Uma
jovem bonita, com um corpo esbelto de vermelho vestido, com um ramo de rosas
brancas na mão, há muito que caminhava sem destino pelas ruas de um bairro
situado num centro histórico, apreciando ao acaso algumas das casas
classificadas como património de interesse mundial.
Quando
estava prestes a deixar o bairro, foi atraída por um padrão nada usual em
azulejos, que revestia a fachada principal de uma casa. Imediatamente
encaminhou-se para o objecto daquele súbito interesse e entrou num esconso
beco.
No
momento em que se preparava para admirar aqueles azulejos únicos, ouviu um som
musical que a prendeu de imediato e a arrancou ao que vinha. Nada mais a
interessou, os azulejos varreram-se-lhe da vista e da memória. Aquele
maravilhoso timbre suplantou tudo, parecia ser do outro mundo.
Seguiu
o caminho do som e de repente deu com um velho de barbas e cabelos brancos
deitado no chão. A posição do corpo e a boca aberta davam a nítida impressão de
que estava a dormir. A sua mão esquerda agarrava um violino.
A
jovem olhou atentamente para o homem e depois desviou o olhar para o violino.
Num relance avaliou-o. Uma maravilhosa obra de arte, sem dúvida. Os seus
profundos conhecimentos de música e de instrumentos musicais não a deixavam
enganar-se.
Segura da descoberta, sentou-se, poisou no
chão o ramo de rosas brancas que trazia e voltou à avaliação, agora com olhos
mais científicos. Não se enganara, aquele som só podia ter saído daquele
instrumento. Sentiu um frémito a percorrer-lhe o corpo e num impulso estendeu o
braço para se apoderar do violino, mas conteve-se a tempo e encolheu o braço.
«Se
o homem está a dormir tão profundamente quem terá arrancado aquele som do outro
mundo»?
Poisou
os olhos no rosto adormecido e assim ficou durante alguns momentos mantendo um
olhar atento e mais prolongado, tentando descodificar aquele estado de vida.
«Estará
de facto a dormir ou estará morto»?
A
dúvida instalou-se no seu consciente. Para se certificar da situação,
ergueu-se, inclinou um pouco o seu corpo e a medo tocou-lhe ao de leve no ombro
e abanou-o. O velho continuou de boca aberta e nem se mexeu. O que parecia ser
uma coisa passou rapidamente a outra. Afinal poderia estar morto.
A
jovem ainda desconfiada de que tudo não passasse de uma encenação ou que ele
poderia estar a passar mal abanou-o com mais força, ao mesmo tempo que lhe
gritava ao ouvido. Como nem os abanões violentos nem o grito deram quaisquer
resultados a jovem concluiu que o velho estava mesmo morto.
«Provavelmente
teve algum ataque cardíaco fulminante, após ter tocado aquele som. O corpo não
mostra qualquer sinal de violência ou de roubo».
Voltou
a sentar -se no chão e ficou a olhar pensativamente para aquela cena. Passado
algum tempo, levantou-se e arrancou delicadamente da mão do velho o violino. De
seguida depositou as rosas brancas ao lado do morto. Feita a troca e antes de
lhe virar as costas, apanhou o arco que estava caído no chão, apressou os
passos e afastou-se rapidamente daquele beco.
Agora
que já estava bem longe daquele local começou a pensar no que lhe acontecera:
«Fui
passear, entretanto pelo caminho comprei um lindo ramo de rosas brancas e
regressei com uma autêntica obra-prima. Não me podia queixar da sorte»
Mas um sexto sentido parecia querer avisá-la
de que se deve desconfiar de tanta sorte.
«Mas
que mal me pode acontecer? Apesar de me ter apoderado de uma coisa que não me
pertence não fiz nada de errado. Não tenho que ficar apreensiva. A troca
beneficiou os dois, o morto ficou flores e eu com o violino. Que mais gostaria
ele de ter na hora da morte? Flores como toda agente. Aquele violino já não lhe
ia trazer qualquer préstimo.»
Este auto convencimento devolveu-lhe o ânimo e
afastou qualquer espécie de medo. Só um pequeno senão bailava insistentemente
na sua mente:
«Quem
seria aquele velho e como é que ele possuía um violino daquele quilate»?
