Joaquim Bispo
Luís tomou a decisão. Inabalável:
«No próximo ano é que é. Começo logo no dia 1. Não fumo mais. Ou bem que tenho vontade própria ou não. Estou farto de que me chamem a atenção para não fumar aqui, nem ali, nem em lado nenhum. Sinto-me discriminado, excluído, insultado. E os que já fumaram são os mais fundamentalistas. Não sei que raio de mecanismo psicológico é que os afecta. Será porque antes se consideravam perseguidos como eu me sinto agora? Será que eu também vou passar a maçar os outros por estarem a fumar num lugar onde, eventualmente, não se deve fumar?»
«Há pessoas que são torcidas e maldosas. Lembras-te, Luís, quando estavas a jantar sozinho no balcão corrido daquele snack-bar? E aquela velha que entrou – tica, tica, tica, tica – naquele passinho miudinho? Tinha as mesas quase todas vazias. E ao balcão só estavas tu e mais um casal. Pois a malvada velha atravessou o estabelecimento todo e veio sentar-se ao teu lado. E apenas se sentou, virou-se para ti, lembras-te?, e vai de dizer que ali não se podia fumar, e que não tinha que estar a levar com o fumo do teu cigarro, e frito e cozido. Não há paciência!
Este ano tem de ser Luís! Custe o que custar. Eu sei que é difícil, sei-o bem. Há três anos que andas nisto a tentar fumar pouco e não consegues. Fizeste enormes progressos, reconheço, mas falta o rabo que é o mais difícil de esfolar. Começaste por vinte minutos. É pouquíssimo. Mas, antes de tentares fumar pouco, havia situações em que apagavas um e acendias outro. E, se estavas muito concentrado ao computador, chegavas a acender um, com outro ainda a arder no cinzeiro. Durante uns segundos meditavas nisso. Mas adiavas uma decisão que iria mexer contigo.
Há uns cinco anos, chegaste a estar três meses sem fumar. Lembras-te como de repente voltaste a sentir os sabores da comida e da bebida – intensos – e os cheiros, tantos e tão ricos, e de que já te tinhas esquecido? E te apercebeste de como cheiravam as tuas roupas? Já para não falar da centena de euros que de repente te sobravam e que orgulhosamente gastaste em mimos para ti, que bem merecias! Mas, depois, as contrariedades da vida… És muito sensível à tristeza e à frustração. É nessa altura que precisas de um cigarro. Precisar mesmo. Há pessoas – já conversaste com muita gente sobre este assunto – cujos momentos fatais são aqueles em que se sentem bem, aconchegados no calor do grupo de amigos. Beberam um café, a conversa está boa… Para culminar – um cigarro. E então se meter álcool… Quem pode aguentar um long drink num ambiente descontraído, rindo com os amigos, sem puxar por um cigarro?
Começaste por vinte minutos. Punhas o telemóvel para tocar de vinte em vinte minutos. Era fácil. A cada semana aumentavas cinco minutos. Em dois meses chegaste a intervalos de uma hora. Aí, já custava. Mas foste forte e disciplinado. Às vezes, parecia que nunca mais passava o tempo. Sacavas amiúde do telemóvel para consultar as horas. Finalmente, chegava o momento de fumar. E relaxar. E andaste com este ritmo uns dois anos. Já só fumavas menos de um maço por dia. Já era melhor. Mas ainda tinhas expectoração negra de manhã. E catarro. E as pontas dos dedos amarelas. E ainda sentias que te cansavas mais do que o devido, se tinhas que subir umas escadas mais depressa. Começaste a sentir menos respeito por ti próprio. Que raio, não teres força de vontade para fumar ainda menos! Então, deste a arrancada final – pensavas tu. Voltaste a aumentar o intervalo. Em cada semana acrescentavas um quarto de hora. Em pouco tempo chegaste às três horas de intervalo. Voltaste a sentir-te orgulhoso e auto-confiante. Já só fumavas uns seis cigarros por dia. O pior era o fim do dia. Era difícil ires deitar-te sem fumar um último cigarro. E não ias esperar que chegasse a hora. Quebravas ali, excepcionalmente, o esquema. Fumavas e relaxavas, e ficavas um pouco a saborear o momento. E, de repente, tinha passado mais uma hora… e não era fácil adormecer sem fumar um último cigarro… E neste ciclo vicioso fumavas três ou quatro.
Mas agora cansaste-te. Agora não vais vacilar. Arquitectaste o teu plano, meticulosamente, sem dizer nada a ninguém. Estás decidido. A 31 de Dezembro fumas o último cigarro. E nunca mais lhe vais pegar. Sabes bem que nunca estarás curado. Serás sempre um convalescente, um viciado em fase de não-consumo. Sabes que, se deres uma «passa», podes voltar a fumar tanto ou mais que fumavas antes. Sabes que o teu corpo, as tuas células em carência, vão inventar todo o tipo de argumentação para te levarem de novo ao consumo. Não vais aceitar nenhuma justificação. Não serias tu a falar mas a carência. Agora, estás bem alerta. Pensaste em tudo já há muito tempo. Tomaste a decisão. Inabalável.»
Luís está decidido, mas será que consegue superar a última prova?
Mal sabe ele que, na noite de Natal, o pai lhe vai oferecer uma cigarreira em aço gravado, distinta; a mãe, uma boquilha equipada com um filtro especial para reduzir a nicotina; a irmã, um cinzeiro em porcelana; e a namorada lhe vai fazer a surpresa daquele isqueiro Ronson em ouro que uma vez tinha cobiçado!
2 comentários:
Ajudem-me! Isto é o quê?: um conto, uma memória, um ensaio, o quê?
É uma história verídica, Joaquim?
Porque se for, pode se enquadrar em dois gêneros, crônica ou memória.
Agora, se for a ficcionalização dum evento real, então é conto.
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