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terça-feira, 22 de março de 2022

Um Manco Amor

 



Verdade seja dita também Viviane tinha as suas fantasias, e malgrado fossem estas, como afirmava ao classificar os vértices da libido, “anormalidades normais”, figurava na mesma categoria dos homens e mulheres obcecados por seu defeito. Afinal, e apesar de ser bela e torneada, virtuosa de mente e alma, com a possante musculatura dos atletas, era manca, e ao saber-se cobiçada e foco das simpatias sexuais alheias a menina desconsiderava a possibilidade de uma afeição comum e sadia e enquadrava seus pretendentes em três categorias: ou seria ela objeto de curiosidade, dir-se-ia a fugaz consumação de um instinto; ou seria um objeto de conquista, porventura a mais exótica delas; ou, por último, seria um objeto de fetiche. Quanto às duas primeiras, e não obstante a frivolidade intrínseca às paixões de ocasião, aceitava-as com evidente prazer, também Viviane a gozar as irrelevâncias do amor. Porém, quando em alguém reconhecia uma atração alusiva à terceira categoria, entristecia-se, sentia-se vil e desonrada, provocadora de crimes contra o espírito, mais lhe doendo o fato de apenas ser estimada como pretendente pelos e pelas fetichistas, estes demônios da sutileza – e por tanto resistir às maliciosas investidas de seus admiradores a moça afeiçoara-se à solidão, aos homens e mulheres censurou até, num meio-dia de ventos fortes, ao contemplar a insurreição de galhos e folhas, o remoinho de nuvens no céu, admitir padecer, também ela, de uma tara.

Só os obsessivos sabem viver, concluiu.

Mulher de muitas fantasias, e de fantasias consumadas, fora levada a assumir seu fetiche e abdicar de preconceitos e intolerâncias após conhecer Gérson. Neste momento de admissão, a balançar na rede com a brisa e os repelões do destino, desdobrou-se à semelhança das víboras e, nua das pernas, sentou-se. Acima dela o semblante do rapaz figurava nas nuvens. Era um jovem alto e barbado, cujos olhos verdes-esmeralda nasciam como se dos pelos faciais, os próprios pelos faciais como se nascendo dos corporais, e dele se diria, e ela comprovaria, que possuía fios escuros e espessos na testa e na palma das mãos. Em uma confraternização da empresa foram apresentados, e ao escrutar a desabotoada gola da camisa, no qual restos de comida avultavam de entre o pelame, apaixonou-se por sua flora peitoral. Pois já relacionara-se com numerosos homens, nenhum deles como Gérson, e já se entregara a homens peludos, nenhum deles como Gérson. Encantou-a, também, o tanto a descobrir em si através de outrem, e ao flertar e conversar agradeceu aos signos zodiacais por não ser ele tímido e introvertido, ou então derreter-se-ia em seus braços de urso.

Venceram a noite, os dois, dançando, e quanto mais Viviane tocava-o, quanto mais embrenhava-se nos bosques da tentação, mais manca mostrava-se. Gérson, por sua vez, amparava-a com desejo e renúncia e desdenhava o vicioso olhar dos curiosos e intrometidos, ou fazia carrancas para rechaçar as caretas, e ao sentir a exaustão de Viviane, o tremor das pernas e o desleixo dos braços, conduziu-a para fora da pista. Sentados, encarou-a e inclinou-se, segurou as mãos da menina, confessou,

Meu fetiche são as mancas.

Viviane estremeceu.

Todavia não experimentou a repulsa costumeiramente destinada a quem lhe desejava por sua maior imperfeição, e ao distinguir em si este comportamento atribuiu-se, entre suspiros e segundos, o dever de enfrentar os preconceitos do coração. Alegando cansaço, chamou um táxi e despediu-se de Gérson, e meneando até o veículo ela requebrava-se em passos falsos e raciocínios estapafúrdios, tropeçava nos passionais receios da vontade, e foi assim que, no meio-dia seguinte, deitada na rede e vítima do firmamento, esmiuçou sonhos e motivos, renunciou às suas objeções e a Gérson decidiu se entregar.

Era ele novo na firma, e encontrando-se os dois diariamente, unindo espaços e silêncios, descobriu um Gérson acanhado, apaixonado por flores, botânica e animais, com graças de sonhador, e de tanto sentir-se atraída e, por conseguinte, de tanto coxear, Viviane voltou a usar bengala. Malgrado o caráter retraído de Gegê (como apelidou-o) a excitasse, era também um impeditivo, pois o rapaz não atuava em favor do futuro, a favor da carne, e testemunhando-o combater suas inibições, ou os reflexos involuntários do corpo, a eventual gagueira, e consciente das próprias obrigações no jogo do amor, Viviane provocava-o com alusões à mítica libertinagem dos deficientes. As mancas não têm restrições na cama ou à cama, falava ela, e ria; as mancam são fanáticas quando amam, cantarolava ela, e sorria. Impelido por estes e outros incentivos, renunciando aos grilhões do ego, Gérson convidou-a para sair.

E fê-lo num repelão. Viviane deixava o toalete quando o bom moço encurralou-a no corredor, e apesar de mostrar-se seguro ela percebeu sua respiração pronunciada, a rispidez dos monossílabos, e fingindo surpresa, afinal o destino haveria de os combinar, aceitou o convite. Ao retornar para o gabinete, esbordoando-se em mesas e cadeiras e abatendo luminárias, desfilando com trejeitos de monstro, experimentava uma volúpia arrebatadora, e já na sexta-feira à noite, bem-vestida e sensual, os lábios tingidos de vermelho, ela agradeceu a sua deformidade.

Ou então jamais iria me sentir assim.

No encontro nem bem começaram a beber, a afastarem-se do chamado eu, e beijaram-se, e disfarçando seu tumulto carnal, a contínua e constante trepidação do quadril, afigurando-se desconjuntada mesmo em repouso, sussurrou Viviane para dentro de Gérson,

Eu te quero.

Através da barba cintilava o rubor da pele, e sem mais falar ele segurou-a pela mão e levou-a embora, carregou-a até os domínios do lençol, onde, abraçados e conjugados em beijos, romperam os pés da cama ao eternizar sua paixão. Saciada ela e saciada ele, Viviane sentou na beira do leito, retomou a disciplina dos sentidos, levantou-se, e ao dar o primeiro passo caminhou sem mancar.

Além disso, e para além disso, não tornou a fazê-lo: o amor a curara.

Duas semanas depois, Gérson, descontente, a dispensava, pois ele queria um manco amor.


Blog do Autor: https://palpebrascomoondas.wordpress.com/

Twitter: https://twitter.com/asd3copas

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Erik K. Weber
Gaúcho.






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