No Salão
Dourado, eu a observava sentada no sofá em estilo francês. Não olhando
diretamente, mas por meio de um dos belos espelhos do salão. O reflexo dos
lustres, do ouro que impregnava as paredes e a estrutura do banco, emolduravam
a beleza dela. O Marido, o General Vidal trocava ideias com políticos locais,
quem sabe falassem do interesse do país, que se declarava neutro em relação a
Grande Guerra, na relação com os regimes fascistas da Europa. Ele a esqueceu no
meio das senhoras mais velhas, preocupadas em desfilar os vestidos e chapéus,
da última moda em Paris.
Faltava
pouco tempo para a abertura da cortina de acesso ao palco principal. Mais uma
vez o Teatro Cólon receberia a Ópera Aida, de Verdi, e foi justamente logo
abaixo do busto de Verdi que eu me posicionei, estrategicamente, para vê-la
passar pelo Salão de Bustos. Segui seus passos até a entrada do Salão Branco.
Deste ponto não pude passar, restando-me a alternativa reservada para o meu
nível social, se houvesse como defini-lo. Ela se instalou no balcão destinado
às autoridades, ao lado do marido. Eu me posicionei por detrás das baignoires.
Ela
conservava a mesma beleza dos seus dezoito anos. Lembro muito bem do brilho em
seus olhos quando dançamos aquele tango no Café Beloni. Eu, já mais maduro,
fazia minhas apresentações ao público e como parte do show, dançávamos com
pessoas da plateia, ensinando um pouco do que sabíamos.
O número de
pessoas com que fiz par é incontável, mas ela foi especial. O sorriso
disfarçava um pouco de sua timidez. Aceitou dançar depois da insistência da
irmã mais velha e da permissão do pai, um velho soldado a serviço do Governo.
Toquei sua
cintura e parecia que o local havia sido feito para as minhas mãos. Eu morreria
ali. Aproximei-me de seu rosto e o perfume em seu pescoço era inebriante. Pude
perceber o arrepio em seu corpo quando joguei seu corpo para trás e com a mesma
intensidade o trouxe de volta ao encontro do meu. Ela suspirou suavemente e
tentou manter-se indiferente.
O bandoneón
marcava o ritmo e os violinos acentuavam a melodia do tango de Gardel: Por
una cabeza. Meu desejo era de que aquele momento fosse eterno, porém a
triste melodia chegou ao fim e, desde então, começou um duro, porém doce
período da minha vida. Ainda me lembro daqueles olhos negros me observando,
numa leve torção da cabeça olhando para trás no momento em que ela saia do Café
com a família.
Alguns anos
mais tarde um novo governo assumiu o poder, depois do golpe militar de 4 de
junho, e o pai de Violeta tornou-se uma das figuras mais poderosas e
respeitadas de nosso país. Eu, juntei-me aos revoltosos que abominavam o regime
ditatorial imposto à população. Isto aprofundou ainda mais o abismo que existia
entre mim e a bela moça.
Certo dia
quando eu subia a Cerrito, encontrei-me com ela que caminhava com outras duas
jovens. Entreguei para as três jovens algumas das rosas que eu vendia para
juntar alguns trocados. Para ela escolhi uma rosa vermelha. Antes de entregar,
sorvi um pouco do perfume da flor. Ela sorriu e perguntou-me:
− Além de
dançarino também é florista? Realmente sabe como encantar as mulheres!
− Nessa
vida, me interessa encantar apenas uma mulher. Eu aceitaria qualquer desafio
para conquistá-la. Enfrentaria mesmo um exército com tal objetivo – respondi,
contente por ela ter me reconhecido.
− Um
exército inteiro? Que tal começar pelo noivo dela, o sujeito a nos observar da
esquina? – Observou uma das amigas.
Cumprimentei
o sujeito à distância, com um gesto de meu chapéu. Pelo uniforme, percebi
tratar-se de um coronel. Um sujeito bem mais velho que a garota. Ela sorriu e
seguiu seu caminho na companhia das amigas até encontrar-se com o seu noivo.
No dia
seguinte, no mesmo horário, voltei para o mesmo local do dia anterior com meu
cesto de flores, na esperança de encontrá-la. Esperei por um longo tempo, até
que vi ao longe uma jovem que caminhava com o rosto encoberto pela sombrinha,
que a protegia do sol daquela bela e agradável tarde de primavera. Os plátanos
já haviam se coberto de novas folhas e embelezavam a avenida para o desfile
daquela bela mulher.
Ela se
aproximou e cumprimentou-me. Escolhi uma nova flor e entreguei a ela.
Sutilmente ela colocou em minhas mãos, no momento de apanhar a flor, um
papelzinho muito bem dobrado. Não sorriu, disfarçou o olhar e seguiu em frente.
Acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na esquina. Antes disso, ela
virou-se e fez um leve aceno, balançando a luva que segurava em sua mão.
No bilhete
pedia que eu me encontrasse com ela na Basílica de Nossa Senhora do Pilar, no dia
seguinte. Não dormi naquela noite e cheguei ao local com uma hora de
antecedência.
