Foi a última passageira a embarcar. O único
lugar vago era numa coxia, quase ao fundo. Era normalmente muito exigente em
termos de lugares num avião e fazia questão de ter sempre o lugar da janela do
lado esquerdo da fila 13. Mas estava demasiado cansada para se importar.
Tinha sido um
dia muito ocupado, cheio de conferências e de decisões de última hora. Chegara
até a duvidar conseguir voltar a tempo para casa. Isso significaria passar o
Natal sozinha numa cidade de que nem sequer gostava muito. Uma ideia intimidadora para uma sentimentalista secreta como ela era.
Conseguira à
justa apanhar o último voo do dia. Chegariam bem depois do jantar de Natal, mas
era melhor que nada, pelo menos estaria em casa para o dia de Natal.
Enquanto o
avião se fazia à pista e levantava voo, Maria Teresa cerrou fortemente olhos e
punhos. Normalmente, adorava voar. Mas desta vez sentia-se nervosa, quase como
se esperasse que algo corresse mal. Era provavelmente apenas tensão nervosa
devido ao excesso de trabalho.
Quando o
assistente de bordo apareceu com o carrinho das bebidas, pediu ansiosamente um
whisky duplo só com gelo. Acalmar-lhe-ia os nervos. Beber tinha sempre esse
efeito.
E de facto, tendo
esvaziado meio copo quase de um só golo, começou a sentir-se muitíssimo melhor.
Sentiu até um certo interesse pelos restantes passageiros.
O avião estava
cheio e na sua versão de mais lugares. A maior parte dos assentos estavam
ocupados por homens, obviamente de regresso de alguma reunião de negócios.
Tinham um ar cansado e um pouco macilento. Mas duas filas à sua frente, do
outro lado do corredor, estava uma rapariguinha com um cesto de verga
cuidadosamente pousado sobre o colo.
O que
despertou inicialmente a atenção de Maria Teresa foi o seu cabelo. Era muito
longo, brilhante e do mais belo castanho-avermelhado que vira em toda a vida.
Era um tom que sempre lhe agradava.
Reparou então no
cesto. Era um cesto vulgar, com uma asa grossa e uma tampa meio aberta. Mas a
espreitar pela borda, com a tampa a parecer um enorme chapéu sobre as suas cabecitas,
viam-se dois gatinhos. Não deviam ter muito mais de um mês e tinham obviamente uma
ascendência muito misturada. Mas eram fofinhos como só um gatinho o consegue
ser.
Uma onda de
nostalgia atravessou Maria Teresa. Fechou os olhos e recordou um outro Natal há
muitos, muitos anos. Tinha então oito anos e o seu maior desejo era ter um
gato. Não um dos caros, apesar de adorar os persas, mas apenas um gato normal.
Acreditava no
poder dos desejos, por isso, todas as noites, mesmo antes de adormecer,
visualizava à sua espera sob a árvore de Natal um cesti
nho de verga com um
laçarote vermelho na asa e um gatinho enroscado lá dentro a dormir. Manteve isso
durante semanas, tinha até um nome pronto para o gatinho: Titânia (seria uma
gata, claro), como a rainha das fadas da peça da escola.
Quando chegou
finalmente a manhã de Natal, havia muitos presentes muito bem embrulhados sob a
árvore, mas nada de gatinho. Eram maravilhosos e caros, o tipo de presentes na
moda e considerados desejáveis por tudo quanto era revista e sites da Internet,
mas não conseguira evitar sentir-se desiludida. A única coisa que desejara fora
o gatinho, do tipo que as pessoas estão sempre a tentar dar sem grande êxito.
E fora sempre
assim toda a sua vida, recebia as coisas mais maravilhosas e apetecíveis
(supostamente) enquanto ansiava por outra coisa. Normalmente, eram coisas bem
simples que poderia adquirir facilmente para si, mas não seria a mesma coisa.
Só seriam especiais se lhe fossem oferecidas sem qualquer insinuação sua.
A sua atitude
pareceria ingrata aos olhos de muita gente, mas ficava-lhe sempre a sensação de
que os que lhe ofereciam presentes estavam mais atentos ao “certo”, ao estatuto
da relação com ela, enfim, a arranjar algo ideal teoricamente, sem se darem ao
trabalho de pensarem verdadeiramente nela.
A única vez
que se abrira com o marido sobre isto, ele achara-a ridícula. Dava-lhe sempre
uma joia bonita ou uma peça de roupa cara ou algo que muitas mulheres dariam
muito para terem. Mas ela sentia que eram presentes frios, impessoais, que podiam
até nem ter sido escolhidos por ele mas pela sua secretária ou pelo pessoal das
lojas.
Davam quase a
sensação de virem de um sentido do dever e não de sentir amor por ela.
Preferiria muito
mais uma coisa simples mas pessoal, como um ramo das suas flores favoritas ou
um livro invulgar. Ou até o há muito desejado gatinho, tinha agora três belos persas
mas tinha-os comprado ela, por isso não contavam.
Como podia
fazê-lo entender? Ele diria simplesmente que ela estava a portar-se somo uma
criança. E teria provavelmente razão. Bem no íntimo da empresária de êxito
mantinha-se a Maria Teresa de oito anos com a sua crença em magia e desejos
silenciosos. Todos os anos, à medida que o Natal se aproximava, tinha a mesma
sensação de antecipação que sentira na infância. Era realmente ridículo.
O avião
aterrou, finalmente. Com lassidão, tirou a maleta do compartimento superior e
aguardou calmamente a sua vez de sair, sem se meter nos atropelos dos restantes
passageiros que pareciam ter sofrido uma injeção de adrenalina à ideia de estarem
quase no destino. Desceu finalmente a escada e entrou para o autocarro que a
levaria ao terminal.
O céu estava nublado
e havia um travo de chuva na aragem quente para a época do ano. Um tempo muito
pouco natalício.
O marido
esperava-a à saída da zona de desembarque, como bem sabia que estaria. Sabia também
que teria trazido o seu presente e que sugeriria irem tomar uma bebida no bar
do aeroporto, um dos poucos abertos na Véspera de Natal.
Sem bem saber
como, os seus rituais natalícios da infância tinham gradualmente sido postos de
lado, substituídos por uma abordagem mais racional. Como não tinham filhos, o
marido tinha-a convencido de que essa coisa de presentes a árvore na manhã de
Natal era ridícula com apenas dois adultos em casa e trocavam agora
religiosamente os presentes na Véspera à noite, antes da meia-noite, seguindo depois
para a casa de uns amigos nas montanhas onde passavam os dois dias seguintes.
Tendo recusado
a ideia de uma bebida, alegando exaustão, encaminharam-se para a saída e o estacionamento
onde os aguardava o carro já com a bagagem para os dois dias de férias e o seu
presente, supunha.
Por breves
instantes ainda sentiu uma crescendo de expectativa. Talvez este ano as coisas
fossem diferentes. Mas pouco durou, quando o marido se baixou para lhe pegar na
pega da mala viu-lhe no bolso do sobretudo um embrulho característico da
joalharia que ele usava sempre em todas as ocasiões.
Seguindo a seu
lado a caminho de mais um Natal “racional” não pôde impedir-se de acompanhar com
os olhos a rapariguinha arruivada que transportava cuidadosamente o seu cesto
com os dois gatinhos.
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