Um filho hipotético nasceu de mim como um resíduo. Um
destes fragmentos que incorporo à minha verdade diária de construir uma vida
autêntica diretamente proporcional ao espaço concedido/conquistado. Um resíduo,
não muito, daquilo que em mim é o mais permanente. Uma parte que ainda se
resguarda e que a sociedade não corrompeu, por ser imune a tudo.
Não lhe dou um nome pois ele não
carece de um signo que o faça distinguível entre os seus. Todo o espaço que ele
ocupa está cá dentro e não existe senão aqui, onde o sinto e ouço. Uma
substância não de todo discernível, alguma coisa como que matéria neutra dotada
de impulso vital que lhe forneço em nível de emoções diversas.
E diante da possibilidade de este
filho nunca se constituir como um ser real, de existência visível e concreta
como esses seres de braços pernas cabelos e dentes, a quem chamamos homens e
que circulam pelas ruas identificáveis por um nome, é que lhe conto. Para que
ele saia de mim e se concretize em palavras.
Ou então seria preciso que alguém me
ajudasse a completar o esboço que na solidão chamei de filho. Mas é tarde e
decerto ninguém viria até mim sabendo que o meu filho já nasceu do nada e
existe sem existir e que, além disso, eu não quero tirar sua existência de anjo
para trazê-lo ao palco de nossa cotidiana tragédia.
Chamo-o de filho sem saber de seu
sexo. Aliás eu o sinto e criei assexuado e hermafrodita ao mesmo tempo e com
ele converso em sonhos. Diálogos de sonhos que não transcrevo pois os sonhos
não se transcrevem e sinto que se fossem transcritos perderiam a sua substância
de sonho, além de não terem importância para os outros por serem específicos.
Certo dia, conversando com meu
protótipo de filho, ele (contrariando minhas determinações de criador e se libertando
da esfera mínima em que o permito autônomo) perguntou-me o que eu achava de mim
e dos motivos pelos quais o criei. Se minha vida não bastava a mim mesmo a
ponto de o chamar a coexistir comigo num espaço unicamente meu. Se a vida
humana era mesmo esse desconhecimento primário da vida, com tudo o que ela tem
de implicações intrínsecas.
Atingido assim em um ponto tão
vulnerável e crucial, respondi, contrafeito, que não sabia de nada e que também
não queria pensar demasiadamente sobre isso. Mesmo porque eu não tinha meios
para tal avaliação. Apenas me foi dado viver e conseqüentemente eu habitava
esse verbo sem nenhuma estrutura lógica ou transcendente.
Depois disso, eu e meu estereotipado
filho entramos assim numa espécie de comunhão silenciosa, onde as perguntas não
eram feitas e nem respondidas. Mas nem por isso deixavam de ser formuladas no
íntimo secreto de mim para mim, através dele. E daquela sintonia inicial de
quando o criei, fez-se o estranhamento inevitável entre o criador e o objeto
criado. Daí para o divórcio total não demorou muito.
Nosso afastamento não foi uma
ruptura inesperada e muito menos unilateral. Veio de uma sequência de
desencontros em que sabíamos levar ao aniquilamento total em termos de
comunicação. Foi assim e sempre será assim entre os homens e talvez justamente
por causa disso que eu o tenha criado, na ilusão de que ele, não sendo um ser
real, pudesse manter um diálogo fraterno para comigo que me achava só e único
em minhas ideias que eram, no isolamento, concebidas exclusivamente para mim
mesmo.
Aconteceu, porém, fato inesperado,
que meu filho foi-se libertando de mim e de meus conceitos, criando para si
próprio uma nova escala de valores que naturalmente divergia da minha sob
alguns aspectos. E eu não contava com isso. Na verdade, somos todos
despreparados para uma possível vida, tal como imaginamos e que não nos basta
quando se concretiza.
Assim, a cada dia, fomos percebendo
que nossa convivência estava se tornando impossível. Estabeleceu-se um abismo e
nele nos perdemos em nossa ânsia de tanto querer e que só nos afastava ainda
mais do outro enquanto objeto de desejo. Eu e meu filho hipotético, no qual eu
vislumbrava um desdobramento de mim e que, uma vez concretizado, era estranho a
mim. Não nos entendíamos mais.
Então eu o expulsei de mim
trazendo-o a mim, de onde ele afinal tinha vindo. E ele em mim e eu nele
absorvemo-nos num único ser que era o resultado de duas partes que naquele
momento voltava à unidade aparente de um todo que já não mais se questionava.
Não havia mais desavenças e passamos a nos entender muito bem no ser insípido
que surgiu de nós dessa fusão e que, sem constrangimentos, contemplava a fumaça
do cigarro em espirais de sono.
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