− Anda logo, moleque! Vá se
jogar na água limpa antes que esse barro todo vire pedra! Avie!
Era
o fraseado de todos os dias. O pai falava por falar, sabia que Rosaldo era
escovado, fazia tudo no seu tempo.
E
ele continuava lá, quieto, imóvel, a lama ressecada recobrindo o corpo feito
casca de árvore. Com o canto das unhas lascadas e imundas, empurrava a crosta
que se formava sobre o joelho. Aquele som craquelado lhe dava prazer. Não era
pelos ouvidos que o percebia, ouvia com o gosto. Gostava de franzir a testa
para sentir o trincar da lama. E não tinha pressa, nenhuma. O dia seria longo,
como sempre, igual a todos.
O corpo enlameado do pai,
reluzindo ao sol, mostrava uma esbelteza que não lhe era própria. As várias
camadas de lama ocultavam o peito esquálido, pobre de carnes. E, quando se
erguia, atolado até a cintura, infalivelmente, trazia na mão um agitado caranguejo.
Era certeiro na cata. Se bem que Rosaldo estava cada vez menos disposto a
observar detalhes. Andava cansado do manguezal. Não mais aguardava as marés
baixarem com o mesmo entusiasmo de antes, acompanhar o pai na cata de
caranguejo tornara-se maçante. Aquele alagadeiro acatingado o agoniava. A
aperreação era visível. Nem mesmo o sabor do cozido, feito com o refugo dos
caranguejos, era o mesmo. Sem gosto, sem graça. Insosso.
Nas noites, era comum Rosaldo
ouvir as lamúrias da mãe e a conversa de sossegamento do pai. Falavam como se a
ordinária cortina de pano que separava os quartos fosse parede de alvenaria. Ali,
tudo era sem segredos.
− Homem, esse menino é fraco
de apego, parece que vive tentado, cheio de ilusão...
− Deixa de cisma, mulher!
Você encasquetou com isso. O menino é sangue bom, gosta de pular de galho em
galho, mas sempre pisa a terra. Um dia ele entra nos eixos. Só precisa da nossa
bênção.
Rosaldo, alma nômade, ouvia
e aparafusava cada palavra. O pai estava certo. A preocupação da mãe e o seu
aspecto consumido não nasceram com a maternidade. Ela era assim, sempre foi.
Entregue, melancólica, sem qualquer propósito. Seguro de seu entendimento, o
menino sentia-se mais livre nas escolhas.
Deixando a peleja com os
caranguejos, Rosaldo enveredou-se no ofício de engraxate. Não foi fácil. A
comunidade era fechada, hierarquia severa. Ocupar uma praça exigia licença do
líder. E ele conseguiu. Até foi capaz de aprender aquele linguajar complicado,
horas e horas de prática. Mas não se alinhou com as engabelações. Não
concordava com as trolagens feitas com os turistas. O preço deveria ser justo,
sem maquinação. Havia certo escárnio no trato, artimanha descabida. Percebendo
que não mudaria o vício do bando, procurou se distanciar, pouco a pouco. E
quando sumiu, definitivamente, morto de medo de perseguição, ficou mocozado até
que a poeira baixasse. Nem olhava para a aflição da mãe.
Na luta pela sobrevivência,
procurou serviço no mercado de peixe. O mar não o iludiu, nunca foi pescador.
Águas revoltas e aqueles barcos que desinteiravam famílias jamais o seduziram. Da
gritaria sem fim do mercado, não demorou muito para chegar nas bancas de jogo do
bicho. Foi trabalhar para Esmeraldino do Beco, que firmou ponto na Rua Fonseca,
perto da Fábrica de Tecidos Bangu. Local de muito movimento e de venda fácil. Esmeraldino era obcecado por futebol, e Rosaldo,
parceiro de muitas horas, virou frequentador assíduo do Moça Bonita. Não
importava que fosse apenas treino; lá estava ele na arquibancada, aos berros.
Isso durou anos. O arrebatamento
se anulou quando, num jogo contra o América, um mandachuva com nome de animal
roedor, descontente com a marcação de pênalti contra o Bangu, invadiu o campo
com um trinta-e-oito em punho, desafiando o juiz da partida. Isso bastou para
distanciar Rosaldo daquela paixão. A verdade do jogo não girava no campo,
rodava no ritmo e vontade das balas do tambor. Cartas marcadas, enganação dos
sentidos.
De repente, as novas
amizades encurtaram o caminho para a escola de samba. O batuque lhe tirava o
sossego. Das pernas e do peito. E, no barracão, sambava feito moleque doido,
sem parada. Tinha ginga nos pés e no corpo, a dança corria nas veias. Recusou o
convite de fazer parte da bateria, não queria mãos presas, alinhamento. No
samba, como na vida, precisava do corpo todo para se entregar, sem amarras. Sem
controle.
