Apesar
do nome mais do que antiquado, Fulgêncio era todo modernaço, todo virado para
as novas tecnologias. E desde que descobrira a Internet, umas semanas após o
divórcio, não queria outra coisa. Passava cada vez mais horas nas chamadas
redes sociais – uma expressão que ainda lhe fazia alguma confusão, diga-se de passagem,
lendo, publicando, comentando. O acidente de trabalho que lhe dera a reforma
aos 40 anos com uma redução considerável de rendimentos, por ter sido
considerado culpado em grande parte do que lhe acontecera, visto por familiares
e amigos como uma desgraça por o ter deixado com grandes deficiências de
movimentação, foi sentido por Fulgêncio – Bill, na maior parte da Internet –
como uma grande sorte que lhe deixava mais horas livres para a sua ocupação
favorita.
E
assim ia passando os dias ocupadíssimo, mal tendo tempo para comer ou até para
dormir. Passava uma boa parte das suas noites a dormitar na cadeira de rodas de
que já não precisava, pelo menos em casa, mas que lhe permitia mover-se mais
rapidamente entre as três secretárias dispostas em U, cada uma delas com um
computador independente e um enorme ecrã, que eram agora os seus instrumentos
de “trabalho”.
A
sua atividade era exclusivamente em redes sociais. Experimentara diversos jogos
online, mas não lhe tinham enchido as medidas. O que realmente o fazia delirar
era seguir, comentar e acima de tudo criticar fotos, textos e vídeos publicados
por outros internautas, termo em desuso mas que sempre lhe agradara e que
insistia em usar, pelo menos quando falava com os seus botões.
Inicialmente
pouco publicara, até porque a sua vida não se prestava a isso, sempre preso em
casa ou, antes da reforma, a fazer supostamente o controlo de qualidade numa
fábrica de congelados moderníssima e onde o dito controlo era praticamente um
pró-forma. Na época tinha apenas um computador e era simplesmente o Bill, um
dos muitos anónimos que pululam pela Internet.
Mas
quando adquiriu um segundo e bem melhor computador, já depois do acidente e do
divórcio, algo o levou a criar uma nova personagem, mais fascinante e vivida.
Tornou-se pois o Rick, viajante, bon vivant, gourmet, sem residência
fixa nem nada que o prendesse a um lugar ou a alguém. E como Rick, criara
blogues de viagens e de comida, mandava opiniões para locais como o TripAdvisor
e outros sobre hotéis e restaurantes em todo o mundo, enfim, quem lhe seguisse
a carreira online ficaria fascinado com a vida agitadíssima que levava, hoje em
Tóquio, amanhã literalmente na Cidade do Cabo, enfim, sempre em movimento.
É
claro que nunca viajara – nem nunca saíra sequer da cidade onde vivia e que
desconhecia na maior parte, limitando-se a ir de casa ao emprego e às lojas do
seu bairro, isso quando ainda saía, porque agora comprava tudo online com
entrega ao domicílio. Mas era a Internet, milhões de recursos ao seu dispor,
limitava-se pois a respigar umas dicas e opiniões aqui e acolá e a fazê-las
suas. Tornara-se até um crítico de hotéis e restaurantes muito seguido, as suas
opiniões eram sempre muito contundentes e cheias de detalhes.
Quanto
às muitas fotos que publicava, a ex-mulher trabalhava em edição de imagem e na
fase final do casamento, numa tentativa de encontrar um terreno comum que lhes
evitasse a separação há muito anunciada, ensinara-lhe a modificar imagens e a
criar vídeos juntando pequenos excertos retirados de vários sítios. E via-se
assim o Fulgêncio, perdão, o Rick a caminhar na Grande Muralha, montado num
camelo em Omã, num veleiro em plena tempestade no Pacífico, sentado num
restaurante exótico num local ainda mais exótico, enfim, um sem fim de imagens
que pontuavam a vida de globetrotter que supostamente levava.
Quanto
ao terceiro computador... bom, certo dia Fulgêncio descobrira que se sentia só.
Analisando bem o assunto, chegara à conclusão de que não queria de facto uma
presença física em casa, que lhe cortasse o tempo e as atividades online, mas sim
apenas alguma companhia. E fora assim que descobrira os sites de amor e
quejandos. Mas, como sofria de uma certa paranoia e não queria misturar alhos
com bugalhos, decidira ter um computador dedicado apenas a esses assuntos e
totalmente independente dos outros dois.
Inscrevera-se
em inúmeros sites com inúmeros nomes de utilizador e tinha uma vida social
muito ativa – quase tão ativa como a sua vida como Rick. Quem sofria com isto
tudo era Bill, que praticamente desaparecera do mapa e que Fulgêncio estava
seriamente a pensar em matar oficialmente para não ter de perder tempo a manter
a sua presença online.
