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sábado, 13 de dezembro de 2008

As bases da criação

GÉNESE

 

Por muito que disfarçassem, consideravam-no um monstro e (pior que isso) um incapaz. A atenção, a deferência recebida não era mais que uma capa grosseira para a convicção mal disfarçada, enraizada na mente de todos: aquele seria sem dúvida um ser inferior, um erro da natureza.

Qualquer medição das concretizações nos testes revelava a verdade nua e crua: não conseguia estar à altura dos companheiros. O corpo frágil na morfologia peculiar – constituída pelo tronco, cabeça e pares de membros (inferiores e superiores) - nunca lho permitiria.

Os progenitores foram convocados várias vezes para reuniões de esclarecimento e a expectativa da escola era que com a educação e acompanhamento apropriados, o ser (era assim que o tratavam) acabaria por mudar. Adaptar-se ia e assumiria gradualmente comportamentos mais consentâneos, com padrões sociais não patológicos. No entanto, passaram-se anos e o SER foi crescendo sem que tivesse ganho tais características. Era sonhador, um idealista por vezes taciturno e sempre, sempre incompreendido.  

Quando fez dezoito anos, os pais intercederam e mediante conhecimentos e favores devidos, moveram as influências necessárias. A acção de amigos de amigos bem colocados conseguiu-lhe o emprego onde serviria como funcionário público no quinto andar de um edifício decrépito: o número treze da Rua das Gáveas, mesmo junto a alguns dos restaurantes de Fado mais apreciados.


A DESCOBERTA DE SI PRÓPRIO

 

O primeiro dia foi pacífico e ficou a conhecer a malta lá da repartição

“Isto até é fácil. Não é a trabalheira que parece, pá” trauteava o Antunes - alentejano magricelas e de bigode quase tão negro como o do Vitorino.

“O pior é quando o chefe Pereira dá nos azeites. Mas a gente finge que é moco, que não ouve, damos-lhe um desconto…” continuava o bom do Vitorino, preocupado em instruir o neófito nas lides da casa.

E ele concordava, a tudo anuía silenciosamente. Ora apresentava o polegar erguido em sinal de assentimento ora fazia os gestos curtos mas veniais com a cabeça.

 Meio-dia em ponto, levaram-no a almoçar à tasca do Silva e como era quarta-feira (dia de cozido) foram-se a excessos. Vieram de lá bem atestados, com vontade para fazer a sesta e muito, mas muito avessos ao trabalho!

As coisas não corriam mal até aquele dia em que saiu para jantar fora, beber umas quantas e ouvir “blues”. Na sala escura do bar, mesas baixas e cufos vermelhos acomodavam confortavelmente os vários clientes e ao canto, guitarra, bateria e sintetizador esforçavam-se para acompanhar os berros da vocalista – uma miudinha de cabelo oxigenado decididamente pouco madura para fazer de Betty Smith

There ain't nothing I can do, or nothing I can say
That folks don't criticize me
 

E a gaja continuava…

 
But I'm goin' to, do just as I want to anyway
And don't care if they all despise me

 

Pensou como seria bom que ela se calasse por uns instantes. Talvez por brincadeira, puxou do bloco de notas e desenhou-a muda, com uma fita grossa a tapar a boca e bem amarrada a uma das colunas de modo a não poder dançar. O pandemónio que aconteceu depois - viu como por magia serem executados os seus desejos, a realidade moldando-se aos seus desenhos - deu-lhe certezas quanto ao desígnio que lhe cabia. Soube então que todas as tentativas para o demover seriam inúteis.


CONFLITOS

 

O cabelo esbranquiçou completamente e deixou crescer a barba, uma barba branca e farta, de pelos fininhos, que lhe tapava quase totalmente o pescoço. Desinteressou-se completamente dos temas de conversa habituais. Se lhe falavam do Benfica, retorquia “Terra”. Se lhe falavam de mulheres, mostrava enfado e respondia “Génese”. Se o interpelavam sobre política então fazia cara feia e proferia enfaticamente “Paz e Bem”. As coisas pioraram quando trouxe a bola para o escritório e o desgraçado do Antunes caiu na asneira de dizer

“É pá. Deixa cá ver essa bola para eu dar um chuto como o Cristiano Ronaldo”

Virou-se para o outro fuzilando-o com o olhar. Disse qualquer coisa esquisita de que já não me lembro bem. Só sei que o pobre do alentejano virou-se e, rabo entre as pernas, enfiou-se atrás da secretária. Nessa tarde nem daria mais um pio.