Ela chegou
no horário marcado, acompanhada de uma das jovens com quem caminhava no nosso
primeiro encontro na Cerrito. A outra moça permaneceu nos fundos da igreja,
enquanto Violeta sentou-se ao meu lado num dos bancos, próximo do altar. Rezou
por alguns instantes, depois sussurrou um convite para que fossemos até o
Cemitério da Recoleta. Pediu que eu fosse na frente.
Caminhamos
por alguns minutos entre os jazigos e túmulos de figuras importantes na
história da Capital. Trocamos algumas informações sobre nossas vidas. Enquanto
caminhávamos lado a lado, minhas mãos roçaram nas dela e ela segurou na minha.
Aproximei sua mão de meus lábios e a beijei. Ela aparentemente torceu o pé e
caiu em minha direção. Nossos rostos ficaram próximos e eu toquei seus lábios
suavemente. Ela abraçou-me por alguns instantes para logo em seguida afastar-me,
com leveza. Pediu que retornássemos e permaneceu calada até nossa despedida já
na praça em frente à Basílica.
Não houve
um só minuto em que eu tenha deixado de pensar nela, nos dias que se seguiram.
Ela não voltou mais ao meu ponto de vendas. Nas apresentações de tango eu
tentava enxergar em cada parceira de dança a bela Violeta.
Depois do
trabalho durante toda uma madrugada, eu perambulava pela Posadas quando o
jornaleiro começava a distribuir o El Mundo.
Comprei um
exemplar. A primeira página era estampada pela fotografia de Violeta ao lado do
Coronel Vidal. O casamento, anunciado para o mês seguinte. Senti ainda mais
raiva daquele governo e, em especial daquele sujeito de feições rudes e ar
arrogante.
Dediquei-me
ainda mais ao movimento oposicionista e por várias vezes estive muito próximo
da morte. Perdi muitos companheiros de luta. Consegui manter-me protegido por
detrás das minhas ocupações, fingindo simpatia a classe dominante. Com isso
abastecia de informações meus companheiros.
Vidal teve
uma carreira militar meteórica e em pouco tempo tornou-se general, guiado pelo
pai de Violeta, que já estava a mais tempo no maior posto do exército. Vidal
ganhou expressão política e era um dos fortes candidatos à sucessão
presidencial. Eu, tornei-me um dos líderes do movimento, planejando nossas
ações.
Naquela
noite, enquanto o público, a elite do país, assistisse a ópera de Verdi, a
carreira de Vidal chegaria ao fim. Eu havia depositado a minha arma em um local
remoto em uma das salas do imenso subsolo do Teatro Colón. Ele morreria diante
de todos e eu desapareceria através de uma passagem secreta.
Todos já
haviam tomado os seus lugares. Me posicionei também. Por detrás das grades de
bronze da baignoire, analisei todos os ângulos. Eu teria uma única
chance.
Ele
sorridente, estava muito próximo de Violeta. Sentavam-se na primeira fila do
balcão do segundo pavimento, espaço reservado para as autoridades. Eu teria que
ter muito cuidado para não a atingir. Eu confiava no treinamento dos últimos
meses, porém era preciso esperar pelo momento certo. Já se haviam encerrados
três dos quatro atos da ópera e eu ainda não havia encontrado a oportunidade.
Meu corpo estava todo suado e a boca amarga. A ansiedade me desgastava.
Ela parece
irritada e ele levanta a voz. Os dois saíram do balcão. Por um momento pensei
ter perdido a oportunidade de livrar o país daquele sujeito. Violeta também
ficaria livre.
Vidal
voltou sozinho, com ar contrariado. Perfeito! Era o que eu precisava. Preparei
a mira, concentrei-me.
No palco,
Radamés se despede da vida e de sua amada. Aida surge para morrer em seus
braços, enquanto Amneris reza por Radamés no templo de Vulcano. Neste momento,
da cúpula do teatro, por detrás da grande aranha central, o coro entoa os
cânticos dos sacerdotes e a acústica do teatro espalha o som com perfeição.
Para mim mais parecia um coro de anjos que anunciava a vontade do Senhor e que
eu estava fazendo a coisa certa: vingaria a morte e tortura de muitos de meus
amigos. Talvez isto aliviasse o meu pecado. “Paz!”, pedia a ópera!
O quarto
ato e o espetáculo chegavam ao fim. Seria agora. Preparei o dedo no gatilho.
Por um breve instante tremi. Interrompi o movimento quando percebi um corpo
cair da caixa do palco do Paraíso e em seguida ouvi o baque surdo do seu
impacto contra o piso do teatro. Violeta dava fim a sua vida.
Um
sentimento de culpa, misturado ao de insignificância tomou conta de mim. Talvez
eu não tenha me esforçado para conseguir representar algo na vida de Violeta ou
quem sabe fui muito menos do que imaginei. Não fui um motivo para que ela
desejasse continuar vivendo, nem rápido o suficiente para livrá-la de Vidal.
Depois de
um instante de silêncio, a perfeita acústica do teatro distribuía o som do
burburinho que se formou. Lembrei do nosso tango, dançado naquela noite em que
ela desabrochava para a vida em sociedade e em minha mente se repetia a frase
final da canção:
“Si ella me
olvida, qué importa perderme mil veces la vida. Para qué vivir”.
0 comentários:
Postar um comentário