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sábado, 17 de abril de 2021

Enéias enfrenta Androgeu - poema de Virgílio. Tradução de Fábio Cairolli

ENEIAS ENFRENTA ANDROGEU: duas estéticas diferentes para a tradução da Eneida de Virgílio (II, 355-386). 

Por Fábio Cairolli


O que se apresenta na sequência são duas traduções diferentes da mesma passagem da Eneida, produzidas com um intervalo de seis meses entre uma e outra, pensadas para atender propósitos estéticos diferentes. A primeira, em septilhas ao estilo da literatura de cordel visa recuperar o caráter oral e performático da literatura latina, bem como a naturalização (uso com ressalvas o termo) do ritmo da redondilha para o público do Brasil contemporâneo. A outra é feita em dodecassílabos e partilha de uma estética que prioriza a sofisticação e solenidade da poesia épica, numa linhagem que passa por nomes como Haroldo de Campos, Brunno Vieira, Trajano Vieira, entre tantos outros.

Como parte do prazer de traduzir, me dei o direito de não consultar a primeira tradução ao produzir a segunda, o que ocasiona, inclusive, na existência de divergências entre a leitura feita em um e outro momento.

Para situar o leitor na história, Eneias, um dos nobres de Troia e ancestral dos romanos, acorda no meio da madrugada e percebe que sua cidade estava dominada por soldados gregos, saídos do famigerado cavalo de madeira. Juntando aqui e ali os homens que encontra, parte em direção o centro da cidade. No caminho, encontra uma tropa de soldados comandada pelo grego Androgeu.




PROPOSTA DE TRADUÇÃO #1: septilhas de cordel


CII, v. 355-357

Raiva no ânimo dos jovens

Cresce assim: de igual maneira

Quando os lobos caçadores

Sob a neblina matreira

São pela injusta barriga

Coagidos a cega briga,

Deixam filhos na lobeira,


CIII, v. 358-360

Eles têm garganta seca

E esperam; nós, entre as lanças

E inimigos, para morte

Com certeza a gente avança

Indo ao centro da cidade;

Na noite sem claridade

Ao redor a sombra dança.


CIV, v. 361-363

Quem o estrago dessa noite,

Quem das mortes narração

Vai fazer ou verter pranto

Que seja par da aflição?

Cai nossa antiga cidade

Que usou ter majestade

Por anos em sucessão.


CV, v. 364-366

E de modo aleatório

Nas ruas espalhados

Havia corpos sem vida

E nos recintos sagrados

E nas casas dos humanos.

Mas não era só troiano

Todo esse sangue espalhado.


CVI, v. 367-369

Algumas vezes também

A virtude dos vencidos

Volta ao peito e, vencedores,

Os dânaos são abatidos.

Há por tudo um duro luto,

Pavor em tudo, absoluto,

Tudo é de morte tingido.


CVII, v. 370-372

O primeiro em meio à gangue

Tão grande da gente grega,

Sem saber se há formação,

Androgeu a nós se entrega

Como se da sua gente;

De forma inconsequente

Estas palavras emprega:


CVIII, v. 373-375

"Vamos, se apressem, rapazes!

Por que tanta lentidão

Em hora tão avançada?

Alguns queimam até o chão

Pérgamo e e se dão ao saque;

Vocês, seu único ataque

É voltar à embarcação!"


CIX, v. 376-378

Falou e, imediatamente,

Como a resposta que ouviu

Não fosse a justa, notou

Que estava num meio hostil.

Tremendo espanto se fez

E, voltando atrás os pés,

Um gemido lhe saiu.


CX, v. 379-382

Como no áspero espinheiro

Quando alguém pisa em serpente

E, ao notar, corre apressado

Que a ira ferve e entumescente

Sua cauda azul se ergueu,

Assim fugia Androgeu

Pelo que via tremente.