Ali cresceu, entre o jogo do
bicho e o samba. Virou homem. Dizer que perdeu o gosto pelo jogo? Não podia
negar, virou meio de vida, só isso. O mandachuva com nome de bicho roedor tomou
conta de tudo. Depois que chegaram os homens de terno, os mecenas, até o
carnaval mudou de tom. Perdeu a inocência, trazia cartas marcadas. Mas o samba,
este não abandonava a alma de Rosaldo. Era paixão moldada.
E nos carnavais encontrava
os seus rabichos. Muitos. Bastava acabar a folia, Rosaldo rolava de um barraco
para outro. Só levava as roupas, nada mais. Assim foi com Ana Flor, Betina,
Flora, Açucena, Celeste, Araci, Ritinha, Violeta e Aurora. Ah, Aurora! Esta foi
mais que rabicho. Foi afeição, benquerência, fervura. Era uma cabrocha manhosa,
de risada franca, barulhenta até no andar, cheia de guéri-guéri. Namoradeira, não escondia os seus enroscos.
Rosaldo achava que seria a companheira da vida, e ficou todo afortunado quando
percebeu que a barriga de Aurora começava a crescer. Seria pai. Escrupulosa,
percebendo o entusiasmo desmedido do companheiro, mesmo com o coração em
frangalhos, Aurora contou a ele que o filho era de Anísio de Quintino, o grande
amor de sua vida.
Derriçado, Rosaldo chorou. E a mãe dele nem precisou ficar aflita, já
havia encontrado a paz. Mas a tristeza não durou muito. Os cafunés de Carlota
eram malandros, começaram nos obséquios, no ombro amigo. E não deu outra. Logo
as roupas de Rosaldo rolaram para outro barraco.
Carlota foi a companheira de
muitos carnavais. No barracão, comandava a montagem das fantasias. De acordo
com o enredo, desenhava os modelos, escolhia os tecidos, os adereços, e, junto
com as costureiras, arranjava trabalho para o ano inteiro. Sambista de
primeira, ela esbanjava sensualidade. De mal, demasiadamente apegada à birita. Era
esse o único motivo de discussão no barraco.
Rosaldo não se conformava com a falta de capricho da companheira,
percebia que a bebida iria cozinhá-la por dentro. Mas ele também sabia que
seria sempre um fraseado sem resultância. Falava por amar.
Envelheceram juntos. Não
fosse a canseira que chegou de mansinho, pulmão fraco, roubando de Carlota o
vigor, impedindo o samba no pé e prostrando-a numa cama, os dois não teriam se
separado. Cozida por dentro, perdeu a batalha. E sabendo do apego que ela
nutria pela vida, Rosaldo tinha certeza de que ela partiu contrariada.
Na solidão, Rosaldo ficou desconsolado,
nem esperava mais o carnaval. Os dias tornaram-se imensos. Nas caminhadas, a
cada dia mais alongadas, extravasava a ansiedade. Corpo cansado chamava o sono,
sono chegando, a noite passava.
E ainda teve Clarice, que
morava do lado e cantava feito passarinho. Nada muito ardente. A idade exigia
mais companhia que saliência, mas Rosaldo também não a dispensava. Os dois se ajustaram,
sob uma condição: sem que qualquer um deles rolasse definitivamente para o
barraco do outro. Assim foi. Por muito
tempo.
Na
plataforma da Central do Brasil, alojado no banco de madeira sustentado por pés
de ferro, Rosaldo observava o burburinho que brotava de todos os lados. Gente
chegando, gente saindo, passos apressados, mãos carregadas de malas, uma
montoeira de corpos que se roçavam sem perceber. Parecia bloco de carnaval sem
samba. Sem graça.
Os trens chegavam e partiam.
Os apitos, o som das frenagens, o cheiro de graxa, o atrito assobiado das rodas
das locomotivas nos trilhos, o calor subindo das ferragens e afugentando os
passageiros negligentes que se juntavam sobre a faixa de segurança, tudo isso
trazia inquietação. Aos olhos de Rosaldo nada escapava. Eram tantos os movimentos
que a cabeça dele também girava, e as lembranças, enxeridas, se embaralhavam. De
súbito, Rosaldo alheou-se, nada de barulho, nada de pessoas. Observou as mãos,
as suas. Encrostadas, pele envelhecida,
e lembrou-se da lama seca do mangue. Chegou até mesmo a levar a unha para
retirar aquilo que parecia escama, feito casca de árvore.
Do nada, levantou e
dirigiu-se ao guichê.
− Moço, eu quero um bilhete.
− Qual é o destino, senhor?
− Até o fim da linha. Ponto
final.
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