(Maristela S. Deves)
Mariazinha quase bateu palmas quando Oma Guerta entrou na sala carregando a bandeja de biscoitos. Esse era o melhor momento das visitas semanais à casa da avó: a hora do lanche. Tudo o que a Oma fazia era delicioso, cucas, doces, bolos, biscoitos dos mais variados tipos. Gulosa, pegou logo três dos biscoitos, lambuzando-se toda de confeitos coloridos.
- Kind, Kind - riu a avó com seu forte sotaque alemão, acariciando a cabeça da netinha de nove anos enquanto ela atacava a bandeja outra vez.
Cabelos grisalhos presos num coque, olhos azuis brilhantes por trás das lentes dos óculos de aros redondos, Oma Guerta ajeitou o xale de crochê sobre os ombros antes de retornar à cozinha para cuidar de outra fornada de guloseimas.
Na sala, enquanto aguardava com alegria antecipada o bolo ou doce que viria a seguir, Mariazinha olhou ao redor para distrair-se enquanto esperava. A parede cheia de quadros sempre a encantara, e ficava imaginando como teria sido bom conhecer os bisavós e tataravós que a olhavam dos retratos. Ao lado deles, santos, muitos santos, ajudavam a fechar praticamente cada centímetro da parede. A única exceção era o canto onde estava o relógio, o velho relógio de pêndulo que tiquetaqueava as horas com uma solenidade que fazia jus à sua idade...
Pouco depois, terminava a segunda fatia de cuca recheada quando o pêndulo bateu pausadamente. Bléin. Bléin. Bléin. Bléin. Quatro horas. Logo, logo teria de ir para casa. Mas, antes, ia ver se a avó já tinha pronto o pote de bolo que sempre levava para comer no caminho... Lambendo os farelos que tinham ficado nos dedos para não desperdiçar nada daquela delícia, levantou-se e, quase tão solene quanto o velho relógio, encaminhou-se para a cozinha.
Abriu a porta devagarzinho, sem fazer ruído. A avó, como ela esperava, estava parada em frente ao balcão, uma bacia nas mãos, misturando os ingredientes para mais uma fornada de biscoitos. O que ela não esperava ver era Kerb, o gato de longos pelos brancos da Oma, sentado sobre as duas patas traseiras e recitando calmamente em alemão os ingredientes que estavam no livro de receitas que ele segurava com as outras duas patinhas.
- Zwei glass Mel... Ein glass Zucker... Drei…
Olhos arregalados, Mariazinha deixou escapar uma exclamação. A avó virou-se, enquanto Kerb lhe lançava um olhar de quem estava chateado pela interrupção.
- Oma... Vovó, ele... ele fala! _ conseguiu dizer.
- É claro que eu falo! - indignou-se o gato, largando o livro no chão para poder colocar as patinhas na cintura. - E por que não iria falar?
Sorrindo, Oma Guerta meteu-se na conversa.
- Kinder, Kinder... Maria, Kerb, não quero discussões aqui...
Ainda pensando que tinha adormecido no sofá da sala e que estava sonhando, Mariazinha beliscou-se. Ai. Doeu... Mas então...
- Isso é de verdade, mesmo?
Antes que Kerb respondesse outra vez, a avó tomou a menina no colo.
- Mein Kind, Komm hier... Senta aqui no meu colo um pouquinho, a Oma vai te contar um segredo...
E, na meia hora seguinte - enquanto um impaciente Kerb andava de um lado para o outro, sentindo-se ignorado -, a avó Guerta revelou à neta o porquê de seus doces serem sempre tão deliciosos. Tudo começava com o livro de receitas mágico, trazido por suas antepassadas quando elas imigraram para o Brasil. Passado sempre de mãe para filha, ou de avó para neta, ele trazia instruções mágicas para o preparo de qualquer prato, fazendo-os mais saborosos do que os feitos pelos mais renomados mestre-cucas.
- Mas aqui... mas aqui não tem nada escrito - espantou-se a menina, folheando o caderninho que a avó pegara do chão e deixara sobre a mesa.
- É aí que entra o Kerb... - disse, chamando com um gesto o gato, que alegrou-se ao ser mais uma vez lembrado.
