A meio da tarde, D. Matilde pediu a Ramiro:
— Prepare o carro e leve-me a Cascais, a casa da Tatá Menezes, se faz favor.
Durante a viagem, a senhora parecia apreensiva, ao contrário de outras ocasiões em que se encontrara com a amiga, e quase não falou. Já nas alamedas do bairro chique da Gandarinha, alterou:
— A Tatá mandou-me agora uma mensagem a dizer que está no bar do Hotel do Cabo. Vamos para lá, está bem?
Perto do hotel, Ramiro ouviu um sinal de chegada de mensagem. Entraram no estacionamento subterrâneo, mas D. Matilde manteve-se sentada. Pelo espelho, Ramiro percebeu alguma perturbação no rosto da patroa. Parecia claramente abatida. Após uns momentos que lhe pareceram longos, quebrou o silêncio.
— Esperamos um pouco, Sra. D. Matilde?
— Sim, deixe-me descansar cinco minutos.
A passageira cerrou os olhos e inclinou a cabeça para trás. Mantinha o telemóvel na mão, como se se tivesse esquecido dele. Por pudor profissional, Ramiro passou a olhar ostensivamente para fora, após perceber um esgar ténue no rosto da patroa. Uns dez minutos depois, D. Matilde abriu a porta do carro:
— Ajude-me a levar a minha nécessaire, Ramiro, se faz favor. Preciso de me estender um pouco.
Tomaram o elevador para o segundo andar e, aí, D. Matilde entregou a Ramiro uma chave eletrónica marcada 202. Da janela larga da suíte avistava-se uma ampla mancha verde de pinhal. Ao fundo, o azul profundo do Atlântico. D. Matilde tirou o elegante bolero de cetim e sentou-se no sofá da zona de convívio.
— Sente-se aqui, Ramiro; faça-me um pouco de companhia! Traga um martini para mim, aí do bar, e uma bebida para si.
O motorista escolheu um maple fronteiro ao sofá, receoso de impor familiaridade não desejada.
— Há quanto tempo está connosco, Ramiro?
— Vai fazer treze anos em outubro, minha senhora. Foi pouco antes de o Sr. Conselheiro ter comprado os vinhos de Bucelas. Eu era motorista do dono daquelas caves, o Dr. Valadares. O Sr. Galhardo encontrou-me lá, fez-me uma festa e convidou-me a trabalhar para os senhores. Já me conhecia de Angola.
— Ah, eu lembro-me de si, muito jovem, ainda com o cabelo todo preto.
— Sim, a idade não perdoa.
— Bons tempos! Naquela altura, eu ainda nem tinha cinquenta, ainda estava bem viçosa. Agora, é o que se vê!
— Ó Sra. D. Matilde, por amor de Deus, a senhora está igual! — protestou Ramiro. — Parece que os anos não passam pela senhora.
— Não diga isso, Ramiro, que eu tenho espelhos. E o espelho mais cruel são os olhos dos outros. Dantes, os homens comiam-me com o olhar; agora… Se soubesse o que me aconteceu hoje!
— A sério, minha senhora. Acho-a muito bonita; sempre achei.
— Nesta idade ganha-se muita insegurança. Gasto fortunas em tratamentos para a pele. Mas, é quase só massagens e cremes. Só fiz um lifting e pus um pouco de silicone no peito. O rosto tem este aspeto, que engana, mas o corpo… nem tudo está bem. — Levantou-se e rodou lentamente à frente de Ramiro. — Acha que ainda sou atraente? Sinceramente!
D. Matilde era alta e um pouco magra. Tinha olhos azulados e pescoço esguio. Usava cabelo louro sempre bem armado, toaletes caras e, quase sempre, delicados perfumes florais. As suas formas mostravam alguma alteração pela idade, que as roupas disfarçavam. As ancas estavam um pouco menos arredondadas e a cintura um pouco mais cheia, mas o rosto apresentava-se bastante liso e os seios eram mantidos no ponto correto. Ramiro lembrava-se dela como uma mulher deslumbrante e ainda era fácil reconhecer o seu aspeto de então.
— Acho-a muito atraente, Sra. D. Matilde. Sempre achei.
— Ah! Ó Ramiro, você é tão cavalheiro. Eu pedi que fosse sincero!
— A sério, minha senhora; acho-a muito… desejável, se me permite.
— O que lhe agrada em mim?
— A elegância, os olhos, o rosto. Os lábios.
— Só?!
Ramiro não respondeu logo.
— Os seios. Sempre gostei dos seus seios. Não leve a mal.
— Sempre?
— Sempre. Às vezes, tinha que fazer um grande esforço para conter o meu olhar de fugir para eles.
D. Matilde manteve-se silenciosa a fitar Ramiro, como que a certificar-se da sua sinceridade. No passado, embora suspeitasse que ele a admirava furtivamente, nunca lhe notara o menor sinal desrespeitoso. O rosto dele denotava uma genuína dedicação pessoal que ultrapassava o mero empenho profissional. Naquele momento, D. Matilde experimentou um sentimento de reconhecimento e um apelo de generosidade.
— Gostava de vê-los, Ramiro?
Este levantou-se surpreendido e visivelmente pouco à vontade:
— Ó minha senhora, de maneira nenhuma; quero dizer, não me atrevo a dizer que sim.
D. Matilde desapertou lentamente os botões da blusa de seda branca sem mangas que trazia e deixou-a solta. Pela abertura generosa, o volume bojudo e sedoso dos seios revelou-se saliente por sobre as copas alvas e delicadas do sutiã. Ramiro, apesar de ser homem de muitas mulheres, não pôde evitar uma aceleração cardíaca que a respiração denunciava. D. Matilde aproximou-se:
— Toque-os! Pode tocá-los.
