Na Madrugada dos Tempos – Parte 6
O espírito de propriedade duplica a força do homem.
Voltaire
Filósofo francês
(1694-1778)
Imbuído de uma força de vontade impressionante, o novo local de oração do Clã do Leão das Montanhas começou a ganhar forma. Nehir e Zia, reconhecidas pelos seus conhecimentos astronómicos, marcaram a primeira pedra para que ficasse apontada às estrelas-que-guiam; o conjunto das estrelas mais brilhantes do céu que formam um retângulo que parece arrastar três outras[1], indicaria o Ner[2]. Mais três outras pedras assinalariam Swol[3], Hewsos[4] e outra Wes[5], teriam assim um santuário perfeitamente alinhado com as divindades. Usaram uma corda de tendões entrançados, com o comprimento de três homens e amarraram o ídolo central, caminhando depois em volta dele; assim desenharam o círculo onde iriam erguer os seus monólitos. Terminaram os preparativos com um sacrifício onde abriram duas lebres nas entranhas das quais Zia leu o futuro que parecia ser auspicioso. Naquela noite, após ofertarem pelo fogo as entranhas de algumas cabras, banquetearam-se na presença dos deuses.
A cada quatro noites, que é o número das estrelas-guias, um grupo de quatro mais quatro homens e mulheres eram escolhidos para retomar o trabalho onde grupo anterior o interrompera. A equipa chefiada por Nehir percorria os montes até encontrar a pedra da qualidade e tamanho certos que era depois desbastada com recurso a pedaços de basalto. Assim que estivesse pronta, era arrastada pela paisagem num enorme trenó de madeira; por vezes os obstáculos eram tão formidáveis que precisavam recorrer a ajuda adicional da aldeia. Por fim, chegados ao local da construção, abriam uma cova com cerca de um quarto da altura da pedra, onde depositavam a extremidade mais volumosa. O monólito era depois erguido com alavancas de madeira e puxado por grossas cordas trançadas com fibras vegetais. As pás de osso das omoplatas de burros e as picaretas de cornos de bisonte trabalhavam incessantemente a abrir covas e a endireitar o chão.
Menos de vinte dias depois do ataque aos homens-macaco, morreu Ediz. Há algum tempo que jazia na enxerga coberta de peles sem dar acordo de si e o ferimento na barriga, por mais esforços que Nehir fizesse, estava com mau aspeto e exalava um odor forte e desagradável. Nos últimos dias em que ainda mantinha a consciência pedira para ficar no santuário que estavam a construir. Foi numa tarde dominada por um vento gelado que o corpo do guerreiro, agora quase só pele e osso, foi depositado na terra aos pés dos ídolos do sol e da lua. Ao pescoço levava o colar de couro adornado com os dentes de vítimas das suas muitas caçadas e a seu lado depositaram a lança e a faca de sílex. O seu saco de couro continha as habituais oferendas com comida e bebida para a viagem que faria para o mundo das sombras. Cobriram-no com alguns seixos do rio, mas maioritariamente com os retraços do desbaste dos monólitos, antes de cobrir tudo com a terra endurecida do frio. Zia, entre lágrimas, em pé em cima do túmulo recente, proferiu um grande elogio ao irmão perdido, encorajando os outros a seguir-lhe o exemplo. Depois todos se recolherem às suas casas onde os aguardava o aconchego da fogueira. Ediz deixava a jovem Ayla sozinha com duas crianças ainda pequenas.
Conforme esperado, o frio crescente trazia a escassez de caça e os caçadores precisavam de cobrir áreas cada vez maiores. Mesmo os mamutes eram raros, em grupos pequenos e mais vigilantes; não permitiam a aproximação dos humanos. As expedições, que era raro durarem mais de um dia, agora prolongavam-se o dobro e às vezes o triplo. Para juntar às preocupações de Erem, os caçadores informaram que foram vistos outros grupos de humanos na área e que haviam seguido um deles em direção a poente onde se depararam com um povoado. Possuía tendas e casas de pedra com alguns invernos de existência. Afinal, já não estavam sozinhos nas montanhas.
Quando chegou a vez de Erem incluir um grupo de caça, decidiram seguir em direção a sul e evitar a proximidade do outro povoado; iriam até à Pedra do Leão da Montanha para rever a enorme planície do lago salgado de onde haviam partido há dez invernos. Foi uma desilusão, porém, já não conseguiram sequer encontrar o promontório de onde se despediram de Birol e o seu clã. Os pontos de referência e toda a planície que esperavam ver, estavam agora debaixo de uma descomunal massa de água que se estendia a perder de vista… se as águas continuassem a subir daquela maneira, todo o mundo desapareceria em breve.
