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segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

O soldado e a toupeira

Volmar Camargo Junior

 

 

 

Há muito tempo aconteceu uma guerra. E, nesse mesmo tempo, aconteceu uma história de amor como nenhuma outra.

 

Um jovem soldado foi aprisionado no campo de batalha. Enquanto seus captores decidiam o que fazer com ele, prenderam-no em um buraco no chão, tampado com uma grade feita de galhos e folhas. Os próprios companheiros do jovem encontraram o acampamento dos inimigos. Foi uma batalha cruel e sangrenta, onde ninguém sobreviveu. Por causa disso, nem seus aliados nem seus adversários sabiam que ele estava dentro daquele buraco. Dias se passaram sem que o soldado visse alguma movimentação. Gritou por socorro muitas vezes, e ninguém o acudiu. Quando já estava ficando louco, ocorreu algo totalmente inusitado.

 

O soldado acordou de um sono estranho. Diante dele, havia três criaturas miúdas, muito semelhantes a toupeiras. Em uma das paredes havia uma cavidade rente ao chão. As três toupeiras encararam-no e caminharam para aquela abertura. O estranho era que andavam em pé, como gente. O soldado não teve dúvidas e, engatinhando, acompanhou-as. Arrastou-se por um tempo enorme naquele túnel, ouvindo sempre os passinhos leves e os grunhidos das toupeiras que mais parecia uma conversa. Chegou a uma superfície de pedra, onde havia uma luz verde, ampla o suficiente para ficar em pé. Não viu mais as toupeiras, mas ouvindo o som de seus passos, seguiu na mesma direção. Intrigado com a situação inusitada, pensou que aquilo não poderia ser mais que um sonho, ou um delírio febril, ou então, que a morte finalmente o havia vencido e estava caminhando rumo ao inferno. Só não sabia explicar para si mesmo por que tudo parecia tão real.

 

Ao longo do corredor, percebeu que em certos pontos a luz era mais intensa que em outros. Notou também que a luz vinha de baixo para cima. Não custou muito a perceber minúsculos globos luminosos no chão. Abaixou-se, e com o indicador e o polegar, tomou um deles na mão. Riu-se quando viu que eram, na verdade, frutas pequeníssimas que tinham em seu interior uma luz como a dos vaga-lumes. O soldado foi-as coletando. Quando encheu a palma de uma das mãos, era como se carregasse consigo uma lanterna. Os passos e a conversinha das toupeiras cessaram. O corredor atrás de si tornou-se profundamente escuro, e à sua frente, prosseguia iluminado a espaços regulares pelos misteriosos frutinhos. Quando chegou ao final do túnel, estava diante de uma imensa gruta, inundada por um lago subterrâneo. Ao redor de toda a borda do lago, desenhando todo o seu contorno, havia focos de luz maiores e mais vivos. Eram pequenas árvores, carregadas de frutinhas luminosas, brilhando não apenas em tom verde, mas também em todos os tons de amarelo e vermelho. Certamente, se era o inferno para onde o haviam trazido, pelo menos, era agradável aos olhos.

 

Seu deslumbramento foi quebrado quando ouviu o característico som de alguém nadando. A água estava agitada no meio do lago, mas não viu ninguém. Ficou atento, até temeroso, largando no chão as frutinhas luminosas que coletara, ocultando-se no corredor escuro. Assim, escondido, viu do fundo do lado emergir uma mulher. Seus cabelos eram avermelhados. A brancura de sua pele, iluminada pelas árvores ao redor do lago, tornaram sua nudez quase etérea, fazendo com que o soldado imaginasse estar vendo um anjo. Sorriu para ele deixando claro que o havia visto.

 

De onde estava, a misteriosa mulher o chamou, pulando outra vez no lago. Inebriado pela estranheza daquele momento o soldado despiu-se e mergulhou também. Nadou em direção à mulher que, rindo, fugia dele. Pouco a pouco, deixou-o chegar mais perto. Quando conseguiu alcançá-la, segurou-a pelo braço com firmeza. Sorriram. Então, dentro do lago, debaixo da terra, seus corpos se uniram. E assim foi por um longo tempo. Quando sentiam fome, comiam das frutinhas colhidas do pé. E eram tão saborosas que algumas vezes, ela precisava envolver o rapaz com seus encantos para fazê-lo parar de devorá-las. Como era impossível saber se era dia ou noite, o rapaz esqueceu-se do tempo. Tudo o que lhe interessava era o amor. Foi então que soube que não estava morto, e aquele lugar, posto não ser o céu, definitivamente, não era o inferno.