No dia seguinte apareceu túnica e sandálias, passando o tempo todo (manhã toda) a rabiscar e a distribuir os papéis com desenhos esquisitos. Disse que tinha descoberto algo de novo, que sabia fazer uma coisa até ali nunca vista e à qual deu o nome “Criar”.

“E como é que funciona isso de criar?” perguntou o Benevides, cheio de manha, com esperteza beirã.

“É simples” respondeu. “Imagina uma coisa que não existe. Pois bem… a gente vem e faz com que exista. Depois dizemos à coisa que fomos nós que fizemos isso – que a criámos”  

O outro não parecia lá muito convencido e argumentou enfaticamente “É pá. Deixa-te disso que a gente aqui é funcionário e não tem de fazer existir o que não existe. Temos é que fazer existir o que existe, entendes? Passar carimbo…”

E arrematou, matando definitivamente a conversa “Além disso, o que é que ganhas com isso de criar? Serve para alguma coisa? “


                                                               O INTERNAMENTO

 

Iam-lhe aturando as madurezas e suportando todas as incongruências, manias e obsessões até que chegou o dia em que foi o atingido o limite, caiu a gota de água que fez transbordar repentinamente o copo. Parece que uma das criações mais exóticas – o pequeno casal de “quase nudistas” - foi-se à maçã raineta que o chefe Pereira reservava para comer à hora do lanche. O desgraçado, quando lhe deu a fome, procurou, procurou e nada…

Nessa mesma tarde, chamaram a equipa constituída pelo psiquiatra e dois paramédicos. O Deus (João de Deus) ainda gritou pela bola que nem um desalmado. Pela Jóia. A sua jóia. Que sem ela – foco de todo o seu carinho e atenção - a vida de nada valia. Mas em vão. Não lhe ligaram nenhuma.

Amarraram-no e foi levado na ambulância velha azul e branca cujo cilindro de luz às voltas, sem descanso, identificava gravidade do caso e urgência para o transporte.

Objecto amado, a jóia, a bola azul da qual nunca se separava, foi colocada em cima do tampo da mesa, sem qualquer cuidado, mesmo ao lado do pisa-papéis. E ali ficaria, esquecida e só, por vários dias. Até que chegou o substituto.

O substituto era um gajo da Buraca, baixo e atarracado, adepto fanático do FCPê. Sopinha de massa, metia “xis” em tudo o que pegava: “Xou xim! Xim Xenhor, já xtá o que me mandou. Ah… ora essa, não xateia nada, a xente xtá cá é pra ixo…”. O Benevides quando queria entrar com ele, perguntava-lhe sempre como é que se escrevia chato, ser era com Xis ou cê e agá.

Quando o gajo viu a jóia, a bola, disse logo

“Atão vomexês tinham aqui o esférico e não me diziam nada?”

E, ainda falando, pegou na coisa com as duas mãos e deu-lhe um chuto forte. Mesmo forte…


DO DESTINO DA JÓIA

 

A pequena bola azul foi aumentando gradualmente de velocidade e, em aceleração contínua, veria passar veloz a Proxima Centauri. Pouco depois chegaria ao sistema planetário, a esse sistema que chamamos “solar” onde ocuparia posição vogando em elipse imaginária (a terceira). Frustrados que estavam por falta de oportunidade (má sorte o casal ter comido a fruta) os planos de criação, sobraram apenas as bases, sementes rudes, imperceptíveis. E sendo assim, restava à bola permanecer bailando em torno do astro rei e esperar muito tempo - quase uma eternidade. Porque enquanto a criação é rápida e normalmente consiste em acto decidido e espontâneo, evoluir é bem mais complexo e exige decididamente muito mais tempo.

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