leves, placas de cimento, reforçadas em ambas as faces com uma malha de fibra de vidro, resistentes à água e aos impactos, que funcionariam como parede inultrapassável, fortalecendo-se mutuamente.

Nada da estrutura era visível, mesmo na maré baixa e qualquer veraneante pôde continuar a usufruir das excelentes praias da zona, mesmo da Praia dos Pescadores.

A obra era grandiosa e, admitamos, megalómana. O seu obsessivo proponente conseguiu o que procurava, mas o esforço deve ter sido demasiado. Morreu três anos depois, dizia-se que com alguma amargura.

A 11 de março de 2071 ocorreu um acontecimento sísmico semelhante àquele para o qual tinha sido pensada a obra de proteção de Cascais. O epicentro do sismo de grau 8,4 da escala de Richter situou-se a 90 quilómetros a oeste do cabo Espichel e a 30 quilómetros de profundidade. A onda chegou à vista da Vila com cerca de 14 metros de altura. A maior parte do sistema de placas desenrolou-se conforme o esperado, aproveitando a força da onda, mas, talvez, um quarto não deu sinal de si. Tinham passado muitos anos sem manutenção. A parte da estrutura que funcionou, bem alicerçada e inclinada para o mar, resistiu e quebrou bastante o embate, mas houve parcelas da onda que, aqui e ali, avançaram pela baixa adentro, atingindo os três metros de altura. Muita água chegou a vários pontos da Vila, mas de fluxo e força nada comparáveis com os que teria sem o sistema anti-tsunami. Não houve mortos, só grandes inundações nas áreas baixas, com os correspondentes prejuízos materiais.

Do mesmo não se podiam confortar cidades como Setúbal e Lisboa e toda a linha do Estoril. As imagens que chegavam a toda a gente, de maneira torrencial, eram mais do que confrangedoras, avassaladoras. Outro “tsunami de 1755” tinha acontecido.

Muitos cascaenses se lembraram então, do esforçado Presidente da Câmara e da sua luta obsessiva e titânica. E às dezenas foram visitar o cinerário coletivo no Alto dos Gaios, onde se dizia que tinham sido vertidas as suas cinzas, e agradeciam silenciosos e de cabeça baixa.

Joaquim Bispo

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Ilustração: Imagem de Inteligência Artificial, gerada ao comando de “Onda enorme ameaça Cascais, ao estilo de Turner”, 2023.

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4 comentários:

Mais vale prevenir do que remediar e, desta vez, de maneira inteligente. Oxalá não venha a fazer falta. Beijinhos!

Pode ser verdade, Anónima. Mas, até que ponto se deve prevenir é controverso.
Obrigado!

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