Era Heitor
o seu nome. Heitor, nome de doutor em medicina, direito ou física, nome de
autoridade insofismável, nome de homem taciturno e silente, mas, ao conhecê-lo,
homens e mulheres admiravam-se ao descobrirem um jovem sorridente e alegre,
imaturo, avesso às soturnas insinuações do vocativo. Ria e gargalhava com
facilidade, cantarolava em corredores e assoviava em elevadores, e nele era ainda
mais contrária à severidade do nome o vício de, desde criança e desde o berço,
espionar em buracos de fechadura. Voyeur, declarava no silêncio da tentação. Assim
sou, voyeur, e incitava o fervilhar da saliva na língua, o estalar do céu da
boca em calor.
Entretanto
o voyeurismo, à semelhança dos demais fetiches, só se efetiva com o
reconhecimento do ato – pois os crimes consumam-se através da revelação a
terceiros, através do vínculo entre infrator e vítima, testemunha –, e como
Heitor vivia em silêncio, como a tara ele não anunciava ou divulgava, decidiu revelar-se
a uma amiga e cerrar o último nó de sua obsessão. Pois à Marilene confessou o
fetiche, justo à Marilene, evangélica e casta, modelo de honestidade digno de
irritar o mais severo dos deuses, e ao ouvi-lo ela então contorceu o rosto e
rugiu.
É doença,
disse ela. É doença.
Heitor,
satisfeito e leve, falou de como era inofensivo, de como somente nos atos de
voyeurismo sentia-se sadio e afortunado, de como a mente esvaía-se no nada e no
nada mais, e de como ele, nos instantes de voyeurismo, não era algo ou alguém.
Mas é
doença, garoto, disse Marilene. É doença.
Heitor
prometeu não se entregar novamente a sua obsessão e falsamente jurou estar, com
a confissão, curado. Eles abraçaram-se e distaram-se, e sendo um dos motivos do
encontro a outrora afinidade entre ele e Marilene, constatou o esvanecer-se da
amizade e do entendimento – qual o ego nos instantes da obsessão. Chegou em
casa o jovem Heitor, banhou-se, deitou-se na exígua cama de solteiro e dormiu
até ser despertado pelo tresloucado ritmo de seu coração. Sentou-se ele no
limite do colchão e cumulou-se de julgamentos e críticas, censuras e
condenações, e farto de acusar-se concordou, numa dessas súbitas e súteis percepções,
com Marilene: era um doente.
Mas sou
tão inofensivo, sussurrou um de seus teimosos recessos. Sou só de olhares.
Na manhã
acordou com uma vaticinante enxaqueca, e ao vestir-se não abriu a janela ou desviou
das sombras, não se uniu às insinuações do sol nas almofadas. Mais encaminhou-se
Heitor ao escuro, ao florescer de um remorso nem tanto íntimo mas oriundo de
influências exteriores, dir-se-ia o fantasma de suas contrições. Os dias
seguintes Heitor exibiu um semblante de sombria desmotivação, segmentado em
estrias e rugas, humor logo associado a ele, antes homem alegre e saltitante.
Estranharam-no os amigos e conhecidos, e estranhou-se Heitor ao emagrecer, ao
ser-se assim. Sentia-se, como relatou nas entradas de seu blog, criminoso, dos
outros alienado, e acusou da crescente solidão o maior dos seus fardos, aos
leitores descrevendo como assemelhava-se ela a uma ausência de reflexo. O
voyeurismo pelo buraco da fechadura é uma farsa, escreveu ele. No mundo real
não há dos meus, não há ninguém como eu. Quiçá o voyeurismo é a fronteira da
solidão, registrou Heitor em última nota, momentos antes de ingerir uma vintena
de medicamentos e encaminhar-se ao escritório, onde caiu de rosto na mesa e,
alheio ao indiscreto olhar dos colegas, desmaiou.
Todavia,
resoluto como todo viciado, não morreu.
Abandonaram-no
na emergência de um centro clínico, e lá abandonaram-no vomitado e torto, os
olhos abertos, vagos como galáxias a se extinguir em distâncias siderais.
Acordou com mãos que o esganavam, cutucavam-no, mãos que ignoravam seus rogos e
gemidos de culminante aflição. Exausto e cansado ouviu o ciciar de anjos ou
demônios, as orientações sobre como deveria adormecer e sonhar, sonhar e
adormecer, e ao acatar os conselhos dedicou-se a um sono obscuro, o sono dos
nascimentos não satisfeitos, eterno até Heitor voltar a si e descobrir-se
coberto de sondas, cateteres, curativos e amarras. Malgrado desorientado e a
sós, ainda a sós, sobrevinha-lhe nesse claustro o desejo de a tudo olhar e
observar, de a tudo ver, característica intrínseca ao homem de sua categoria. Heitor
escrutou o dormitório e pouco avistou além da janela, pouco escutou além de um
mecânico assoviar. Na porta chamou-o a fechadura, grande e antiga, sedutora, e
nela vislumbrou a iluminação do cômodo ou corredor contíguo. Ali firmou o
olhar, contemplou o símbolo de um passado e de um mesmo futuro, atento ao
auspicioso cintilar dos vãos até estes escurecerem como se, do outro lado,
alguém se movesse, curvasse e olhasse no buraco da fechadura, espiasse-o.
Disso
soube de imediato.
Mesmo com
o rosto recluso em sondas, sorriu.
Não mais
estava a sós em seu mal.
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