Na
sexta-feira, véspera de carnaval – um carnaval pró-forma, porque estamos em
quarentena e não havia nada que aludisse ao nome da fornicação –, Lise me ligou
para um almoço ocasional, como se não quisesse nada. Ela estava tranquila,
aparentemente. Não senti nenhuma alteração na voz, nada de hesitação. Claro,
disso eu sei, ela é fria – ou tenta se fazer de durona. Respondi-lhe como se
não houvesse nada de anormal naquela conversa. O que me inculcou foi o fato de
Lise saber o meu novo número. Alguém, por maldade, teria liberado a informação.
Mas quem? Não importa, não farei o mínimo esforço para descobrir. Deve ser um
dos meus trinta desafetos. Lise, na época em que trabalhamos juntas, foi uma boa
parceira, considero assim. Trocávamos figurinhas, sobre os casos do Bernardo, o
sonso do administrador, casado; a completa falta de senso de ridículo, com a
fauna de roupas esdrúxulas, da Luísa, a “gestora”; o descompasso de Cinira,
que, não raro, quebrava copos, arrancava fios, lesionava pessoas,
involuntariamente, porque não tinha controle nem percepção de espaço –
vivíamos, por isso, longe dela –; e, óbvio, arranjávamos motivos, vários, para
falar mal do chefe, que, ao contrário, se portava como bom moço, sendo
intitulado não como chefe, pela maioria, mas “líder” – essas coisas de
modernidade coaching; de bajulação. Lise e eu somos ferinas, quando
queremos – e quase sempre queremos. Uma hora ou outra poderia sair faísca; de
dois polos altamente inflamáveis – sabíamos disso e dosávamos as distâncias. No
fechamento do mês de setembro, atulhada de boletos para pagar e transferências
para fazer, Lise apareceu na sala, demandando a minha presença, urgente. Não
explicou nada, de início, insistindo para que a seguisse; e eu confiei
cegamente. Ademais, no fim das contas, eu era subordinada a ela; mas uma
subordinação de fachada, porque sabíamos os podres uma da outra. Lise, imediata
do chefe, tinha acesso livre ao quarto escuro; um troço sinistro, abandonado.
Era tratado como mero “quarto de entulhos”. Despejavam os cacarecos
ultrapassados, máquinas do tempo da internet discada; coisas absolutamente
descartáveis e desnecessárias. O chefe, sendo um homem de vanguarda, não
admitia um computador com mais de três anos de uso. Quando dava um problema,
ele não mandava ajeitar; e, sim, jogar no “entulho”, para, futuramente, fazer
dinheiro com a carcaça. Todos os pensamentos da águia eram direcionados ao
dinheiro. Pois bem, era horário de almoço; eu não tinha ido almoçar, para
adiantar o serviço, e fui envolvida nessa situação. Assim que entramos no
quarto, o que me tomou foi o arrepio; parecia uma cena de filme de terror. Não
havia luz. Andávamos com a lanterna do celular de Lise, afastando as teias de
aranha. Tudo isso era proposital; você vai entender. Lise batia na parede, oca,
para mostrar que seria mais que um simples quarto. Num ponto específico, atrás
de um quadro imenso, destroçado pelo cupim; desses de museu, com a pintura, de
corpo inteiro, de um rei do período medieval, notamos uma falta de uniformidade
com o restante; dava a perceber ser uma portinhola maciça. Tentávamos, a todo
custo, encontrar um trinco, um botão ou alavanca que abrisse aquela estrutura. Coisa
de filme: Indiana Jones, com a produção de Steven Spielberg. Sabida – um cão
farejador quando quer –, Lise encontrou um botão camuflado no peito do rei da
citada pintura. Ela apertava e não acionava nada. Já frustradas, e eu
desencorajando a investida, pois o período de almoço estava prestes a encerrar,
pedi que abandonássemos a missão enquanto era tempo; que outro dia viríamos
concluir o serviço – quando, na minha mente, pensava que eu teria mais o que
fazer. Lise, então, apertou ainda com mais força, quase a ponto de arrebentar o
fundo de madeira. O portal se abriu. Caramba, ficamos embasbacadas. Não saiu
nenhuma luz ou raio, como no filme O templo da perdição. Lise fez toda a
encenação, direcionou a lanterna do celular para o fundo do buraco, movendo-se
como uma arqueóloga experimentada, que acabara de encontrar a múmia de
Tutancâmon. “Pode ter algum alarme aqui. É preciso assegurar que não há nenhum
sensor”. “Ô, Lise, não viaja! Vamos logo com isso!”. “Xiiiiii!”, ela me
repreendeu, com a cara de fera que faz quando está com raiva; com o indicador
vertical, cortando a linha de seus lábios. Senti-me como no assalto ao Banco
Central. Quis abortar a operação. Ela determinou, recorrendo ao poder de
superiora, zangada: “Você veio, então vamos terminar isso juntas!”. Não havia
nenhum sensor aparente. Lise passava as mãos nas paredes do buraco. Uma barata
correu por sua mão, usando-a como ponte para sair do esconderijo. Ela, sendo impassível
como uma bandida, não reagiu. Deu-me ânsia de vômito. Fiquei engulhando por uns
dois minutos, e ela tapando a minha boca, atrapalhando a respiração. Sentei-me
no chão, já não aguentava mais. O ambiente, também, causara uma sensação que
nunca mais havia sentido: claustrofobia. Lise estava puta da vida comigo,
queria me xingar e me bater, dava para ver em sua feição diabólica, possuída.