 

Depois do enlace, o moço conversava com sua amante. Ela, que apenas ria, era como uma muda, ou uma estrangeira que não compreendia seu companheiro, mas fazia o possível para ser-lhe simpática. Ele não se importava, e até achava-a ainda mais atraente em sua ignorância. Contou a ela seu nome, o nome de sua família, algumas verdades e algumas mentiras sobre si e suas batalhas gloriosas.

 

O tempo passou, e o jovem militar sentiu que era a hora de partir. Contudo, desejou levar consigo sua amante, casar-se com ela e viver em uma casa confortável como um herói de guerra. Arquitetou seu plano, agasalhou-a com sua camisa, encheu os bolsos das calças com frutinhas e, tomando a amante pela mão, pôs-se no caminho de volta pelo túnel pelo qual chegara até ali. Então, outra vez surpreendendo-o, à entrada do corredor estavam as três toupeiras. Folgou em ver suas salvadoras, que o haviam tirado da prisão e conduzido até sua amada. Com um gesto agradecido, cumprimentou-as e deu um passo adiante. A mulher, entretanto, soltou-se de sua mão, ficando onde estava. Sem entender, o soldado chamou-a, estranhando o semblante sério, um pouco triste, muito diferente do sorriso franco de antes. Quando fez menção de voltar para tomar a mulher, as toupeiras interpuseram-se entre os dois. Ouviu os grunhidos dos estranhos animaizinhos bípedes. Desta vez, porém, pareciam agressivos contra ele. Irritou-se, praguejou e quis avançar. Notou que seus próprios pés não se moviam do solo. Agarradas às suas botinas havia mais um sem número de toupeiras. Espantado, olhou ao redor, e, como se houvessem surgido das próprias pedras, uma multidão delas, idênticas às três primeiras, cercavam-no e o mantinham afastado da mulher ruiva. Ela encarava-o com olhos estranhamente vagos, enquanto as toupeiras subiam-lhe pelas pernas. Em vão, tentou lutar contra elas. Em instantes o derrubaram e imobilizaram, como se houvessem fundido sua carne com a rocha.

 

A mulher aproximou-se. Agachou-se rente ao solo, e, uma última vez, sorriu. Nesse momento, a multidão de animaizinhos começou a se abrir, todos abaixando suas cabeças. Do meio deles, surgiu uma toupeira muito velha, carregando nas minúsculas mãos uma guirlanda de frutinhas iluminadas e raízes. Com uma reverência, entregou a guirlanda à amante do soldado. Ao pô-la no topo do fogaréu de seus cabelos, com voz doce e melodiosa a mulher proferiu claramente:

 

Gaea sum!

 

No mesmo instante, seu corpo começou a diminuir de tamanho, o belo rosto começou a mudar e a brancura de sua pele foi ficando vermelha como suas madeixas, até ficar idêntica às outras toupeiras. À diferença que, à cabeça, trazia o halo iluminado de sua guirlanda.

 

Caminhando do modo desengonçado que lhes era característico, a mulher transformada em rainha das toupeiras chegou-se ao ouvido do soldado.

 

— Ficai. Sede vós como eu e meus filhos. Sede vós o meu rei.

 

Jamais havia amado ninguém como amou a mulher, que era também toupeira. Não era um grande soldado, posto que fora capturado. E em hipótese alguma poderia tornar-se um rei entre os homens. Por outro lado, amava a luz do sol, a liberdade e o país que defendia em uma guerra quando, desafortunadamente, foi preso. Mesmo que não fosse um grande homem, sabia que nunca haveria de ser uma toupeira. Mesmo uma que andasse sobre duas patas, falasse e comesse frutinhas mágicas. Estava diante de um grande dilema.

 

Com grande esforço, perguntou à rainha das toupeiras.

 

— Vossa Majestade abandonaria vosso reino para ser minha esposa no mundo de cima?

 

A rainha entendeu a intenção daquela pergunta. Com suas mãozinhas tocou o rosto do amante, que por muito pouco não se tornou seu consorte. Cochichou para ele algo que nenhum de seus súditos ouviu:

 

— Não, mas adoraria tornar a ter convosco. Não vos esqueçais de meu nome. Dizei-o, e minha escolta trar-vos-á até mim.

 

O jovem adormeceu. Ao acordar, havia retornado à cela improvisada onde os inimigos de seu país o haviam jogado. Outros soldados, seus compatriotas, encontraram sua prisão e o libertaram. Não havia toupeiras bípedes, nem buracos na terra, nem frutinhas luminosas. Não havia sequer a certeza de que toda a sua aventura não tivesse sido mais que um sonho. Entretanto, havia a lembrança de uma linda mulher ruiva. E também, em sua mente ficou som de uma palavra mágica, que só pronunciaria quando a saudade fosse, para ele, um fardo mais pesado que a vida.

 

E não há uma só pessoa no mundo que não queira ter uma palavra mágica para minorar sua saudade.


 

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