CXI, v. 383-386

Caímos de pau, em volta

Paramos com chumbo grosso;

Sem nem ver onde, avançamos,

Cheios de muito alvoroço:

A sorte ajuda a labuta.

Exultando com a luta

Diz isso Corebo, o moço: (...)



PROPOSTA DE TRADUÇÃO #2: dodecassílabos

Cresce assim fúria na alma deles; como lobos 355

Caçando em névoa escura, que um ódio voraz

Impele o ventre cego, e os filhotes deixados

De goela seca esperam, por armas e armados

Vamos à morte certa, no caminho ao centro

De Troia; a noite escura envolve em sombras curvas.   360

Quem explica o desastre dessa noite, as mortes

Nefastas, ou iguala as lágrimas às dores?

Cai a antiga cidade, senhora há muitos anos,

Pelas vias cá e lá se espalham muitos corpos

Sem vida e pelas casas e sacros limites 365

Dos templos. Não castigam só o sangue dos teucros;

Também às vezes volta a virtude aos vencidos,

Caem dânaos vencedores; por tudo o cruel

Luto, por tudo medo, imagem de mil mortes.

Primeiro, em frente a um grande contingente dânao, 370

Androgeu se mostrou, crendo eu ser tropa amiga,

Sem saber, e além disso impelia os colegas:

"Vai, galera! A demora tem algum motivo?

Moleza? Os demais roubam e arrasam no incêndio

Com Pérgamo. Da grande frota agora chegam?"  375

Disse e logo, uma vez que nenhuma resposta

Justa vinha, se viu em meio aos inimigos.

Espantado, repôs o pé atrás gemendo:

Como quem sem querer na via estreita pesa

Pisando em cobra sobre chão, ligeiro foge 380

Da que se irrita mais e incha o pescoço azul,

Não de outra forma o trêmulo Androgeu fugia.

Fomos pra cima, rodeamos de armas densas,

E eles, que ignoram o lugar, cheios de medo

Matamos: a primeira luta a sorte inspira. 385

Exultante por esse sucesso, Corebo (...)



ORIGINAL LATINO

sic animis iuvenum furor additus. inde, lupi ceu               355

raptores atra in nebula, quos improba ventris

exegit caecos rabies catulique relicti

faucibus exspectant siccis, per tela, per hostis

vadimus haud dubiam in mortem mediaeque tenemus

urbis iter; nox atra cava circumvolat umbra.                      360

quis cladem illius noctis, quis funera fando

explicet aut possit lacrimis aequare labores?

urbs antiqua ruit multos dominata per annos;

plurima perque vias sternuntur inertia passim

corpora perque domos et religiosa deorum                          365

limina. nec soli poenas dant sanguine Teucri;

quondam etiam victis redit in praecordia virtus

uictoresque cadunt Danai. crudelis ubique

luctus, ubique pavor et plurima mortis imago.


Primus se Danaum magna comitante caterva                      370

Androgeos offert nobis, socia agmina credens

inscius, atque ultro verbis compellat amicis:

'festinate, viri! nam quae tam sera moratur

segnities? alii rapiunt incensa feruntque

Pergama: vos celsis nunc primum a navibus itis?'               375

dixit, et extemplo (neque enim responsa dabantur

fida satis) sensit medios delapsus in hostis.

obstipuit retroque pedem cum voce repressit.

improvisum aspris veluti qui sentibus anguem

pressit humi nitens trepidusque repente refugit                    380

attollentem iras et caerula colla tumentem,

haud secus Androgeos visu tremefactus abibat.

inruimus densis et circumfundimur armis,

ignarosque loci passim et formidine captos

sternimus; aspirat primo Fortuna labori.                               385

atque hic successu exsultans animisque Coroebus

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Rafael F. Carvalho
Autor do livro A Estante Deslocada, é paulistano, nascido em 27 de Fevereiro de 1978. Foi publicado em antologias de novos escritores e em jornais universitários, e é formado em Letras pela Universidade de São Paulo.


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