Do caroço de uma hora
(a essência das Horas)
do caroço de uma hora
extraí a substância vítrea
oleosa
fugaz como a vontade
etérea como a sensatez
em nenhum recipiente
pude contê-la a contento
escapava sempre um tanto
às vezes muito
quase sempre dobrava de tamanho
e assim, aos poucos
às gotas
às partículas
preencheu o espaço
tão meu conhecido
era sedutora, envolvente
a bruma que nascia
pois era bruma
era um vapor invisível
que fez sumir as paredes
a paisagem da janela
os hábitos convenientes
e os meus pés
sim, por dias
se ainda lembrava o que eram
fiquei sem vê-los
deixei-me entregue
à essência do caroço das horas
inalei, comi, bebi
despi-me
e assim, despido
cobri-me inteiro com ela
não era dor
era antes um frio
das pontas dos cabelos até a boca do estômago
enredou-me
dentro e fora de mim vivia aquilo
impossível conter
e mesmo quando do fundo da garganta
nasceu o último murmúrio
a coisa cristalizou-se
virou gelo
rocha
diamante
vidro
era o vidro em mim
o vidro das horas
- o vidro das raízes do tempo
de toda árvore vítrea que é o tempo
da seiva vítrea
sangue do que não se vê –
era o vidro em mim
não mais nas horas
não mais preenchendo os vãos
entre as partículas da poeira
do tecido das estrelas
era o vidro em mim
deixou de ser essência
primordial ou quintessencial
era em mim
era eu
e
como é próprio das coisas
nascidas ou tiradas
da árvore que dá os frutos do tempo
o vidro que tinha a mim cristalizado
sumiu
voltaram as roupas
as paredes, as janelas
a paisagem
os sapatos
da essência das horas
restou só
uma gota
escorreu-me pela testa até a ponta do nariz
intempestiva
decidida
livre
lançou-se no espaço
num mergulho que só eu percebi
até o choque derradeiro contra o piso
saí
fechei as janelas, tranquei as portas
segui como pude
vivo como consigo
ainda lá está, intocado
o piso onde caiu a última gota
da substância vítrea
oleosa
extraída do caroço de uma hora
tinha a esperança que
onde a gota caiu
pudesse brotar outra árvore
com um tempo diferente
quem sabe misturado
a um tanto da poeira
dessa poeira que sou eu
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