Estava uma noite serena e morna. Pequenos diamantes
refulgiam sobre o puro veludo negro da noite, guardando a descomunal lua de
prata, que pairava sobre a paisagem. O ambiente ideal para meditar ou sonhar,
naquele terraço do hotel, com vista sobre a cidade de luzes douradas na margem
contrária do rio. A perturbar tão idílico ambiente, estava o som de fundo de
vozes, risos e copos a tilintar. O homem de estatura média, cabelo escuro e
barba aparada, segurando o copo com o líquido dourado e reluzente, preferia o
silêncio da noite estival, à animação que decorria nas suas costas.
André, assim se chamava, ponderara muito, antes de aceitar
comparecer àquela festa, especialmente aquela. Perdera o hábito de frequentar
tais convívios e transformara-se num autêntico eremita. Desperdiçara mais de três
anos, numa embriaguez permanente, enquanto escrevia crónicas com língua
viperina, para as revistas “cor-de-rosa”. Meses de recuperação alcoólica,
disseram-lhe que não poderia viver daquela maneira e afastou-se do gin e da
sociedade. Em vão recebia convites de conhecidos, para que fosse a este ou
aquele convívio, na esperança de serem contemplados, para o bem ou para o mal, num
dos artigos que repentinamente deixaram de jorrar da sua caneta. Desaparecera
do mundo, refugiara-se no seu apartamento e num contrato com uma revista, a
escrever o que lhe pediam. Na verdade, fora mais do que um problema alcoólico a
afastá-lo da sociedade; havia aquela mulher, que não via há uns anos e que lhe
deixara um vazio imenso, a mesma cuja eventual presença o fizera aceitar este
convite. Sofia, era a mulher que nunca conseguiu esquecer, talvez por ser a
única que não se deixou prender na sua teia depressiva e resolveu seguir em
frente, antes que ele a deixasse.
Apreciou o copo quase vazio, sabendo perfeitamente que não
deveria ter aceitado aquela bebida e ponderou deitar o resto no canteiro ali ao
lado. Decidiu-se por não desperdiçar aquela fuga à sua disciplina e esgotou o
conteúdo do copo, inclinando despudoradamente a cabeça para trás, para não
perder nem uma gota. Tendo consciência dos efeitos do álcool no seu já
destreinado organismo, olhou em volta em busca de um local onde pousar o
recipiente esgotado e foi quando a viu.
Atravessando uma das enormes portas que davam acesso ao
terraço e olhando em volta, como se procurasse alguém, ali estava Sofia; trazia
um vestido preto sem alças que contornava os peitos e acentuava a sua cintura
fina, continuando numa saia que abria num gracioso leque terminada por um
rendilhado preto sobre o joelho. Nos pés, calçava sapatos também negros, onde
reluziam alguns brilhantes em volta do tornozelo. Mas era o seu cabelo
acobreado escuro, natural, solto e luxuriante, envolvendo o rosto de linhas
firmes e nariz aquilino, que faziam com que não se conseguisse tirar os olhos
dela. O seu sorriso, enquanto cumprimentava os conhecidos, continuava
deslumbrante e toda ela irradiava luz, ofuscando a própria iluminação
artificial.
Quando ela o viu, foi como se uma nuvem tapasse o sol e o
resplandecente sorriso transformou o belo rosto com um ar preocupado e triste.
Ele apercebeu-se que estava sem respirar e soltou um suspiro involuntário,
enquanto o copo tremeu ligeiramente na sua mão.
— Olá, André. — A voz quente envolveu-o, assim que ela se
aproximou em passos calculados para que a sua passagem fosse notada. — Há muito
que não te via… estás mais magro. Fica-te bem!
— Em compensação, tu estás cada vez mais bonita. Parabéns.
Continuas a atrair os olhos de toda a gente… — ele aproximou o rosto do dela
para um cândido beijo, enquanto sussurrava — … homens e mulheres.
— Vejo que continuas a ser um comentador acutilante. — Ela
sorriu, sem corresponder ao beijo, mas sem se afastar. — Fico feliz por
aceitares o meu convite. Vai ser agora que me vais brindar com umas linhas num
dos teus artigos de gosto duvidoso, naquela revista execrável?