Vaguearam um pouco pelas margens e entraram pelo lado nascente de um povoado onde foram olhados com alguma desconfiança. Eram bastantes as habitações de pedra, algumas compridas e com esquinas, em vez de simplesmente redondas, como as que conheciam e faziam. Os habitantes vestiam maioritariamente roupas de linho e lã, em vez das peles costuradas que Erem e os seus usavam. Tratava-se de uma população muito numerosa, a avaliar pelo número de construções e pelos bandos de crianças que os cercaram e seguiam, rindo e fazendo troça das suas roupas grosseiras, até se cansarem e desparecerem. Havia muito peixe e pouca carne a secar junto das casas. No meio das águas, alguns homens sentados no que pareciam bocados de madeira, pescavam calmamente com canas, outros em pé sobre plataformas faziam-no com lanças. Quando por fim chegaram ao limite poente da extensa aldeia, havia uma azáfama com várias dezenas de homens e mulheres, uns arrastando troncos, outros a apará-los e outros ainda a erguê-los numa fila ininterrupta que já se estendia há umas dezenas de metros. Os buracos feitos no chão pareciam indicar que preparavam uma parede em volta do casario.
Não tardou que fossem abordados por um grupo de homens armados de lanças e arcos que transportavam no braço um grande pedaço de couro redondo.
O que parecia ser o chefe interpelou-os numa fala áspera, que se compreendia com dificuldade. Queria saber quem eram e o que estavam ali a fazer. Erem assumiu o seu papel de líder e explicou que eram uma expedição de caça de uma aldeia situada a uns dias de viagem de costas para o sol. Depararam com a povoação por puro acaso.
O comandante dos guerreiros olhou-os um a um com desconfiança antes de sentenciar: — Não têm nada a fazer por aqui se não vêm fazer trocas. Vão-se embora depressa. — Ele apontou o caminho para fora da aldeia com a lança, cuja ponta rubra e reluzente chamou a atenção de Erem.
— Mas… não entendo. — Contestou este enquanto os seus homens tomavam posições defensivas perante os outros que ameaçavam cercá-los. — Estamos só de passagem, não estamos a fazer mal nenhum…
— Fomos atacados várias vezes nos últimos dias por gentes vindas desses lados. — Explicou o chefe. — Por isso estamos a erguer as nossas defesas e não queremos cá estranhos. Vão-se embora, rápido!
Aborrecidos por serem enxotados como ratos, obedeceram à ordem e iniciaram o regresso à sua própria aldeia. Pelo caminho conseguiram encontrar um numeroso grupo de auroques. Isolaram, perseguiram e mataram um velho macho … com mais de quinhentos quilos de carne para levar para o seu povo, a caçada compensara. Desmancharam a carcaça rapidamente, antes que o cheiro a sangue fresco atraísse predadores perigosos e distribuíram o peso entre eles. Tinham de se deslocar rapidamente, um urso poderia ser um adversário formidável e não se coibiria de os enfrentar, apesar de estar em inferioridade numérica, mas também as hienas das cavernas ou mesmo leões se podiam atrever contra grupos de humanos.
Quando, com alívio, chegaram à aldeia, Erem comentou com os seus companheiros como se tornava evidente que havia uma anormal falta de caça. A aproximação do inverno provocava naturalmente uma redução de animais disponíveis, mas cada nova estação o seu número parecia menor. Recordavam-se que, nos primeiros anos da separação do clã de Birol, avistavam-se algumas manadas de mamutes e atualmente apenas esporádicos grupos familiares. As manadas de auroques, que antes eram enormes, agora apenas tinham cerca de metade dos elementos e mesmo ursos ou leões não eram tão vulgares… decididamente não se podiam atribuir todas as culpas à estação fria, mas sim ao aumento das populações humanas na região. Gastava-se cada vez mais tempo na caça, o seu povo, se queria crescer e desenvolver-se, teria de apostar mais na agricultura e aumentar o número de cabras e ovelhas no rebanho.
Uma tarde, quando Erem aguardava o regresso de um grupo de caça, foi alertado da proximidade de alguns humanos e dirigiu-se para o extremo nascente da aldeia, onde assistiu à aproximação dos estranhos.
Eram apenas dez; quatro adultos, três adolescentes e três crianças, uma delas de colo. Estavam cansados e pareciam famintos. Pararam hesitantes a uns vinte metros das primeiras casas e hesitavam entre avançar e afastarem-se, a agitação entre os adultos aumentou ao verem que Erem e vários vizinhos se aproximavam, alguns com as lanças a postos.
Fikri, um dos filhos de Lemi, colocou-se à frente de Erem, com a lança em riste e olhou interrogativamente para o chefe, que lhe devolveu um aceno negativo com a cabeça.
— Queres que vá saber o que querem? — Interrogou o jovem ainda sem alterar a pose defensiva.
— Não. Deixa-os aproximarem-se e falarem livremente. — Comandou Erem fazendo um gesto aos estranhos para que se aproximassem. — Não vês que têm fome e pelo menos um deles está ferido? Não são uma ameaça.
