Mesmo
com dores fortíssimas ela foi mandada para casa três vezes, em três semanas seguidas:
“A senhora não tem nada, dona Alzira. Volte para casa e descanse. Isso é mal de
preocupação”. A voz do médico me doía, porque vó, no mesmo compasso, gemia
baixinho, se contorcia e se encolhia que nem embuá atacado, para “não incomodar
o povo”. Ali, eu tinha dezesseis anos. Não podia fazer muito, a não ser chorar,
para tentar comover aquela ruma de gente que passava de branco, de um lado para
outro, já cansada de tudo. Lembro-me que uma senhora, que cuidava de uma
criança, chegou perto e nos perguntou se poderia ajudar. Vó respondeu que estava
tudo bem; que “o menino” chorava porque era “manhoso”. “Criado por vó, sabe
como é, né, minha filha?!”. A minha raiva no momento era deixar como estava,
não mexer mais em nada, já que ela queria o fim. Contudo, vinham, no instante
seguinte, o peso na consciência e o medo da solidão. “Se vó morrer, tô lascado…
Meu pai não quer saber de mim. Minha mãe morreu. Não tenho chance, morro
também”. Colei na perna de um médico. “Menino, o que é isso, me solte agora, ou
vou ter de chamar os seguranças!”. Soltei-o, mas caí de joelhos, com as mãos
postas, em sinal de súplica: “Por favor, doutor, minha vó está morrendo. Não
tenho mais ninguém. Cuida dela pra mim”. Ele me levantou do chão, confuso,
colocou-me numa cadeira, ao lado de vó, e fez um montão de perguntas. Parece
que eu a sensibilizei; ela já não respondia por si; estava, agora, preocupada
com o neto, o único neto, que ficaria, se ela morresse, entregue às maldições
do mundo. “Doutor, minha barriga tá embolando, as tripas se apertam, fico em
ares de ter um passamento… O senhor é um filho de Deus, me acuda!”. O médico,
enfim, relaxou a cara amarrada, olhou para os lados e chamou uma assistente.
“Essa senhora deveria estar na emergência. Prepare os papéis para transferi-la.
Ela vem para a minha sala para avaliações clínicas”. A senhora que estava com a
criança, sorridente, me olhou e deu uma piscadela; talvez a primeira fã do
espetáculo que montei. Fomos à sala do médico e lá compreendemos a gravidade.
“Olha, Sra. Luiza, há decerto uma inflamação na região abdominal. Noto a
presença de algum corpo estranho, que pode estar comprometendo o funcionamento
regular dos órgãos. Vou pedir exames de imagem”. Vó, apesar da dor, se sentiu
gente aí; revigorou até a fisionomia; havia interesse e curiosidade. Sendo caso
de emergência, esperamos o tempo mínimo: oito horas no corredor do hospital. Vi
gente sendo carregada, com perfuração na barriga, sangue escorrendo pelo chão;
vi ressuscitação, com choques elétricos; vi um velhinho morrer no colo da
filha. Para mim, a demora era penosa, estava comendo tempo precioso de vida. Um
senhor, com a perna esfacelada, esperava há dois dias vaga para fazer a
cirurgia. Ele gritou – de raiva, não de dor – dizendo que vendia a moto para
pagar a cirurgia – coitado, desesperado, num hospital público. Já me preparava
para dormir aí uma eternidade. Por sorte, vó conseguiu fazer o bendito exame.
Ainda demoraria para sair o resultado. Eu preferia que ficássemos um, dois dias,
para resolver de uma vez. Às onze da noite o resultado exame saiu e foi direto
para as mãos do médico. Ele nos chamou e disse que tínhamos sorte, porque hoje
era o seu dia de plantão e, por isso, poderia assumir a demanda. Vó gemia e
agradecia, espremida, se vendo de dor”. Só assim, confirmado o quadro, mandou
que ela tomasse doses pesadas de analgésico. Em seguida, me chamou no canto e contou:
“Você é um menino responsável… Fique o máximo de tempo que der com a sua
vozinha: ela está com câncer. Não creio que dure muito, mas faremos o possível
para que não sinta dor”. Enquanto vó recebia a medicação, eu varava pelos corredores
do hospital, com as mãos na cabeça, pedindo que Deus me ouvisse; se fosse de
levar “voinha”, que me levasse junto. Morri um pouco a cada dia, nos dezessete
que permanecemos no hospital. Ela foi mandada para casa, para morrer, porque
“nada mais pode ser feito. Sinto muito, João. Seja forte. Você é um menino
ajuizado. Conte comigo em alguma precisão”. Acompanhei a mulher se desmanchar
em casa. Ela tinha uma fraqueza na barriga e se esvaía em sangue. De minha
parte, queria que vó partisse, de uma vez por todas; não aguentava mais vê-la sofrer.
Ela morreu no sétimo dia. Tive de chamar uma vizinha, a Cida, para preparar o
funeral. Foi rápido. Tudo que eu precisava era bolar um plano para sobreviver.
Cida prometeu que, enquanto pudesse, me daria um prato de comida por dia; não
mais, pois não podia. Nunca me escorei. Primeiro, comprei umas frutas, com um
dinheirinho que vó guardava, e fui vender nos sinais. Aprendi a ser paciente, a
ter humildade e a saber conquistar. Alguns compravam por pena, dava para ver;
outros, para se verem livres da minha cara de abandono. Nunca fingi. Usei
somente a arte a meu favor. Pouco tempo depois conheci a Jana – Janaína Santos
–, uma puta atriz, que me chamou para acompanhá-la nos seus eventos. Ficamos
amigos e logo ganhei a sua confiança. Subi ao palco pela primeira vez em 02 de
maio de 2003. De lá para cá, muita emoção e suor. Hoje, vivo dignamente na
mesma casinha de vó, para não me apartar de seu cheiro, de suas lembranças.
Tenho certeza: ela, divina, providenciou as melhores oportunidades. Claro, é um
dom, mas também é querer muito viver.
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