— A revista execrável paga-me o ordenado, sem ter de
arriscar a vida nas guerras deste mundo, como fazia antes… fazíamos. — André
encostou-se à balaustrada da varanda e cruzou os braços sobre o peito, sem
soltar o copo vazio. — De resto, não fui o único a procurar uma “atividade”
mais segura e rentável, deves recordar-te porque me tornei um “vampiro dos
costumes”.
— “Touché.” — Reconheceu Sofia com um sorriso maroto. —
Penso que estás a definir o meu casamento com um rico industrial da hotelaria
como uma “atividade segura e rentável”. Já sei que ninguém consegue esgrimir
palavras contigo sem sofrer uma estocada mortal.
— Ambos trocamos um jornalismo de ação… por atividades
diferentes. — Ele retribuiu o sorriso e a ironia. — Por mim, teve de ser mesmo
assim; os industriais da hotelaria nunca quiseram nada comigo, apenas os
editores de revistas execráveis… pelo menos também não tenho de dormir com
nenhum. Mas descansa — continuou — nunca escreveria nada sobre ti… pelo menos
de mal e o tipo de matéria que eventualmente sairia, não interessa aos meus
patrões.
— Fico feliz que assim seja. — Ela pousou suavemente uma mão
sobre a dele, num gesto de uma cumplicidade antiga, que o fez estremecer. —
Espero que essa trégua abranja o meu futuro marido.
— Não há aqui nenhuma trégua, para isso teria de haver uma
guerra, não te parece? — André endireitou-se enquanto tentava, sem sucesso,
agarrar a mão dela que recuava.
— Oh, mas há, meu querido. — Ela cruzou candidamente as mãos
sobre o ventre. — Uma guerra fria! Há quase dez anos que tens os misseis
apontados na minha direção, à espera de uma “causam belli”.
— Não é verdade. Nunca estive zangado contigo… — defendeu-se
ele. — … apenas desiludido. Aproveitares a minha reportagem para surgires de
repente com o fim da tua carreira ao lado desse… palhaço.
— Eu?!? Aproveitei a tua reportagem? — Ela soltou uma
gargalhada nervosa e cínica. — Depois de te pedir encarecidamente que não
fosses… estiveste fora um ano!
— Foi complicado… — Ele acalmou-se perturbado pelas
recordações. — Fui sequestrado e…
— Bem sei! — Sofia atirou com irritação. — Segui cada
notícia, contactei todos os que conhecia, chateei, persegui um secretário de
estado, para que se interessassem pelo teu problema. — Perante o olhar de
espanto dele, ela fez uma careta cínica. — Achas que te libertaram pelos teus
lindos olhos? Ou pelo teu talento jornalístico?
— Não sabia…
— Bem sei que não! Pedi que não dissessem. — Ela volveu o
olhar ao chão. — Também não deves saber que abortei três meses após a tua
partida…
— Meu Deus! — O espanto de André dizia tudo. — Que
aconteceu? O nosso filho, estavas grávida?
— Quando te foste também ainda não sabia. Não sei o que foi,
alguma incompatibilidade, deficiência, stress, sei lá. Agora também não
interessa, não quero falar disso. — Sofia falou rapidamente enquanto atirava
tudo para trás, com um gesto e uma expressão triste. — Isto não está a correr
nada como eu esperava. Queria que ficássemos amigos, tenho saudades das nossas
conversas…
— Só das conversas? — Ele baixou a cabeça para lhe poder ver
os olhos verdes que lhe devolveram o olhar nervosamente. — Nunca deixei de te
amar…
— Meu querido. — Sofia ergueu a cabeça, endireitou os ombros
e deu um passo atrás. — O que foi não volta a ser! Estou casada e feliz há dez
anos. Gosto muito de ti e gostava muito que fossemos amigos, mas só isso.
— Que esperavas? Que festejasse contigo? — André
enfureceu-se. — Regresso de uma das piores experiências da minha vida para
encontrar a mulher com que amava casada com o playboy dos hotéis!
— E que esperavas tu? — Por uns instantes os olhos dela faiscaram
de raiva. — Foste embora na altura em que mais precisava de ti, porque a tua
carreira, ou o teu desejo de morte, era mais forte! Preferias a adrenalina de arriscar
a vida nas reportagens dos conflitos, do que a alternativa de uma existência
medíocre de classe média… ao meu lado. — O rosto suavizou-se e acariciou-lhe ternamente
a face. — Acabaste por deixar tudo na mesma, para te tornares ainda mais amargo,
do que já eras em tempos de paz.