Tudo
começou num longínquo tempo em casa de um famoso luthier e compositor que em
honra do seu filho, um prodigioso violinista, prometeu construir um violino
perfeito e compor uma obra de dimensão universal. Procurou as melhores
madeiras, as cordas mais sensíveis, as melhores cerdas, as tintas e os vernizes
de qualidade superior. Todos os utensílios fabricados para aquela obra foram
especialmente por si concebidos e mandados executar pelos melhores artífices
que trabalharam sob a sua orientação. Nada podia falhar, porque mais do que uma
obra-prima ele queria a obra perfeita. E enquanto ia construindo o violino ia
também criando a obra musical.
Muitos
meses e talentos passados e o violino perfeito não havia maneira de ficar
concluído. O timbre ou estava mais agudo ou menos aveludado, mais estridente
outras vezes. Havia sempre um pormenor imperfeito e o som tocado nunca saía
perfeito. O concerto estava prestes a ter lugar e o problema continuava
insolúvel. Na solidão da sua angústia o luthier tentou tudo, até o impossível,
e conseguiu.
No
dia do concerto a Catedral encheu-se de melómanos, de amigos e de gente sem
especiais qualificações musicais, todos interessados em assistirem àquele
evento. À hora marcada o compositor luthier subiu ao altar e saudando os
presentes anunciou o programa da noite. Apesar do seu auto controlo a ansiedade
estava bem marcada no rosto e no timbre da sua voz. Dava a impressão que havia
algo de misterioso, alguma coisa menos transparente naquele concerto, mas
talvez fosse só da ansiedade própria de tão importante momento. Que mistério
poderia haver num concerto de violino, ainda por cima num local santificado?
O
prodigioso violinista, recebido com uma salva de palmas que encheu toda a
catedral, era um jovem alto, de porte elegante, com os cabelos negros a tocarem
ao de leve os ombros. Quando enfrentou o público, os seus olhos verdes que iam
a matar com seu distinto traje de cerimónia brilhavam de satisfação.
Um
maravilhoso som que parecia ser do outro mundo ainda se elevou ao cimo da nave
da Catedral, mas por aí ficou, porque não se ouviu nem mais uma nota. O
prodigioso violinista parou de tocar e caiu no altar. Gritos de angústia e de
desespero ouviram-se por toda a Catedral. O pânico instalou-se ainda mais
quando as pessoas das filas da frente se levantaram e em atropelo correram em
direcção ao malogrado jovem violinista.
Ajoelhado
o pai agarrava carinhosamente o corpo morto do seu único filho. Não se ouviu
dele um grito, mas as lágrimas rolavam-lhe pelo rosto marcado pela terrível
tragédia. Carinhosamente o pai levantou-o do chão e deitou-o na pedra sagrada
do altar. Aí repousou até ser transladado para uma urna onde ficou em câmara
ardente durante as exéquias fúnebres.
O
luthier ainda pensou em destruir o violino, mas não teve coragem de o fazer e
encerrou-o num caixão de vidro que depositou num altar construído de propósito
na sua oficina.
Durante
o tempo em que foi vivo nunca mais saiu de casa e não mais construiu qualquer
instrumento musical.
Entretanto
passou a correr pela cidade uma explicação da causa da morte do jovem e famoso
violinista: o pai para conseguir o violino perfeito fez um pacto com o Diabo,
prometendo que se ele lhe desse o violino prefeito nunca qualquer casa de Deus
teria a honra de ouvir daquele violino uma nota que fosse. Esquecido o pacto,
foi na Sé Catedral da cidade que se realizou o concerto e foi lá que se ouviu a
primeira e única nota. Foi a vingança do Diabo pela quebra do pacto. O Violino
perfeito é uma obra amaldiçoada, quem tocar nele uma nota que seja morrerá de
imediato.
E
foi aquele velho de cabelos e barbas brancas que se introduziu, por meio de
arrombamento, numa oficina de instrumentos musicais e que viu um homem caído no
chão e que ainda agarrava com a mão um violino. E foi esse velho que se agachou
e que arrancou o violino das mãos daquele homem. E foi esse velho que saiu para
a rua com o saco às costas, levando nas mãos um arco e um violino.
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