Aquele fim de tarde, tingido em tons de um vermelho laranja, caminhava em direcção ao zénite. Quem ali tivesse à mão uma máquina fotográfica facilmente teria conseguido um feito raro: aprisionar aquele momento mágico que, com toda a certeza, seria digno de figurar nos anais da fotografia.
Porém, sem que nada o fizesse prever, o tempo sofreu uma repentina alteração. Uma nuvem negra, mais negra que a noite mais negra, pairou alguns metros acima do solo e ofuscou por completo aquele artístico momento. Contudo, pode-se considerar normal o dito fenómeno, tanto mais que todos os que por ali passaram naquela altura não acharam estranho o que aconteceu. Aliás, o comportamento desses passeantes perante a ocorrência de tão negro fenómeno manteve-se dentro da normalidade.
O sucedido deveu-se tão só a uma alteração de alguns factores climatéricos, a mudança do vento, um anticiclone, um centro de baixas pressões ou de altas pressões, sabe-se lá, a natureza é fértil em tantas coisas.
Contudo o que se passou a seguir bem poderia vir a dar um caso de estudo. Todas aquelas pessoas que antes se passeavam despreocupadamente, alheias às alterações climatéricas, foram assaltadas por alguns presságios perturbadores, face a este novo fenómeno. Foi vê-las a olharem para o ar com a angústia e a perplexidade estampadas nos rostos e de bocas abertas. De facto, aquela negra nuvem de repente tinha ganhado vida, tinha-se elevado até chegar à frente de uma janela dum dado apartamento e tinha desaparecido sem deixar ponta de rasto.
− Talvez tivesse entrado pela janela. − alvitraram uns.
− Mas como se ela estava fechada. – desenganaram logo outros.
Um mistério!
Afinal, essa negra nuvem desfez-se em noite e entrou pela janela aguardando às escuras na sala de estar. Um pouco mais tarde, o luar veio fazer-lhe companhia. O breu da escuridão deu então lugar a uma claridade prateada que deixou ver um embrulho no centro da mesa.
Então, no silêncio que se fazia ouvir, ecoou o som de uns saltos altos a percorrerem o corredor e a pararem em frente da porta. A seguir ouviu-se a chave a rodar da fechadura e de imediato a porta abriu-se.
À contra luz destacaram-se os contornos esbeltos do corpo de uma jovem mulher que, antes de entrar, se deteve expectante durante alguns momentos à entrada da sala, até se decidir dar alguns passos em frente e fechar a porta. Depois de entrar, tacteou na parede e pressionou o interruptor para acender a luz. Mas nenhuma lâmpada se acendeu. A sala continuava envolta entre as sombras da noite e a luz da lua.
«Que coisa estranha não haver luz. Logo hoje. Parece que as sombras do passado vieram para me tentar».
Pressionou outra vez, mas agora com mais força o interruptor, mas nada. A falha de luz não tinha nada a ver com força. Eram provavelmente outros os desígnios, outras vontades, insondáveis.
Desolada, deixou cair a mala no chão, despiu o casaco, lançou-o para as costas de uma cadeira e atirou-se indolentemente para cima do sofá.
À sua frente, o presente esperava que os laços que o prendiam fossem enfim desfeitos.
«Eu bem sabia que a falha de luz não era um mero acaso, há muito que eu esperava por este momento.»
Cansada fechou os olhos, libertou a memória e deixou correr à solta as terríveis imagens daquele fatídico dia. Pareciam tão reais como se o passado tivesse voltado e fosse agora o presente: o carro voa pelo asfalto e ela alheia à estrada, à velocidade, ao destino. Está concentrada apenas naqueles acordes musicais que a fascinam. De repente, aquela música que a embala dá lugar ao ensurdecedor barulho de chapa a retorcer e a esmagar-se. Soube mais tarde que ele tinha partido, enquanto ela tinha resistido ao violento embate provocado por aquele camião desgovernado saído do fundo da noite.
Como no passado, sente agora o mesmo impacto do choque que lhe volta a dilacerar o corpo e a alma, mas sabe que não são só as recordações. Sabe também que ele voltou no primeiro aniversário, para a levar. Ele era o seu presente. Agora tem a certeza de que não é capaz de resistir àquele encontro.
Decidida, levantou-se, ligou a aparelhagem de som, escolheu aquela música que não acabara de ouvir e encaminhou-se em direcção à mesa. Carinhosamente agarrou no embrulho, desatou os laços e abriu a caixa.
Uma luz intensa soltou-se e milhares de partículas cósmicas ficaram a pairar por toda a sala.
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