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domingo, 19 de dezembro de 2021

Quando não tem jeito

 



Uma perua parou a duas quadras da minha casa. Lógico, tenho uma boa vista para o lixão clandestino e percebi tudo. Não parecia, de cara, ser algo comum. Liguei o alerta. Estou acostumada a pilhas e pilhas de detritos, destroços de construções e bichos mortos; restos de matadouros. O carro entrou sorrateiro, em zigue-zague, para se esconder por detrás dos monturos. Mas, ainda assim, captei a bendita imagem. Estava adesivado com frases do tipo: “Frete já!”, e telefones. Poderia ser o carro do Cildo, um senhorzinho caquético que derruba blocos inúteis, refugo de obras, quase todo santo dia. Não era ele, eu vi. Não podia ser, também, pelo porte. Ainda que estivesse mascarado, percebiam-se os músculos salientes. Quando o cara retirou o embrulho de talvez um metro em meio, pesado, num saco preto, notei que os urubus se agitaram; davam-se bicadas, tentando afastar a premente concorrência. Qual o porquê disso? Certamente liberava gases e salmoura. Eu não conseguiria discernir a diferença de fedores – o lixão sempre é podre –, porém os bichos sim. Também cachorros e gatos espreitavam ao longe, brotando em artimanhas para se chegarem. O homem se aperreou e quis terminar logo o serviço; pegou o embrulho com as mãos (com luvas) e saiu arrastando por uns dez metros. Mais estranho foi o fato de ele afastar os lixos já existentes e, com cuidado, colocar montinhos em cima do seu. Sim, repito, nunca vi nada igual a isso. A minha primeira intenção foi sair, ir à casa do Lucas, meu vizinho, e chamá-lo para pegar umas cenas com o celular dele. O meu está uma bosta, e já não servia para tirar fotos. Estive por dois segundos na porta, quando me deu uma perturbação para não perder nenhum lance. Eu podia descrever tintim por tintim para a polícia. Mas ela iria acreditar em mim? Poderia ser eu enquadrado como um sujeito que inventou uma história ou sendo o próprio praticante do crime? Meu Deus do céu, fiquei desesperada. Seria a minha história contra a da polícia. Não quero conversa com a polícia, para completar. Meu filho morreu numa troca de tiros, em 1998, e até agora nada. Desisti do processo, porque não tenho tempo nem dinheiro. Sofri muito por todos esses anos. De tanto eu pedir, Deus já deve ter feito justiça, trucidado o canalha que matou meu filho. Bom, melhor não entrar nessa história; me faz mal, muito mal, só de pensar. Jairo morreu de graça. Eu não poderia morrer por ser cúmplice de uma tragédia dessa? Deixei para lá, não valia a pena continuar com isso. Fechei a janela e entreguei nas mãos de Deus. Continuo na sina de ser invisível.


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