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sábado, 3 de abril de 2021

OS SAMAMBAIAS CHORONAS – TRILOGIA III


 

                 Algumas pessoas me perguntam sobre o meu processo de criação. Não sei bem o que dizer, mas digo que três fatores são essenciais: método, disciplina e solidão. Geralmente elas concordam com os dois primeiros itens e me questionam, sempre, quanto ao terceiro. Digo-lhes que este é o décimo terceiro livro que escrevo ou do qual participo e que, com exceção dos livros de poesia, que são a maioria e que é algo inexplicável, os demais livros, em prosa, seguem este protocolo.

            É claro que depois do Fausto ter entrado em minha vida e ter roubado as minhas histórias ou parte delas, alguma coisa mudou, mas a essência permanece a mesma. Eu diria que sou um escritor de feriados prolongados, quando a casa está vazia e você pode então se exercitar no método, na disciplina e na solidão que já então é intrínseca.

          No meu caso, especificamente, conta o fato de eu e minha família estarmos deslocados no espaço geográfico, bem como os meus vizinhos mais próximos, que também não são daqui. Não tenho parentes e pouquíssimos amigos na cidade onde moro. Nos feriados, cada um caça o seu rumo e o meu rumo como é distante ou inexistente, permaneço aqui entre ovelhas de sonhos que cultivo em silêncio. Não que eu quisesse, sempre, poder ir para a minha cidade natal. Até porque, presentemente, eu não gostaria de morar lá. Mas ela é sempre uma referência, um espaço a se conquistar, como aquele antigo amor que você sabe que nunca será seu e que, não obstante nunca deixa de te des/nortear a vida.

            Outro dia, num show de rock que eu e minha banda imaginária fizemos em nossa cidade, alguém da platéia gritou que éramos o que de melhor havia e eu retruquei, do palco onde eu estava então, que agradecia os seus elogios superlativos, mas que na verdade eu não passava de um bêbado. E nisto consiste o meu método e a minha disciplina: nos feriados prolongados, quando todos viajam, tranco-me em casa, não sem antes me abastecer de cervejas, carnes, cachaças e filmes pornográficos. A literatura e a música precisam ser reais, mas o sexo pode ser virtual. Durante esses três ou quatro dias geralmente eu não ponho o focinho para fora da caverna. Tranco tudo e é preferível que o telefone e a campainha não toquem, como de resto não tocam mesmo, para que eu mantenha a minha disciplina solitária. Como escrever, por exemplo, um romance com a televisão ligada e com conversas e pessoas circulando pela casa? O recolhimento, mais do que o silêncio, é fundamental, assim como é fundamental o egoísmo no ato de escrever e que cada coisa esteja no seu devido lugar.

              Então, entre uma cerveja e outra eu escrevo. Entre uma cachaça e outra eu escrevo. Entre um orgasmo e outro eu escrevo. Entre um alimento e outro eu escrevo. Sem ter varrido a casa, sem ter lavado a louça, sem ter tirado a poeira dos móveis, sem ter lavado a roupa suja, sem ter desentupido a pia da cozinha, sem ter passado a roupa da semana anterior, sem ter lavado os banheiros, sem ter passado pano molhado no piso, sem ter cozinhado o feijão, sem ter vivido o que minimamente se entende por vida, sem ter visto ou falado com ninguém sequer ao telefone. Preso ao abismo da tela do computador, desvinculado do mundo e alheio a tudo o que seja externo ao desespero e às lembranças e à memória de um mundo afinal inexistente.

No entanto é fundamental que se tenha pássaros cantando e vasos de flores e peixes no aquário e montanhas verdes que se estendam através da paisagem e que essas montanhas sejam circundadas de árvores. E que os ônibus passem na estrada ao longe, recortada pelo ângulo da janela e que não haja ruídos nem vozes de gente. É claro que a solidão, a despeito do que se produz ou do que se deixe de produzir, cobra o seu alto preço e a morte é um medo permanente e o sono escasso e a fome negligenciada, assim como o corpo e a alma igualmente relegados a um plano secundário e tantos outros inconvenientes, de tal modo que sorrio sempre e com alívio quando afinal ouço a chave no cadeado do portão e Rita de C. sobe pela escada da rotina afinal restabelecida. Mais uma vez fui salvo de mim mesmo.

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