O velho repisa, uma a uma, as escadas
exteriores do lar de idosos, agarrado ao corrimão e, em passos
miudinhos e hesitantes, avança pelo passeio afora. Vejo-o da minha
janela, onde costumo postar-me para ter uma ilusão de contacto com o
mundo. Não é uma visão invulgar, mas geralmente os velhos vêm em
grupo acompanhados por duas ou três funcionárias. Vêm apanhar um
pouco de ar e de sol na pequena praceta ajardinada onde a autarquia
instalou dois bancos de jardim. Creio mesmo que o lar se instalou
naquele prédio por causa do esboço de jardim. Bem vejo que a
diretora o mostra, quando uma nova família chega à procura de um
lugar onde largar o familiar. Constatar que o lar até dispõe de um
jardim sempre deve evitar alguns pruridos de consciência.
«Não sei. Parece a nossa rua, mas não
tenho a certeza. Ela é que deve saber. Tenho de a encontrar. Não
sei se disse que ia à mercearia. Talvez esteja ali à frente.»
Ver um velho a abandonar o lar sozinho
espicaçou-me a pouca curiosidade que ainda tenho. Estaria a fugir?
Ou só a espairecer? Tinha ar de mais de oitenta anos, estava de
pijama, com um certo volume na zona da bacia, provavelmente uma
fralda de adulto. Pesada, pelo aspeto. No seu passinho miúdo, já
percorrera uns cinquenta metros, sem ninguém o travar. Olhava
decididamente para o início da rua, como se levasse um destino
consciente.
«Era ali. Era ali a mercearia. Mas agora
não está lá. Como é que isto aconteceu? Se calhar é mais à
frente.»
Vejo-o parar e olhar em volta. Andará à
procura de alguma coisa? Não andamos todos? Afasto-me da vidraça,
para ele não me ver. Pouco depois recomeça a andar. A sua figura um
pouco curvada de riscas azuis e cinzentas verticais não suscita a
atenção de ninguém. Não passam carros, não há mais pessoas na
rua.
«Deve ter ido ao pão. Se lá for antes de
almoço, talvez a ti Quitéria ainda tenha. Pão de verdade, de
quilo, bem firme. Senão, traz papo-secos...»
Bem faz o velho — pirar-se dali. Imagino
que tenha sido bancário, ou empregado de balcão. Há nele qualquer
coisa de solicitude. Imagino como se deve sentir desfasado do mundo.
Cá fora, todos com os olhos metidos no telemóvel, sem respeitar
nada, nem ninguém. Lá dentro, só velhos de olhar parado, afundados
em recordações. E funcionárias ríspidas e mandonas. Pirar-se, ir
por aí afora, encontrar um pouco de coerência no mundo, um pouco de
compaixão. Se calhar era o que eu devia fazer também. Estou aqui a
fazer o quê? A espreitar a rua, a olhar para as árvores, para os
automóveis que não passam.
«Não encontro a mercearia. Acho que vou
já para casa. Ela já lá deve estar. Vou-lhe pedir pão com
azeitonas — pão de côdea escura, azeitonas grossas retalhadas, a
saber a sal.»
Uma funcionária já veio à janela
espreitar. Tinha um ar apreensivo. Se calhar já deram pela falta do
velho. Como a rua encurva ligeiramente, não conseguiu vê-lo, que já
vai lá à frente. Voltou para dentro. Hei-de avisá-las ou deixo o
velho escapar? A minha solidariedade vai para o velho. Talvez consiga
alcançar o que deseja. Ele que goze uma réstia de ilusão de
liberdade! E eu?
«É já ali a nossa casa. Parece, mas não
sei bem; está esquisita. Está tudo diferente. Gostava que ela já
lá estivesse. Ah, se me tivesse arranjado um pratinho de requeijão
morno, com açúcar… Parece que já não o como há tanto tempo.»
E se fazem mal ao velho? É perigoso andar
por aí. Não deve ter nada para roubar, mas nunca fiando. Há por aí
muita malandragem. Maltratam só pelo prazer de ver sofrer. Se calhar
ele ficava mais seguro no lar. Aonde é que ele vai, nesta idade?
Agora foi abordado por dois tipos. Espero que não… Não; parece
que estão só a conversar. A esta distância, não consigo perceber
o que dizem.
— O senhor precisa de ajuda? — pergunta
um dos rapazes, estranhando as roupas e o ar atarantado do velho.
Simão Cordeiro dá pelo jovem, os seus olhos
castanhos orlados de cinzento completam um rosto de desorientação e
angústia. A voz sai-lhe sumida:
— Quero a minha mãe!
Joaquim Bispo
*
Este texto obteve o 1º lugar na modalidade
Prosa em âmbito Internacional, no concurso Professor Mário Clímaco
/ 2019, da ALEPON — Academia de Letras, Ciências e Artes de Ponte
Nova — Brasil.
*
Imagem: Fernando Namora, Árvores,
1964.
Coleção Casa-Museu Fernando Namora,
Condeixa-a-Nova.
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10 comentários:
Ganhou o 1º lugar no concurso e com todo o mérito.Uma história curta , enigmática e com final súbito e inesperado : apenas aquela frase tão simples...
Obrigado, José Águas!
A realidade de idosos em lares (e em hospitais) tem-me sido bastante presente ultimamente. E nem sempre gosto do que vejo.
Por outro lado, ou além disso, tento pôr-me na pele de um deles, em que pensam, que alternativas (não) têm, que lembranças (ainda) mantêm.
Abraço!
Dilacerante verdade numa tradução exímia.
Excelente!
Obrigado, Artur!
Abraço!
antevemos o nosso futuro proximo....
Abraço, Baptista!
Tocado com a narrativa emocionante e viva!
Afetuoso abraço, Joaquim!
Obrigado, Adriano!
O tema é delicado e vai estando muito presente.
Abraço!
Olá Bispo. Excelente conto. Foi mais do que merecido, foi DEVIDO o prémio que recebeste.Mas quem te lê também é premiado...com a tua excelente escrita! Um grande abraço.
Obrigado, Portugal! Os prémios são retornos de importância especial para a valoração do texto pelo autor.
Abraço!
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