Criara
até algumas personas femininas para quando queria desabafar e ter uma conversa
“entre mulheres”. É que descobrira que o que sabia sobre o chamado sexo fraco
pouco ou nada era ou estava muito desatualizado e esses sites supostamente só para
mulheres, sim, sabe-se lá quantos como ele andariam por ali, eram-lhe preciosos
para aperfeiçoar a sua técnica de namoro.
Ao
todo, entre homens, mulheres e pessoas de sexo indeciso Fulgêncio manipulava
agora mais de três dúzias de nomes. Inicialmente criara um ficheiro Excel em
que punha o nome criado, o sexo e as características que incluíra no perfil
criado ao inscrever-se num site e outras que lhe iam ocorrendo. Mas a coisa era
tão pesada que a partir de certa altura decidira deixar-se ir na onda e parara
com os registos detalhados, limitando-se a assentar nome, password e sites onde
estava inscrito.
E
assim prosseguia alegremente a vida do nosso Fulgêncio, perdão, Bill, não, Rick,
bom o que quer que fosse de momento, até que um belo dia, ou antes, uma bela
noite, encontrou-a finalmente. A sua alma gémea! Quanto mais conversavam online
mais apaixonado se sentia. Era incrível como tinham gostos similares, opiniões
concordes, visões do mundo tão parecidas. Um verdadeiro milagre.
As
conversas não eram muito frequentes entre Bob (o nome do perfil que ela
encontrara) e Anne – era o seu nome online – ambos andavam muito ocupados, Bob
com o que já sabemos, Anne não se sabe com quê, no site dizia apenas que era
uma académica mas não em que área, provavelmente algo esotérico que não
transparecia no que escrevia nas cada vez mais longas mensagens que atingiam
repetidamente o limite de carateres.
E
chegou o momento inevitável do pedido de troca de fotografias. Fulgêncio enviou
a foto que criara para Bob – criara fotos para todos os seus nomes de terceiro
computador, algumas bastante criativas e nenhuma minimamente parecida com ele
ou com Rick (Bill nunca tivera direito a uma) – e, passado uns dias, quando já
pensava que ao ver a foto Anne mudara de ideias, recebeu uma dela.
Ao
vê-la teve a estranha sensação de já a ter visto antes, mas com tantos sites
que frequentava neste e nos outros computadores havia uma forte probabilidade
de já a ter encontrado algures, sim, o mundo é grande mas as coincidências acontecem.
Era bonitinha, sem ser uma beldade, de grandes óculos à intelectual e cabelo
escuro apanhado. A foto não incluía o corpo – a dele também não – mas pelo
aspeto da cara não devia ser nem muito gorda nem muito magra. Enfim, alguém que
se fosse o primeiro encontro não lhe mereceria sequer um segundo olhar mas, na
fase em que estavam, o aspeto físico era o menos importante.
As
conversas continuaram, por isso, e Fulgêncio começou até a negligenciar um
pouco Rick – a quem arranjou uma doença misteriosa num local exótico para
justificar a escassez de publicações – e alguns dos personagens menos ativos do
seu “estábulo”. Andava até a pensar muito a sério num encontro físico entre
ambos, uma vez que viviam na mesma cidade. E para ele, isso era realmente um
enorme passo, significaria voltar ao mundo real de onde se afastara totalmente
há muito.
Mas
um dia pegou no ficheiro das “fotos” dos personagens para modificar
ligeiramente a de Rick, coisa que fazia periodicamente para manter bem viva a
ilusão da sua existência. As fotos estavam ordenadas por ordem alfabética e,
mal abriu a pasta, deparou-se com uma que lhe pareceu um tanto familiar, ou
antes, muitíssimo familiar. Abriu-a e quase ia caindo da cadeira de rodas: era
Anne!
É
claro que eram almas gémeas! Anne era apenas uma das muitas personas que
Fulgêncio criara e que raras vezes usava porque já há muito não sentia necessidade
de uma conversa “entre amigas” e andava demasiado ocupado com tudo o resto para
perder tempo a ler e comentar problemas femininos que, muito francamente, nem
lhe interessavam grandemente. E Anne nunca fora a sua persona mais ativa nessa área,
criara-a apenas para fazer “baixar a crista” a uma tal Dora que tinha manias de
intelectual e que o irritava profundamente. E já agora, resultara em pleno,
fizera-a desaparecer sem deixar rasto...
E
isso explicava também as demoras nas respostas, é que, seguindo os conselhos de
um dos tais sites de mulheres, tinha criado uma rotina para responder aos
“namoros” sem parecer desesperado por companhia e, com o pretexto de ter muito
trabalho, nunca enviava uma resposta em menos de três dias.
Image by Gerd Altmann from Pixabay
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