O pequeno grupo aproximou-se e um dos homens ergueu as mãos em prece ao meio do rosto para Erem, num gesto de agradecimento. Mais perto viam que todos tinham arranhões e hematomas, sinal de que estiveram envolvidos em combates o que lançou a desconfiança entre os residentes.
O mais interativo dos forasteiros falou algumas palavras que ninguém entendeu e depois, vendo que não o compreendiam, experimentou outras com sonoridade diferente, mas que se entendiam com alguma dificuldade. Expressou a gratidão do grupo e explicou que vagueavam de aldeia em aldeia e foram atacados ao chegar a uma delas a cerca de um dia de viagem para nascente. Quase tudo o que tinham foi-lhes roubado nesse ataque e, quando tentaram refugiar-se na aldeia, foram corridos à pedrada.
Erem indicou-lhes o caminho para o centro da aldeia e mandou que acendessem a fogueira para darem as boas-vindas aos recém-chegados. Rapidamente, fortes labaredas expulsavam os maus espíritos do céu, alimentadas pelos troncos que se guardavam secos debaixo de peles e colmo. Sentaram-se em volta do fogo em pequenos tocos de madeira que foram trazidos de várias casas.
Lemi e o grupo que estava assignado à construção chegaram quase ao mesmo tempo que os caçadores e todos ficaram apreensivos com os estranhos. Eram as primeiras “visitas” em muitos anos.
Apenas Erem e depois Zia, chegada posteriormente, se sentaram com os forasteiros e partilharam com eles algumas lascas de pão duro e carne seca. Os restantes, cujo número foi aumentando até estarem todos os habitantes da aldeia, ficaram em círculo escutando e observando tudo o que se passava.
Todos tinham olhos castanhos, amendoados, cabelos compridos, ondulados e pele escura e os homens, mesmo o mais velho, tinham apenas uma penugem em vez das barbas espessas dos seus anfitriões. Vestiam capotes de pele sobre grossos camisolões de lã e calçavam peludas botas de pele de carneiro. Estavam bem preparados para o frio que chegava. O homem mais velho chamava-se Alim e a mulher Nadi e viajavam com três filhos, a mulher do mais velho deles e três netos…
Alim e a sua família eram provenientes de uma aldeia que se desmembrou com a subida do nível do mar. Alguns mudaram-se para pontos elevados, outros para aldeias distantes e outros ainda, como eles, tornaram-se errantes vivendo alternadamente vários locais. Aos poucos, foram reunindo os mais diversos bens que trocavam por outros. Já possuíam quatro vacas e seis cabras, além de uma grande quantidade de produtos e procuravam assentar em breve nalguma aldeia. Há uns dias, tudo lhes fora roubado, além da vida de um irmão de Alim que os acompanhava. Foram atacados por uns homens enormes de cabelos e barbas soltas, armados com espadas e machados.
— Que são espadas? — Perguntou Erem sem se conter.
— Não sabes o que são espadas? — O estrangeiro não conseguiu conter a admiração. — São como facas, mas muito mais compridas.
— Facas compridas? — O chefe da tribo continuava surpreendido exibindo a sua faca de sílex do tamanho de uma mão. — Se a pedra for mais comprida do que isto, parte-se e não serve de nada.
— Pedra?!? — O estrangeiro sorriu surpreendido, enquanto mostrava um punhal de cobre trabalhado. — Não de pedra, de metal; maior do que esta faca!
— Para Hewsos[6] daqui, — interrompeu Beki, o filho de Alim, despejando um conjunto de pequenas peças metálicas na palma de uma mão —, praticamente já ninguém usa sílex para as armas, isto são pontas de seta que trazemos para vender. Salvaram-se porque as trazia comigo, em vez de estarem no trenó com o resto das coisas.
Zia pegou numa das pontas de flecha e observou-a cuidadosamente enquanto Erem estudava o peso e a maneabilidade do punhal, simulando movimento e estocada… passou a lâmina na mão e fitou pensativamente o fio de sangue que se soltou… se havia muitas armas como aquela, o mundo estava a mudar… e a ficar muito mais perigoso.
[1] Constelação da Ursa-menor, cuja última estrela da cauda indica o Norte.
[2] Proto Indo-Europeu: Esquerda (que acabará por ser o ponto cardeal Norte) por oposição ao sol do meio-dia
[3] Proto Indo-Europeu: Sol é um dos principais deuses do panteão, mas também significa o sol do meio-dia, um dos pontos cardeais que originará o Sul
[4] Proto Indo-Europeu: Madrugada é uma das deusas do panteão, mas também um dos pontos cardeais que dará origem ao Leste
[5] Proto Indo-Europeu: Noite é um dos pontos cardeais que dará origem ao Oeste
[6] Proto Indo-Europeu: Madrugada ou Nascente
Parte 5 – Os Deuses e os Homens | A seguir: Parte 7 – A Obra Nasce |
Manuel Amaro Mendonça
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