— Vem comigo! — Pediu André tentando segurar a mão gelada que
lhe acariciava a face. — Deixa tudo isto, as luzes, a riqueza desse homem que
não vale nada. Sabes que o negócio dos hotéis é a capa para a venda de armas
nos conflitos, por isso nos encontrávamos os três, muitas vezes, durante o
nosso trabalho.
— Também nós e tu mais do que eu, vivemos desses mesmos
conflitos. — Ela puxou a mão suavemente. — Por mim já tinha demasiado tempo,
suja de terra nos campos de batalha, ou nos hotéis bombardeados, sempre à
espera que o meu quarto fosso próximo atingido e pedia que, quando o fosse,
atingisse em cheio e não me deixasse estropiada ou a sofrer. — Sofia pousou os
olhos no chão. — Chama-me fútil, mas estou numa vida cómoda rodeada pelo luxo e
tudo o mais que quiser. Não vou retroceder.
André fitou a mulher com estranheza, como se a visse pela
primeira vez. Aquela não era a sua antiga companheira, aquela que partilhou o
perigo com ele, em mais de uma dezena de conflitos por esse mundo fora. Que tivera
nos seus braços, escondidos entre os escombros, durante os bombardeamentos. Não
era a mulher que tirara fotos fantásticas que ilustraram os seus relatórios
apaixonantes e que fizeram as páginas principais de revistas e jornais. Afinal,
também ele já não era o repórter de guerra, mas sim um frívolo cronista, mais ocupado
com quem dorme com quem na sociedade. Já não contava histórias de morte e paixão
pela liberdade, mas sim os podres da existência humana em tempos de paz, vivida
às custas de outras guerras.
— Este senhor está a incomodar-te, querida? — Ao lado dela
apareceu um homem, ligeiramente mais baixo, praticamente careca, mas
impecavelmente vestido com um fato de corte moderno. — Queres que chame os
seguranças? — Exibiu um sorriso de superioridade, enquanto abraçava a mulher
pela cintura. — Como estás, André? Quem é a “vítima” do teu desprezo pela
sociedade esta noite? Espero que não a minha doce Sofia.
— Já a descansei a ela e descanso-te a ti também, meu caro
Ricardo. — Respondeu o visado erguendo o copo vazio à guisa de um brinde. —
Façamos desta noite, uma noite de paz e… tréguas.
— Ah, a guerra fria! — O outro fingiu um olhar sonhador e
divertido. — Em tempos de paz, prepara-te para a guerra! Há que armazenar mais
e mais armas!
— Graças a isso, há
quem enriqueça mais e mais, sobre armazéns de armas, ou pilhas de cadáveres! —
Atirou André amargamente, fazendo com que Sofia arregalasse os olhos num aviso.
— Acutilância! — Divertido, Ricardo piscou um olho e apontou
o indicador ao outro, numa expressão marota. — Em todos os conflitos, ganha quem
tiver mais recursos! É uma lei da vida! — Apertou mais e agitou significativamente
a cinta de Sofia. — Julguei que tivesses aprendido alguma coisa nos anos de
guerra que ambos vivemos. — O sorriso desapareceu rapidamente enquanto olhava para
a mulher. — Temos de ir, querida, o presidente da câmara está ansioso por te
conhecer. — Depois tornou para André. — Aprecia o melhor que puderes desta
festa. Sei que o tema não te agrada, mas enfim, quando não podemos caçar,
comemos do que nos dão!
Sofia deixou que Ricardo a puxasse suavemente, deitando
apenas um último olhar contristado ao antigo companheiro.
André ficou ali, encostado na balaustrada, vendo os dois
afastarem-se, dividido entre o olhar triste de Sofia e o sorriso triunfante de
Ricardo. Com ela, ia-se o sol embora de vez e repousava sobre os seus ombros
uma noite eterna e fria, que teria de passar sem a mulher que amava.
— Aproveitemos o que nos dão, enquanto se dissipa o brilho de Sofia! — Concluiu para si próprio, afastando-se da parede e caminhando lentamente para o salão. — Preciso de uma boa bebida, para tirar este sabor amargo da garganta.
0 comentários:
Postar um comentário