Ramiro estendeu devagar a mão direita aberta, enchendo-a de seio e copa. Apertou delicadamente, enquanto semicerrava os olhos. D. Matilde rodou o corpo, oferecendo as costas e o fecho da peça íntima. Ramiro abraçou-a por detrás. Os seus braços cruzaram-se no peito de D. Matilde, penetrando por sob a base do sutiã e enchendo ambas as mãos com os frutos desejados. Manteve-se uns momentos a desfrutar a suavidade tensa das carnes, até que D. Matilde abriu o fecho do sutiã e o retirou. Ficou de frente para Ramiro, que parecia aparvalhado de desejo a mirar o par de seios, relativamente pequenos, suspensos do tronco estreito da sua senhora.
— Quer que tire mais alguma coisa, Ramiro? — incitou D. Matilde, inclinando a cabeça em trejeito insinuante.
— Deixe só a gargantilha, minha senhora! — pediu Ramiro, num sussurro rouco.
A azáfama que se seguiu podia presumir-se de sexo louco e desvairado, mas o corpo de Ramiro, que num primeiro momento parecia ir rebentar, mostrava-se preguiçoso e refratário.
— Desculpe, minha senhora, deve ter sido da cerveja do almoço.
— Deixa lá o “minha senhora”, Ramiro, pelo menos agora — sorria-se D. Matilde. — E olha que eu não sou de cristal; podes ser mais bruto, se quiseres.
E dava o exemplo com palmadas rijas no rabo de Ramiro. Este incremento de intimidade pareceu desinibi-lo. Seguiu o conselho e retaliou longamente, o que pareceu restaurar o seu desempenho e resultou em nádegas vermelhas em D. Matilde. Mais tarde, reconheceu para si próprio que grande parte do prazer adveio dos açoites dados. Além da alegria da sua parte solar por fornicar uma mulher ainda bonita, a sua parte escura, até aí inibida, rejubilara também por espancar a patroa. A gratificação era completa. D. Matilde parecia também muito distendida. Os gritos que dera tinham sido a consequência inevitável da mistura sofisticada de prazer e dor. Acendeu um cigarro longo e fino e contou:
— Uma vez fiquei assim com as nádegas por ter dito ao meu pai que era um assassino sem coração. Eu devia ter uns treze anos quando começaram os massacres de colonos em Angola. Nós tínhamos uma roça de café. Vieram os turras e mataram três empregados brancos nossos. Os meus pais tinham ido levar-me a Nova Lisboa, para a escola. Estava num colégio interno. Quando voltaram e o meu pai se deparou com aqueles corpos mutilados, juntou um grupo de homens, foram a uma aldeia que diziam que apoiava os turras, e enforcaram nove homens, pretos, claro. Foi muito falado o caso dos nove corpos pendurados dum embondeiro. Durante muito tempo tive medo que os amigos e familiares retaliassem, que entrassem pela roça adentro e nos matassem a todos. Talvez por isso, casei cedo.
— O meu marido — continuou — nunca me tocou com um dedo. Sempre nos demos bem. Talvez porque sempre fomos muito independentes. Sabes que até dormimos em quartos separados? — gracejou — mas é mais por causa dos ressonos. Quando ele andou metido naquela coisa dos negócios com a UITA — armas para lá, diamantes para cá — passava meses sem o ver. Depois, as idas à Lunda ficaram muito perigosas e ele optou por ficar cá definitivamente e investir em vinhos e bancos. Agora tramou-se com o BPN. Também não nos metemos muito na vida um do outro. Eu vou sabendo de um ou outro encantamento dele, mas vale a pena proibir as ondas de enrolar na areia? Isso também me deixa à vontade para algum devaneio que me apeteça. Não sei se ele já soube de algum, mas prefiro que não saiba. Apesar de sermos um casal mais ou menos aberto, não sei como iria reagir. A propósito, sabes o que me fez hoje o… — tu conheces — tinha combinado encontrar-me aqui com ele, mas sabes o que o sabujo me fez?: mandou uma mensagem — uma mensagem, vê bem! — a dizer que não conseguia trair o amigo e que, de qualquer modo, tinha uma reunião de trabalho. Detesto sedutores mal assumidos.
Para D. Matilde, este episódio que começara mal, acabara por ter um desfecho gratificante. Já vestidos, D. Matilde, num impulso de mulher abastada, e em gesto teatral, desapertou a gargantilha de pedras azuis e estendeu-a a Ramiro.
— Ramiro, quero que fique com esta gargantilha. Tome!
— Oh, Sra. D. Matilde, por amor de Deus; não posso aceitar.
— Aceite! Quando a olhar, lembre-se de mim só com ela em cima do corpo. Espero que seja uma recordação aprazível.
— Claro que é, minha senhora! Sem dúvida! Não a vou esquecer nunca mais. Mas, esta joia não foi uma prenda do Sr. Galhardo?
— Foi, mas era melhor que não ma tivesse dado. Acho que ele a comprou para a amante do Estoril e ma deu porque ela não gostou. Soou-me. Ele devia saber que a pedra do signo dela é a esmeralda! Bem, vamos embora. Não é preciso dizer que este é um segredo nosso; que não seria bom para mim se alguém o soubesse, muito menos para o Ramiro!
Joaquim Bispo
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Imagem: Lucian Freud, E o noivo, 1993.
Coleção privada.
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4 comentários:
Já sabias da história do filho do rei dos táxis, motorista do Rendeiro e não dizias nada!
Eh, eh! Há sempre um caso que se parece com a história que escrevemos.
Bom 2022!
como sempre fiquei encantada, obrigada pela partilha,
Bom ano 2022
Obrigado, Margarida.
Bom 2022!
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