Se ela pudesse, ou se eu perturbasse os seus planos mais um tiquinho, me
mataria. Nas minhas contas, estávamos ali, suadas, abafadas, ridículas, por uns
dez minutos; mais dez, todos estariam em seus postos. Pedi que, pelo amor de
Deus, agilizasse; que eu estava passando mal. “Maldita a hora que eu resolvi te
trazer! Merda!”. Lise vasculhou, enfiando a cabeça no buraco. A decepção: ela
achou uns trecos antigos, enferrujados e sem utilidade: relógio de bolso
quebrado; uma minivitrola, com um tubo ou um cone virado para cima; uma dúzia
de broches, que mais pareciam de latão, com umas pedras vagabundas; e, para
finalizar, um par de sapatos velhos, mais ainda lustrosos, com um ligeiro salto
e uma fivela à frente. Lise não gosta de velharia. Fechou a porta da toca com
tanta raiva que faltou pouco para desmoronar o recinto. Talvez a pobrezinha
esperasse encontrar dinheiro vivo ou barras de ouro. Tive pena de sua desilusão.
Ela não é acostumada a perder. Os dias passavam, arrastados, pesados. O
trabalho infernal triplicou, e o santo do pau oco do chefe dizia, como um gravador
emperrado, que o nosso trabalho era uma porcaria; que mais dia, menos dia, nos
colocaria no olho da rua se não resolvêssemos “isso”. De fato, nos colocou,
para dar lugar a uma novinha, bonitinha e ordinária, sem carreira, recém-saída
da faculdade; umazinha para fazer o serviço das duas, ou para fazer “algo
mais”, que desconfiávamos ser a razão da despedida. Lise achava muito estranho anos
e anos na empresa degringolarem tão rápido, depois daquele episódio. Passamos,
as duas, dois meses desempregadas. Por um milagre, Lise me ligou, primeiro, para
falar que haviam surgido duas vagas na Ambev, e queria que eu fosse com ela –
decerto não me achava uma concorrente à altura; para fazer uma média, pagar de
amiguinha, com a intenção de se reaproximar. Mas a bomba estava por vir: no
bendito almoço, ela me mostrou a capa de um jornal, que havia comprado para
guardar de recordação. Eis que a imagem do supremo líder despontava, também, no
televisor do restaurante: “Empresário é preso por suspeita de chefiar uma rede
de contrabando de artigos de personalidades históricas, como os sapatos do rei
decapitado, Luís XVI, e broches com pedras preciosas, da rainha Maria Antonieta,
que teve a mesma sorte do marido na Revolução Francesa. Os pertences, que
estavam perdidos há séculos, ficarão provisoriamente sob os cuidados da
Pinacoteca, em São Paulo”. Lise não sabia se chorava ou se ria. “Mulher, eu
peguei nos sapatos do rei. Tu tem noção? Se eu tivesse pegado um brochezinho
daquele, estaria rica!”. “Ainda bem que tu não se sujou, né, amiga? Já pensou
tu metida nesse bolo?”. E sorrimos, comendo bife à parmegiana, em homenagem ao
antigo chefinho; era o seu prato preferido.
2 comentários:
Muito bom!Texto envolvente com uma boa dose de ironia.
Muito bom!Texto envolvente com uma boa dose de ironia.
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