A
vontade que nunca quer cessar. O estranho gosto de viver, ao menos mais um
segundo, ainda que na imprevisão. Prometi a ele que não acabaria assim. Não
podia. A sorte de termos nos encontrado no mesmo país, na mesma cidade, na mesma
era… Quem sabe, fomos almas que perambularam sem destino, descrentes, em vidas
passadas, e nos achamos. E logo agora, que sabíamos que éramos únicos, um para
o outro? Não, não devia acabar. Acabaríamos pelos desejos mesquinhos dos
outros? Minha mãe nunca entendeu de amor, coitada. Casou-se muito nova,
sequestrada por meu pai, pensando que a aventura os sustentaria. Com nove meses
exatos nasci. Ela longe de casa, tendo que dar conta de mim, dos afazeres domésticos,
da labuta diária; tudo isso sendo mulher de vaqueiro errante. Soube que mamãe
passou nove meses vivendo sozinha, olhando para o céu, esperando alguma
salvação. O casebre ficava a uns seis quilômetros da cidade, para a qual ela foi,
desnorteada, à procura de ajuda. Não intuía modo de arranjar comida, depois que
a reserva havia terminado. Na cidadezinha, por sorte, recebeu um pouco de
alento. Morando na rodoviária, por dois dias, conheceu dona Lindalva, que a
levou para casa, para que trabalhasse na limpeza da pensão. Era um casarão
imenso, com sete quartos, uma cozinha, três banheiros, duas salas, varanda e um
abrigo, nos fundos, para os serviçais. Os demais não gostaram muito de minha presença,
porque chorava dia e noite. Dona Lindalva me trouxe para o seu quarto suntuoso
e me deixava aí enquanto mãe estivesse ocupada. Vivíamos, apesar dos pesares,
bem; estávamos guardadas e comendo o que davam – e era justo e suficiente.
Depois de um mês, pai voltou nervoso, ameaçando. Mãe teve de baixar a cabeça e
seguir o marido. Dona Lindalva ainda tentou impedir, mas o delegado lhe avisou
que meu pai era bandido e que com essa laia não devia se meter. Mudamos de
cidade mais uma vez; pai era procurado. Descobrimos que ele era vaqueiro só no
nome, para melhor se apresentar; na verdade, era jagunço de profissão, prendia
e matava gente para faturar uns trocados e ganhar fama. Revelou-se, com o
passar dos anos, um homem doente, assustado, cismado, e por isso descontava na
gente. Não podíamos sair de seu encalço. Vivíamos como prisioneiras. Batia em
mamãe porque dizia que ela era murcha das tripas, que não lhe dava um filho
homem. Talvez Deus a tenha poupado de ver o sofrimento de mais um filho. Eu
quis fugir, mas mãe tinha muito medo, pedia que aguentasse até o velho morrer
ou ser morto; mais dia, menos dia, não tardaria. Pude estudar em Pedreiras, uma
cidadezinha já perto da capital. No começo, pai ia me deixar e me buscar, mas,
como dava uma hora de ida e uma de volta, ele desistiu. Achava que também eu
fosse desistir. Arrumei um cavalo magro de um compadre de meu pai. Ele me deu
garantindo que “Pé de pano” morreria em breve. Durou pelo menos quatro anos
comigo. Comia da minha comida. Éramos carne e unha. E não me deixava na mão.
Doce era percorrer os quilômetros até a cidade, no seu lombo, dormindo e
sonhando que logo teria a minha casa e a minha família, e não dependeria dessa gente
esfacelada. Conheci Sóstenes quando fazíamos a quarta série. Ele veio para
Pedreiras por promessa de emprego ao seu pai. Teria ficado danado por sair de
Viçosa, onde morava; deixara amigos e familiares para trás, sem prevenção. Com
dez anos, eu também tinha medo do novo. Na segunda semana de aula, a professora
pediu que ele se sentasse ao meu lado, para realizarmos uma tarefa. Ele era
tímido, mas sorria o céu. Falava pouco, só o necessário; o bastante para nos
conectarmos. Ele era lindo. Tinha os cabelos lisos e olhos puxados como de um
índio. Era diferente de tudo que eu havia visto. Sonhei longas noites com ele,
beijando-o, abraçando-o e correndo por lindos campos. Ele me pedia calma,
enquanto eu o forçava a fugir. Será que o sonho queria me dizer que a sina era
de fugir, como aconteceu com pai e mãe? Tive medo de agarrar o mesmo destino. Aumentamos
no querer. Ficávamos sós na hora do recreio. Ele fingia que não gostava de
bola, quando os meninos o chamavam para brincar, para ficar correndo e pulando
nas árvores comigo. Na sexta e sétima séries nos descobrimos no amor. Ele
prometeu que, quando crescesse, se casaria. Eu queria me casar logo, com medo
de acontecer algum revés. Aconteceu, como acontece em todas as histórias de
amor: Sóstenes devia seguir para um novo trajeto, por conta do trabalho de seu
pai. Desta vez, iria para outro Estado. Não tínhamos idade ou dinheiro. Mamãe,
quando soube da minha intenção, disse que era loucura, que eu iria me
arrepender. Que homem é tudo igual. Que perderia a minha família e ficaria como
ela, largada. Que me aperrearia e depois seria muito tarde. Pai, nessa altura, não
se distinguia de uma porta, bruto e insensível; não sentiria a minha falta. Mãe
chorou por uma semana, prevendo o pior: ficaria só. Tive pena e dor. Não queria
guardar essa imagem dela. Não queria ser a razão de sua desgraça. E eu não era.
Tinha de me convencer disso. Fiz tudo para mãe se livrar do fardo. Ela não
quis. E eu precisava viver. Quando menos esperei, Sóstenes estava na minha
porta. “O que você veio fazer aqui, seu maluco?!”. Ele olhava para mim
sorrindo, sem um pingo de medo do que pudesse nos acontecer. Pedi que me
esperasse na praça da cidadezinha, que iria preparar a minha mala. Mãe se agoniou,
disse que não queria mais me ver e me deserdou no ato. Aquela vontade absurda
me dominava. Saí sem olhar para trás, com duas mudas de roupa e meu par de
sapatos preferido. Alcancei Sóstenes e pedi para sair dali. Ele já tinha as
passagens compradas para a cidade de Aurora. Chorei toda a jornada e mais uns
meses. Sóstenes me aquietava com o seu amor. Não nos faltou trabalho. Fomos,
durante anos, faz-tudo da fazenda Rancho Dourado. A vontade genuína me trouxe
até aqui, me deu dois filhos, uma casa, um marido bom e mais vontade de seguir.
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