- Eu, como meu pai e meu avô e o pai e o avô do meu avô antes de mim, sou o único que consegue ver a escrita invisível que tem no livro mágico. Tenho a missão de ler essas receitas para minha ama, e, também, de dizer as palavras que completam a mágica - concluiu o felino, todo importante.
Os olhos de Mariazinha arregalaram-se ainda mais.
- Palavras mágicas?!
- Sim, palavras mágicas - acrescentou o gato, outra vez impaciente. Será que aquela menina não sabia nada de nada? - As palavras mágicas que vão fazer os biscoitos, as cucas e o que mais sua avó fizer serem os mais deliciosos já vistos.
A pequena olhou do gato para a avó, como que querendo confirmar a informação. Oma Guerta meneou a cabeça.
- E quais são as palavras mágicas? - quis saber Mariazinha.
Condescendente, Kerb dirigiu-se até o forno de barro, ergueu-se outra vez nas patinhas traseiras e, com uma colher de madeira, bateu duas vezes na portinha:
- Wunderbaressen gegessen! - exclamou, também duas vezes. Depois, com um floreio, chamou Mariazinha para abrir o forno.
A menina abriu, cada vez mais maravilhada, e o aroma dos biscoitos recém-assados encheu a cozinha. Sem se conter, bateu palmas de contentamento. A avó chegou ao seu lado e, pegando-a outra vez no colo, disse:
- Mädchen, agora que você já sabe como a Oma faz tanta coisa boa, eu tenho uma pergunta muito importante para lhe fazer. Você quer aprender a fazer esses biscoitos mágicos, para ser a seguidora da tradição da família?
Agora, sim, Mariazinha tinha certeza de que estava sonhando. Ela, fazendo aqueles biscoitos? Como poderia...?
- E você vai ter o seu próprio gatinho - completou a avó.
Levantando-se e levando a menina pela mão, Oma Guerta voltou com ela para a sala. Ali, dirigiu-se para o velho relógio de pêndulo, sob o qual ficavam duas grandes portas de madeira que Mariazinha nunca tinha visto serem abertas. Pois a avó abriu-as e entrou, chamando Kerb e a neta para acompanhá-la. Era outra surpresa. Embora parecesse de fora um pequeno armário, lá dentro o espaço era gigantesco. Prateleiras e mais prateleiras de ingredientes, potes, cestas, até um jardinzinho tinha num canto. E uma casinha...
- Kätzie, venha cá... - chamou Kerb, parando à porta da casinha, e um maravilhoso e peludo gatinho apareceu.
- O que foi, papai? - perguntou a bolinha de pelos.
- Esta é sua ama, Mariazinha. A partir de agora, ela vai vir aqui todo dia para cozinhar conosco, e você vai ajudá-la - declarou o gato, solene.
Kätzie abriu um sorriso tímido para Mariazinha, que, encantada, pegou-o no colo. Precisava pensar: assumir a cozinha da avó era uma grande responsabilidade, mas aquele gatinho era tão lindo...
- Pense até amanhã, mein Kind - disse a avó, adivinhando-lhe as dúvidas. - Volte de manhã, para me dizer o que decidiu. Por enquanto, leve Kätzie com você.
No caminho para casa e durante toda a noite Mariazinha não conseguia pensar noutra coisa que na proposta da avó. Adorava seus biscoitos e suas cucas, e pensar que um dia poderia fazê-los... mas tinha medo de acordar no outro dia e ver que estivera certa, que tudo era mesmo um sonho. Adormeceu abraçada no gatinho, e sonhou com ele recitando as receitas ao seu lado...
Acordou com as lambidas de Kätzie.
- Bom dia, ama - disse o gatinho sorridente.
Todas as hesitações de lado, Mariazinha pulou o café da manhã. Com Kätzie nos braços, correu para a casa da avó. Chegando no jardim, estacou e olhou a casa. Parecia diferente hoje, embora ao mesmo tempo também fosse a mesma de sempre. Toda vez que entrava ali gostava de imaginar que estava entrando em um lugar especial, um mundo mágico. Agora, ia entrar na casa sabendo que isso era verdade, e que a partir de agora ela também faria parte daquela mágica. Bem que a mãe sempre dizia que os mais velhos têm muito a ensinar aos mais jovens...
(uma homenagem à Vovó Leduína, à tia Guerta, às outras tias e à minha mãe, com seus biscoitos mais do que maravilhosos... saudades deles neste Natal...)
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