Verdade
seja dita também Viviane tinha as suas fantasias, e malgrado fossem estas, como
afirmava ao classificar os vértices da libido, “anormalidades normais”,
figurava na mesma categoria dos homens e mulheres obcecados por seu defeito.
Afinal, e apesar de ser bela e torneada, virtuosa de mente e alma, com a
possante musculatura dos atletas, era manca, e ao saber-se cobiçada e foco das
simpatias sexuais alheias a menina desconsiderava a possibilidade de uma
afeição comum e sadia e enquadrava seus pretendentes em três categorias: ou
seria ela objeto de curiosidade, dir-se-ia a fugaz consumação de um instinto;
ou seria um objeto de conquista, porventura a mais exótica delas; ou, por
último, seria um objeto de fetiche. Quanto às duas primeiras, e não obstante a
frivolidade intrínseca às paixões de ocasião, aceitava-as com evidente prazer,
também Viviane a gozar as irrelevâncias do amor. Porém, quando em alguém
reconhecia uma atração alusiva à terceira categoria, entristecia-se, sentia-se
vil e desonrada, provocadora de crimes contra o espírito, mais lhe doendo o
fato de apenas ser estimada como pretendente pelos e pelas fetichistas, estes
demônios da sutileza – e por tanto resistir às maliciosas investidas de seus
admiradores a moça afeiçoara-se à solidão, aos homens e mulheres censurou até,
num meio-dia de ventos fortes, ao contemplar a insurreição de galhos e folhas,
o remoinho de nuvens no céu, admitir padecer, também ela, de uma tara.
Só os
obsessivos sabem viver, concluiu.
Mulher
de muitas fantasias, e de fantasias consumadas, fora levada a assumir seu
fetiche e abdicar de preconceitos e intolerâncias após conhecer Gérson. Neste
momento de admissão, a balançar na rede com a brisa e os repelões do destino,
desdobrou-se à semelhança das víboras e, nua das pernas, sentou-se. Acima dela
o semblante do rapaz figurava nas nuvens. Era um jovem alto e barbado, cujos
olhos verdes-esmeralda nasciam como se dos pelos faciais, os próprios pelos
faciais como se nascendo dos corporais, e dele se diria, e ela comprovaria, que
possuía fios escuros e espessos na testa e na palma das mãos. Em uma confraternização
da empresa foram apresentados, e ao escrutar a desabotoada gola da camisa, no
qual restos de comida avultavam de entre o pelame, apaixonou-se por sua flora
peitoral. Pois já relacionara-se com numerosos homens, nenhum deles como
Gérson, e já se entregara a homens peludos, nenhum deles como Gérson.
Encantou-a, também, o tanto a descobrir em si através de outrem, e ao flertar e
conversar agradeceu aos signos zodiacais por não ser ele tímido e introvertido,
ou então derreter-se-ia em seus braços de urso.
Venceram
a noite, os dois, dançando, e quanto mais Viviane tocava-o, quanto mais
embrenhava-se nos bosques da tentação, mais manca mostrava-se. Gérson, por sua
vez, amparava-a com desejo e renúncia e desdenhava o vicioso olhar dos curiosos
e intrometidos, ou fazia carrancas para rechaçar as caretas, e ao sentir a
exaustão de Viviane, o tremor das pernas e o desleixo dos braços, conduziu-a
para fora da pista. Sentados, encarou-a e inclinou-se, segurou as mãos da
menina, confessou,
Meu
fetiche são as mancas.
Viviane
estremeceu.
Todavia
não experimentou a repulsa costumeiramente destinada a quem lhe desejava por
sua maior imperfeição, e ao distinguir em si este comportamento atribuiu-se,
entre suspiros e segundos, o dever de enfrentar os preconceitos do coração.
Alegando cansaço, chamou um táxi e despediu-se de Gérson, e meneando até o
veículo ela requebrava-se em passos falsos e raciocínios estapafúrdios,
tropeçava nos passionais receios da vontade, e foi assim que, no meio-dia
seguinte, deitada na rede e vítima do firmamento, esmiuçou sonhos e motivos,
renunciou às suas objeções e a Gérson decidiu se entregar.
Era ele
novo na firma, e encontrando-se os dois diariamente, unindo espaços e
silêncios, descobriu um Gérson acanhado, apaixonado por flores, botânica e
animais, com graças de sonhador, e de tanto sentir-se atraída e, por
conseguinte, de tanto coxear, Viviane voltou a usar bengala. Malgrado o caráter
retraído de Gegê (como apelidou-o) a excitasse, era também um impeditivo, pois
o rapaz não atuava em favor do futuro, a favor da carne, e testemunhando-o
combater suas inibições, ou os reflexos involuntários do corpo, a eventual
gagueira, e consciente das próprias obrigações no jogo do amor, Viviane
provocava-o com alusões à mítica libertinagem dos deficientes. As mancas não
têm restrições na cama ou à cama, falava ela, e ria; as mancam são fanáticas
quando amam, cantarolava ela, e sorria. Impelido por estes e outros incentivos,
renunciando aos grilhões do ego, Gérson convidou-a para sair.
E fê-lo
num repelão. Viviane deixava o toalete quando o bom moço encurralou-a no
corredor, e apesar de mostrar-se seguro ela percebeu sua respiração
pronunciada, a rispidez dos monossílabos, e fingindo surpresa, afinal o destino
haveria de os combinar, aceitou o convite. Ao retornar para o gabinete,
esbordoando-se em mesas e cadeiras e abatendo luminárias, desfilando com
trejeitos de monstro, experimentava uma volúpia arrebatadora, e já na
sexta-feira à noite, bem-vestida e sensual, os lábios tingidos de vermelho, ela
agradeceu a sua deformidade.
Ou então
jamais iria me sentir assim.
No
encontro nem bem começaram a beber, a afastarem-se do chamado eu, e
beijaram-se, e disfarçando seu tumulto carnal, a contínua e constante
trepidação do quadril, afigurando-se desconjuntada mesmo em repouso, sussurrou
Viviane para dentro de Gérson,
Eu te
quero.
Através
da barba cintilava o rubor da pele, e sem mais falar ele segurou-a pela mão e
levou-a embora, carregou-a até os domínios do lençol, onde, abraçados e
conjugados em beijos, romperam os pés da cama ao eternizar sua paixão. Saciada
ela e saciada ele, Viviane sentou na beira do leito, retomou a disciplina dos
sentidos, levantou-se, e ao dar o primeiro passo caminhou sem mancar.
Além
disso, e para além disso, não tornou a fazê-lo: o amor a curara.
Duas
semanas depois, Gérson, descontente, a dispensava, pois ele queria um manco
amor.
Blog do Autor: https://palpebrascomoondas.wordpress.com/
Twitter: https://twitter.com/asd3copas
0 comentários:
Postar um comentário