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quinta-feira, 8 de abril de 2021

Festa de Anos

 

O cheiro a comida deliciosa permeia a casa, a mesa nunca esteve tão bonita e os meus convidados irão começar a chegar daqui a nada. Ou seja, vem aí mais uma festa de anos.

Nem sei mesmo porque me dou ao trabalho. Ano após ano as mesmas caras, os mesmos brindes pouco entusiásticos, a mesma solidão no meio de tanta gente.

Nem sequer são meus amigos. Esses, não os tenho, não dos verdadeiros. Ou familiares, próximos ou afastados. Que também não tenho. Então porque é que continuo a convidar um monte de meros conhecidos para me ajudarem a festejar o meu aniversário?

Todos os anos juro que será a última vez. Mas à medida que se aproxima o dia fatídico, aí estou eu mais uma vez, a decorar a casa, a comprar champanhe do bom — embora ninguém o aprecie a sério — a escolher pratos especiais que serão demolidos sem sequer serem saboreados.

E todos os anos o resultado é o mesmo. Fingem todos que se estão a divertir imenso, comem e bebem até mais não poderem, sujam a minha sempre tão arrumada casinha e eu acabo a noite sozinha no meu quarto, a chorar silenciosamente contra o travesseiro.

Não era assim tão mau quando eu era mais nova. Tolice minha, mas esperava sempre um milagre quando o relógio batia as 11 da noite, a hora em que nasci. Não um milagre específico, note-se, um qualquer serviria, mesmo um bem pequeno. Como ser transformada numa pessoa linda. Ou ser magicamente transportada a um dos sítios que sempre quis visitar sem nunca o ter feito. Bastava-me que houvesse uma mudança qualquer.

Acho que nunca ultrapassei a fase infantil do cavaleiro andante montado num belo alazão branco. Sempre à espera que algo ou alguém me viesse salvar da vida comezinha de professora primária numa pequenina vila rural.

Mas com quase 57 anos, já devia ter mais juízo. Depois de tantas festas de anos dececionantes, de conhecimentos indiferentes que nunca desabrocharam em amizades, das muitas zombarias sorridentes, que magoam apesar de serem aparentemente uma brincadeira, depois de tudo isso, devia realmente ter mais juízo.

Já nem sequer dou aulas, uns problemas cardíacos forçaram-me a uma reforma antecipada há dois anos. Mas talvez seja melhor assim. No início de cada ano escolar ali estava eu, cheia de esperança e expectativas. Mas os meus alunos acabavam por ser sempre as mesmas crianças normais, sem interesse pela leitura ou por aprenderem algo que não tivesse aplicação prática e imediata.

Começarão todos a chegar daqui a uma meia hora. Porque me é mais difícil do que de costume entrar num simulacro de disposição para os receber?

A Joana vai ser a primeira a chegar, um pouco antes da hora marcada. Fá-lo sempre. Assim, pode examinar minuciosamente os outros convidados à medida que chegam, guardando no cofre-forte que é a sua mente todos os detalhes de vestuário e não só para críticas posteriores.

E para tomar conta de tudo. Juro todos os anos não deixar que isso aconteça. Mas mal me entra porta dentro, as minhas boas intenções desaparecem janela fora e fico reduzida a uma fúria impotente enquanto observo aquela mulher detestável a agir como se fosse a casa DELA e a festa DELA.

Sendo assim, porquê convidá-la? O hábito, suponho. Veio a todas as minhas festas de anos desde a nossa adolescência. Sim, éramos vizinhas e odiamo-nos cordialmente desde o liceu, é quase uma relação amorosa, somos basicamente “aminimigas”.

Os outros convidados pouco melhores são. São quase todos antigos colegas de ensino com os respetivos parceiros, os que ainda os têm, claro, labutámos e envelhecemos juntos e fingimos, por isso, que somos amigos. Alguns não me desagradam totalmente, mas outros... Mas estiveram sempre presentes na minha vida, fazem parte do cenário, digamos.

A minha vida é realmente uma colcha de retalhos feita de hábitos, todos muito pegadinhos uns aos outros, sem nenhum espaço vago entre eles. Penso até às vezes que se retirasse um deles, o todo desmanchar-se-ia deixando-me sem nada: sem passado, sem presente, sem identidade.

Nunca me fiz tantas perguntas. Deve ser um sinal de que estou a envelhecer. Mas a questão é esta, farei 57 anos esta noite e o que fiz com esses anos todos? É-me até difícil recordar algum deles em particular. Fundiram-se todos numa massa cinzenta uniforme, sem ângulos, sem características distintivas. Uma mera esfera lisa, monótona, sem princípio e sem fim.

Ocorre-me até às vezes que quando eu morrer a esfera não se desintegrará. Sentirão a minha falta? Ou deixarei aqui uma sombra cinzenta de mim mesma que dará a mesma festa de anos ano após ano, por toda a eternidade? Quem notará a diferença? Haverá sequer uma diferença?

Mas houve uma altura, há muitos, muitos anos, em que tinha sonhos, esperanças, desejos. Costumava dizer, para o ano irei a Paris. Ou a Roma. Ou escreverei um livro. Ou FAREI alguma coisa.

Há quanto tempo já nem penso assim? Vinte anos? Vinte e cinco? Nem eu mesma sei. Esses sonhos e esperanças afogaram-se, simplesmente, na tal esfera cinzenta, como tudo o mais.

Oito horas. A Joana vai chegar a qualquer momento.

Sim! Aí vem ela. Reconheço-lhe os passos rápidos no caminho de gravilha. Quase consigo ouvir o seu demasiado animado, “Muitos mais, querida!” Di-lo há já tanto tempo!

Não sei porquê, não consigo enfrentar a ideia de ouvir isso mais uma vez. Ou de a ver. Ou a nenhum dos outros, com a sua falsa boa disposição de festa e os seus falsos votos de felicidade.

Mas já o faço há tanto tempo, que mal tem mais uma vez? Vendo bem as coisas, decidi dar a festa apesar de saber perfeitamente como iria ser. E convidei-os a todos.

Ou terá sido a minha sombra? Importa?

A campainha! Quase consigo ver a minha sombra das outras festas a dirigir-se lentamente para a porta com o seu sorrisinho tão animado, pronta para receber os convidados.

Que faço então no quintal? E quando é que peguei no casaco e carteira? Ou será esta a sombra das esperanças há muito perdidas que tenta escapar-se enquanto eu estou dentro de casa abrir a porta à Joana?

Não, esta sou EU! Vou finalmente fugir a tudo. Eles que pensem o que quiserem, que enlouqueci, que me esqueci da festa, o que quiserem. Não fará diferença. Este ano festejarei os meus anos noutro sítio.

Apanharei simplesmente o primeiro comboio que saia desta parvónia.

Luísa Lopes

Glass Stock photos by Vecteezy


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